terça-feira, 22 de novembro de 2016

Os invisíveis



OMBUSDMAN

Seis anos atrás, quando da comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi, a Folha publicou um caderno “Racismo Cordial“.
Baseado na ampla pesquisa feita pelo Datafolha, artigos e entrevistas, o trabalho demonstrava, de modo estatístico e transparente, a forma particular de que se reveste a discriminação racial no país.
Algo que estudiosos já haviam apontado ganhava ali, reafirmação científica, atualização e extraordinária divulgação. Houve  polêmica, ampla repercussão.
Outras publicações também trouxeram reportagens sobre o assunto, conferindo à efeméride um destaque inédito.
Aquilo que poderia ter significado à inauguração de uma modificação estrutural no tratamento dedicado a imprensa como um todo à questão do racismo acabou, no entanto  , por engavetar-se.
A verdade  é que, de lá para cá, refletindo a indiferença velada para com o tema que perpassa a sociedade brasileira ( em que pese o fato de 44% dos habitantes do país serem oficialmente negros ), a imprensa pouco alterou o seu comportamento na cobertura de formas específicas, mais ou menos sublimares, de expressão do racismo.
Este continua como tema tabu, sob o disfarce, de há muito desmascarado, da suposta democracia racial brasileira. E não configurava exagero afirmar que o seja justamente pelo grau de explosividade que carrega.
Com raríssimas exceções, o racismo e suas mazelas não frequentam as pautas darias, estão alijados de qualquer iniciativa regular e permanente.

Deslizes  
Permanece atual um célebre trecho do livro  “O Homem Invisível“ ( 1952 ) , do americano Ralph Ellison  ( 1914-1994 )  , cujo protagonista  , negro , lamenta:

“Eu sou invisível  , entenda  , simplesmente  porque as pessoas recusam–se a me ver. Como as cabeças sem corpos que às vezes se vêem em exibições circenses , é como se estivesse rodeado de espelhos feitos de vidro grosso e distorcido  . Quando eles se aproximam de mim, vêem somente o que está à minha volta, ou suas próprias invenções e imaginações – tudo e qualquer coisa, menos a mim" . 

Tudo isso, sem considerar os deslizes involuntários e no entanto ativos de caráter racista cometidos pela própria imprensa, inclusive a Folha.
Para recordar um exemplo prosaico – mas nem por isso menos relevante  - , felizmente registrado e criticado com transparência nesta coluna pela ombudsman que me antecedeu, Renata Lo Prete: num teste bem - humorado aplicado aos leitores  em 25 de julho de 1999 para verificar o quanto estes poderiam ser considerados paulistanos de verdade  , uma “inocente “ ilustração sobre violência na cidade trazia o assaltante como um rapaz negro e a vítima como uma moça branca, de cabelos claros. 

Cobertura pífia 
Absurdo corriqueiro, essa invisibilidade se expressa, agora, na pífia cobertura que vem sendo dada pela imprensa à preparação da Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância, que começa dia 31 de agosto e vai até o dia 7 de setembro em Durban , na África do Sul.
Não só a esse encontro oficial da Organização das Nações Unidas (ONU )  , diga-se  , mas cabem ao fórum de organizações não-governamentais e entidades que se realizará na mesma cidade  , sobre o mesmo tema, antecedendo a conferência, a partir desta terça-feira.
Quanto aos leitores sabem que, há cerca de um ano, inúmeras reuniões se realizam para preparar o evento, aqui e inúmeros países? Quais são as propostas e os pontos mais polêmicos, em nível internacional  ? Por que os EUA vinham ameaçando até há pouco dias boicotar o evento  ? 
Somente nas últimas duas semanas a Folha, começou a tentar, de modo mais sistemático, para os problemas que serão discutidos em Durban, enquanto boa parte dos outros jornais do país continua distante. 
Tal indiferença não se manifestou por ocasião de conferências anteriores da ONU, sobre direitos humanos em Viena  , em 1993, e sobre direitos das mulheres  , em Pequim em 1995, para mencionar dois exemplos de acontecimentos que receberam ampla cobertura da imprensa  , antes e depois.

Ponto de partida 
Evidentemente  , o que se discute  , aqui  , não é apenas o noticiário sobre o encontro da África do Sul, mas aquilo que está por trás  , à frente  e em torno dele  , ou seja  : até quando a imprensa  , relegando–a  a  terceiro plano, compactuará com a invisibilidade, com a existência da discriminação  ? 
A gravidade da interrogação é ainda maior se se considera que os preconceitos a serem debatidos  incluem aqueles existentes contra os índios e as chamadas minorias.
Talvez Durban comece a ganhar mais destaque e atenção da imprensa nos próximos dias  - é o mínimo que se espera.
Mas seria lamentável, após sua realização,  deixá–lo transformar-se num marco  - como as comemorações dos 300 anos da morte de Zumbi - e não torná-lo ponto de partida para reflexão e mudanças na abordagem da intolerância racial no Brasil pela imprensa.

Fonte   -  Jornal    FOLHA  DE  SÃO  PAULO   pág   A 6
Domingo  , 26/08/2001         BRASIL 
OMBUSDMAN    -  BERNARDO  AJZENBERG 

ESCRAVIDÃO: LIVROS DIDÁTICOS estão ultrapassados





A contribuição de pesquisadores estrangeiros sobre a escravidão não deve ser desprezada. Entre eles, figuram nomes de peso como Paul Lovejoy, John Thorton, Joseph Miller, Stuart Schwartz e Mary Karash, especialista americana responsável por mostrar uma face ainda mais terrível da escravidão brasileira: que ela foi basicamente uma exportação de crianças e adolescentes.
Se as mulheres eram a minoria nos navios negreiros, elas eram a maioria absoluta dos alforriados. “Isso se dava porque elas conseguiam atuar com mais eficiência na política e no mercado“, explica Manolo. “Como domésticas, eram mais próximas do senhor, eventualmente tendo filhos com ele. Ao mesmo tempo, monopolizavam o pequeno comércio da cidade  e  , assim conseguiam juntar seu próprio dinheiro “.
Quem acredita que ser escravo é o posto de receber qualquer pagamento por seu trabalho vai estranhar que  , desde o século 17, seja possível encontrar registros de grande quantidade de ex -escravos que possuíam seus próprios escravos.
Muitos se alforriam, compram seus próprios escravos e voltam para a África“ , afirma o historiador  , que atualmente debruça sobre 15 mil cartas de alforria, tentando compreender a complexa questão dos libertos e sua ascensão social dentro de uma sociedade escravocrata. “Tenho trabalho para uns cinco anos“, festeja.
Ascensão  - Embora tenha sido dos últimos a abolir a escravatura, o Brasil foi o país que mais alforriou escravos em toda a América e contou com a maior participação da população de cor entre as diversas camadas sociais. É uma das contradições do modelo escravagista brasileiro mais difíceis de entender, reconhece, Manolo. “ Você traz do cativeiro certos valores políticos e joga no mundo dos livres. Cria  , além de uma mestiçagem epidérmica, uma mestiçagem política“ , comenta. O resultado é uma sociedade altamente hierarquizada e prepotente.
Por causa dessa contradição , ele acha que marxismo não é capaz de  explicar a escravidão,  aliás, o problema do marxismo não é só com a escravidão, é com a história. Num país como o Brasil, que é tão complexo justamente por causa de coisas como o tráfico e a miscigenação , a gama de questões que se coloca a todo momento ultrapassa a capacidade explicativa de quem se fixa em determinismos históricos“, declara.
Nos grandes centros de referência historiográfica brasileira, como a UFF, a UFRJ, a USP e a UNICAMP, a influência da história cultural tem sido avassaladora. “Nos últimos 20 anos, ela substituiu o conceito de modo de produção. Agora tudo é a representação. Eu vejo as teses de hoje. O pesquisador pode estar fazendo a história do pé do Jamelão em Caicó. Ele sempre vai citar o Chartier e o Bordieu. Chega ser engraçado“ , critica.
Mais leve e accessível, a história cultural também é responsável pelo interesse cada vez maior do grande público por livros de história do Brasil. Alguns deles se tornaram best-sellers, transformando-se  num filão que vem despertando interesse cada vez maior do mercado editorial nacional.
Enquanto a história econômica desce ladeira abaixo, cresce cada vez mais a atração pela história política, principalmente por pesquisadores da UFRJ e da UNICAMP. “Para a escola econômica  , é uma guerra perdida. Nunca mais vamos voltar aos anos 70. Graças a Deus. Leio aquelas coisas que a gente fazia e morro de rir “ , diz.
Freyre  - Com a sedução da história cultural, aumenta cada dia o cacife de um dos seus pioneiros : Gilberto Freyre. Para Manolo, Freyre não foi historiador no sentido exato do termo  , embora tenha se voltado, muito antes da escola francesa dos Annales, para o estudo do cotidiano. “ Ele foi um precursor ao transformar tudo em objeto de reflexão, de modinha a receita de bolo“, reconhece. “Ele era , antes de tudo, um escritor. Por isso, escreveu com tanta liberdade  . E essa liberdade fez com tivesse vários insights fundamentais para se entender este país“. Se as conclusões de Casa-Grande & senzala podem ser aplicadas no resto do Brasil, Manolo tem dúvidas  . Mas aí já são outros 500.
O único mito que o historiador mantém de pé, nessa revisão da escravidão, é o de que ela foi a grande culpada por todos os males deste país. “Só lamento que, mesmo os que vivem repetindo isso, nem sempre levam a questão a sério“, critica. Para ele, o problema é que o Brasil é um atentado à química social.  “Você exclui um sujeito e miscigena com ele. Isso não tem lógica“.
Sua hipótese é que o país viveu  , e ainda vive  , um processo muito específico de ascensão social , que faz com que a cor seja matizada conforme a camada social. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, em que uma pessoa com 1/16 de sangue negro é considerada negra, no Brasil a cor da pele é relativa. “É um fenômeno interessante, quando o escravo vai ascendendo, ele vai perdendo a cor. O racismo brasileiro é um racismo de posição. Essa é a grande especificidade  da escravidão brasileira. Aqui tudo depende da posição social  . sempre foi assim. Isso explica muito deste país “ , comenta.
O historiador só lamenta que essa nova história da escravidão não se reflita nos livros didáticos. Segundo ele  , há um gap entre a pesquisa de pós-graduação e o que chega aos bancos escolares. “Nos anos 60, o livro didático era baseado na historiografia do século 19. Hoje  , no que era feito nos anos 60, o livro didático , reclama  . O resultado seria uma visão esquematizada da história. “Isso prejudica as crianças negras  . Nenhuma vai querer se identificar com a imagem de um escravo maltrapilho que apanha o tempo todo“, imagina. Os próprios historiadores são responsáveis por esse problema, segundo ele. “A culpa é nossa, porque o historiador acha que o livro didático é arte menor  , que o importante é publicar tese de doutorado  . Com isso  , estamos deixando nas mãos de pessoas amadoras e despreparadas a formação de nosso filhos“.

Fonte   -    JORNAL  DO  BRASIL       IDÉIAS        pág  2
 21/07/2001        contin/da 1ª página    CRISTIANE  COSTA 

João Cândido - O “ALMIRANTE NEGRO“



Histórias da história
Estas   a  gente não  aprende  na escola  

João  Cândido 
O “ALMIRANTE  NEGRO" 

Quase um século após a  Revolta  da  Chibata, seu líder é anistiado por decreto  da Presidência da República

“Há muito tempo nas águas da
Guanabara/ o dragão do mar
Reapareceu / na figura de um 
Bravo marinheiro  / a quem  a
História não esqueceu". (**)

Assim canta o samba Mestre-Sala dos mares, de João Bosco e Aldir Blanc. De fato, a história não esqueceu João Cândido Felisberto, nascido em 24 de junho de 1880 em Rio Pardo, hoje Encruzilhada do Sul  , Rio Grande do Sul. Era filho de ex-escravos e tinha sete irmãos. Menino, entrou como grumete para o Arsenal da Guerra da província, sendo transferido aos 14 anos, para Marinha de Guerra do Rio de Janeiro. Suas qualidades rapidamente o fizeram protegido do almirante Alexandrino de Alencar, além de alimentar um natural espírito de liderança. João Cândido fez viagens ao exterior, sempre gozando de prestígio dos oficiais e colegas. Na Inglaterra, teve contato com marinheiros que participaram de revoltas em favor de melhorar as condições de trabalho , entre 1903 e 1906.
Tudo mudou em 22 de novembro de 1910 , data em que a capital acordou na mira dos canhões da Marinha. Apavorada a população carioca cerrou as portas e fugiu. A armada brasileira tinha se rebelado, assumindo o principal controle de três encouraçados e um cruzador. A razão  ? Marinheiros  - majoritariamente mulatos, negros e nordestinos  - pediam o fim do castigo físico aplicado com a chibata. O terrível instrumento remetia a escravidão. Além disso, lutavam contra os baixos soldos, má alimentação e maus-tratos. O estopim foram as 250 chibatadas aplicadas a um marinheiro da nau capitânia da Armada, o Minas Gerais. A imprensa se postou ao lado dos marinheiros. O pobre homem havia mesmo desmaiado de dor durante o castigo, quando todos sabiam que a chibata tinha sido abolida pela República. 
Uma semana depois, João Cândido deu início ao levante  , sendo designado pela imprensa como Almirante Negro. Num ultimato dirigido ao presidente recém-eleito, Hermes da Fonseca, os marinheiros declaravam: “ Nós  , marinheiros  , cidadãos brasileiros e republicanos  , não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira“ . Hermes da Fonseca preferiu pôr logo um fim ao movimento. Proibiu a chibata e anistiou os rebeldes, mas não os perdoou. Muitos foram excluídos e acusados de “ não desejáveis à disciplina de bordo “ .
Em 9 de dezembro, novo levante  , desta vez na Ilha das Cobras. Durante o motim, marinheiros mataram companheiros e um comandante. A rebelião foi massacrada em poucas horas  . As conseqüências  ? Prisões  , exílios  e fuzilamentos. João Cândido foi expulso da Marinha  , acusado de ter incitado o movimento. Em abril de 1911, com o diagnóstico de louco e indigente, foi internado no Hospital dos Alienados. Banido da Marinha, passou anos trabalhando entre os estivadores e pescadores do Cais do Porto. Perdeu a mulher em 1928 e, dois anos depois  , foi novamente preso por subversão.  A partir de 1933 , participou da Ação Integralista Brasileira, movimento de inspiração fascista, deixando depoimento arquivado no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro sobre sua amizade com o líder Plínio Salgado .Faleceu em 1969, pobre e esquecido  .
No dia 24 de julho de 2008, quase um século depois , a Presidência da República sancionou a lei que  anistiou post-mortem João Cândido Felisberto e outros 600 marinheiros que participaram da Revolta da Chibata. Polêmica  , a anistia foi recebida com euforia por setores políticos e com silêncio pelo comando da Marinha  . Alguns setores qualificaram-na como “ irrelevante “  , outros disseram ser ela o  “elogio da insubordinação e indisciplina“.
Mais uma vez  , só a história poderá fazer seu julgamento. E os historiadores ainda têm muito a pesquisar e descobrir sobre esses episódios. Documentos referentes aos motins de 1910  agora vêm a luz, revelando os meandros das Forças Armadas, o cotidiano dos navios de guerra , o rosto dos marinheiros e o da jovem República  - esta , alheia às necessidades de cidadãos simples e anônimos como João  Cândido.

(**) A  letra  original  foi  modificada   pelos  autores para ser aprovada pela censura  da  época.

Fonte    -         Revista   NA  POLTRONA   págs  46 e  47
Empresa  ITAPEMIRIM      setembro  / 2008
Mary  Del  Priore   é  historiadora  e  escritora 



Colin Powell, uma história do século 21


Por  que  O Brasil  não  produz um  similar  nacional ?

Por que um negro americano pode chegar a general aos 42 anos, ao topo da hierarquia militar aos 52 e se tornar um forte candidato à presidência da República aos 58 e no Brasil isso é impossível ?
Respostas fáceis:

1- Porque  sociedade brasileira é mas racista que a americana. ( Falso, houve uma época em que a americana era mais racista que a brasileira) .
2- Porque o Exército brasileiro é racista. ( Falso , porque  , ao contrário do que sucedeu no Exército americano até 1948, o negro brasileiro nunca foi segregado  ).

Um fenômeno como o de Colin Powell é impossível no Brasil por causa das barreiras da educação e treinamento existentes no caminho dos jovens de famílias pobres. Aqui vai uma comparação de sua biografia com um hipotético translado para as condições brasileiras.
Colin Powell é filho de um zelador de edifício e de uma costureira. Ambos jamaicanos. Seu pai nasceu num barraco. Ele, no Harlem ( num pedaço mais para a Velha Lapa, do que para Vigário Geral, no Rio  ) . Quando tinha 6 anos, mudaram-se para o Bronx , na área onde Paul Newman filmou Forte Apache  em 1980. Na época em que Colin Powell esteve no lugar, ele poderia ser comparado aos bairros de classe média como o Brooklin paulista. Era um garoto bem -comportado, coroinha de igreja episcopal, carregador de caminhões e faxineiro da Pepsi–Cola. (“Deve-se lavar o chão esfregando a vassoura de um lado para o outro, se você esfregar para a frente e para trás acabará arruinando as costas“, ensina ). 
Era mau aluno, a candidato certo à evasão. Ficou na escola porque os professores o seguraramAlém disso, morria de medo dos pais. 
No Brasil, o medo o seguraria na escola. 
Quando terminou o secundário, Colin Powell não tinha notas para se candidatar a uma boa Universidade Pública nem dinheiro para tentar uma boa escola particular. Conseguiu um lugar no City College de Nova York ( Rua 141 ), onde a anuidade custava US$ 10, pois o propósito da escola é "dar uma educação qualificada aos filhos dos trabalhadores“. (Formou três prefeitos de Nova York e oito Prêmios Nobel) . Diplomou-se em Geologia com notas baixas.  No Brasil estaria fora do circuito universitário por falta de saber o vestibular das boas Universidades Públicas e de dinheiro para as más da rede privada. Hoje ele avisa: “Enquanto eu tiver o bom senso de lembrar de onde vim  , defenderei a educação pública primária , secundária e superior “ .
Colin Powell não gostava de Geologia nem de Matemática. Encantou-se com a liturgia da igreja episcopal e viu no centro de formação de reservista do Exército um projeto de vida disciplinada e hierárquica. Matriculou-se no Curso Preparatório de Oficiais da Reserva, tornou-se comandante do corpo de alunos e aos 21 anos era tenente na 3ª Divisão Blindada, baseada na Alemanha.
No Brasil não há passagem do CPOR para uma careira militar plena. Só chega a coronel, quem cursou a Academia Militar. Por mais que gostasse de botas bem engraxadas e de desfiles, teria sido um geólogo infeliz.
Sua passagem pelo Vietnã foi banal. Feriu-se duas vezes, um porque pisou numa a de bambu que lhe furou o pé e noutra porque fraturou o tornozelo num desastre de helicóptero durante o qual resgatou os tripulantes  ( inclusive um general ). Tomou impulso quando fez concurso e foi aprovado na seleção de oficiais mandados para cursos universitários de paisanos. Acabou estudando processamento de dados. Matricularam–no num curso de seis meses, mas sabia tão pouco que seus chefes concordaram em mantê-lo por dois anos. 
No Brasil não existe estímulo semelhante com seleção por concurso. Há casos de oficiais em Universidades, mas decorrem de atos administrativos.
O major Colin Powell conheceu o poder porque aos 34, se inscreveu num programa chamado White House Fellows. É um estágio de um ano na presidência da República, só para profissionais jovens e bem–sucedidos. No seu ano foram escolhidos 17. Pistolão  ? Nem pensar. Na sua banca de entrevistadores estava o economista Milton Friedman  . Foi trabalhar no Departamento do Orçamento, “porque é por onde passa a jugular dos outros“ e lá conheceu seu primeiro protetor, o ex- diplomata Frank Carlucci ( serviu no Rio de Janeiro em 1968 e tinha duas preocupações os excessos da ditadura militar e a falta de urbanização das favelas cariocas  ). 
Nem todos os garotos do Bronx foram para a Universidade  ( da turma da rua de Powell, nenhum ) e nenhum dos cadetes do City College chegou a General  ( o melhor morreu no Vietnã ), mas as oportunidades oferecidas a Powell pela sociedade em que nasceu lhe permitiram chegar aonde chegou. 
Seria incorreto supor que ele é uma exceção. Tem uma biografia excepcional, é certo, mas da família que saiu da Jamaica no início do século, noves fora Colin, os Powell produziram dois embaixadores, uma enfermeira, um arquiteto, dois juízes, um milionário e uma professora.

O  negro  do  Harlem  comeu  o  pão  que  o racismo  amassou 

Criado num bairro multirracial de Nova York, Colin Powell carregou o peso de sua cor nos anos em que serviu em quartéis do Sul dos Estados Unidos. “Eu podia comprar numa loja, mas não podia comer no restaurante. Podia andar na rua, mas não podia olhar uma branca“. Aos 25 anos, tenente  , recém –casado e designado para o Vietnã  , entrou com a mulher numa estrada da Virgínia onde não havia postos de gasolina com banheiros para negros ( se houvesse , seria unissex ). Tiveram que sair da estrada e buscar alívio no mato. 
Estava no Exército cuja história escondia os 5 mil negros que lutaram nas tropas de George Washington e os 220 mil da Guerra da Secessão ( 35 mil mortos ). Hoje ele tem em casa uma réplica das dragonas do 5 ° Regimento de Massachusetts  ( o do filme Glória ) massacrado numa missão impossível. Seu Exército ( bem como Hollywood esquecera –se dos quatro regimentos de negros que foram matar índios no Oeste antes do avanço das tropas brancas.
Sua consciência negra desenvolveu-se na medida de sua ascensão social e profissional. Informa que venceu jogando as regras do jogo: “Às vezes eu me magoava, ficava aborrecido, mas quase sempre eu me sentia desafiado. Vou lhes mostrar coisa“.
Mostrou ,  e o fez à sua maneira. 
Dois exemplos. Reconhece que o ex-presidente Ronald Regan, a quem deve muito, não entende direito o que é ser negro nos Estados Unidos, mas quando um jornalista quis discutir esse assunto com ele, puxou um retrato do ex–chefe com uma dedicatória afetuosa. ( “ Se você acha que deve ser assim Collin, então isso deve ser o certo “ ) e rebateu : “ Você acha que agora eu vou virar o rosto para ele e chamá-lo de racista ? “ 
O ex–secretário de Defesa Caspar Weinberger, a quem deve muito mais , chegou a supor que o elogiava dizendo que “ eu não o vejo como um negro “ . Powell responde : “ Toda vez que uma pessoa diz que não me vê como um negro  , o que ela está dizendo é que  , apesar de eu ser negro  , ela pode aguentar isso“.
A proeminência adquirida por Colin Powell redesenhou os limites da discussão em torno do negro americano ( e de todos os negros em sociedades multirraciais ) . Uma coisa é ele ter conseguido chegar lá, outra é acreditar que essa proeminência esteja perto de significar o sono do racismo. Powell sabe disso e continua jogando seu jogo pelas regras do manual. É um mestre da arte, como quando conta um acidente de automóvel ocorrido no dia 27 de junho de 1987 numa estrada da Alemanha.
Havia dois tenentes e um soldado num jipe quando ele derrapou. Foram todos cuspidos, mas o carro rolou por cima da barriga de um dos oficiais. Levados para o hospital mais próximo, o médico alemão examinou os três. Dois tinham ferimentos leves. Ao terceiro, que era negro, não deu remédio: 
- Nesse aí não há o que fazer. 
Um dos colegas do desenganado entendia alemão e pulou da maca: 
- O senhor não pode deixá-lo assim. Ligue imediatamente para o hospital americano.
Ligaram e foram todos para o hospital do Exército, em Nuremberg. O tenente estava realmente mal, passou por diversas operações que lhe reconstituíram a bacia quebrada e foi salvo. Chama-se Mike Powell. Nos estados Unidos é o filho do general Colin Powell. Para o médico alemão era um negro moribundo. 
Em suas memórias, Colin Powell contou a cena  do hospital em oito linhas  , sem nenhum comentário  , sem o nome do médico alemão, nem mesmo o do hospital em cuja geladeira seu filho seria guardado. Ele sabe que a partida não terminou. 

Fonte  -   Jornal  O ESTADO  DE  SÃO  PAULO     pág  A  19 
Domingo  , 01/10/ 1995 - ELIO  GASPARI 
Colin  Powell, uma história do século  21

Crônica - A Crucificação do Professor




Diz  Brecheret: “Do rio que tudo arranca, se diz violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem!“. Realidade das realidades, o magistério se nos depara como esse rio caudaloso, correndo sobre leitos indomáveis, enfrentando pedras em sua caminhada, turvando suas águas com o sangue e o suor de um trabalho incessante e muito pouco reconhecido, sem divisar, no horizonte, quaisquer vislumbres de esperança. Comprimidos, pelas margens do poder, assistimos, estarrecidos, momentos críticos pelo desenrolar de nefastos acontecimentos que envolvem a cúpula e o congresso em corrupções realmente inomináveis. E perguntamos: até quando esse rio vai correr sem devorar as margens opressoras, violentas, dominadoras dos que “executam“ almas no campo minado da insensibilidade e dos muitos descalabros  ?  Até quando esse rio vai correr sem dar o seu grito de independência, entre as margens poluídas dos que “legislam em causa própria, arrancando dos bolsos vazios do povo impostos que pagam as mordomias de suas insolências e seus constantes vôos por um céu em abandono ? Até quando esse rio vai correr sem dar um basta aos que dizem “fazer justiça“ e navegam em águas mansas e serenas sem descobrir, no fundo do poço, pobres páreas afundando em dívidas, dúvidas e exíguas dádiva ? Sim, esse rio há de correr até o dia em que a paciência naufragar pelos mares da miséria e, resgatada a dignidade de cada cidadão, formos capazes de transformar  a máfia do poder em escudos humanos na luta por nossos direitos.
Violentados em nossos mais lídimos sonhos, triturados na máquina que reduz o homem ao pó de seu calvário, moídos como o trigo que nem sempre chega ao altar da consagração, nada mais somos que o expectador arguto de uma política caolha, que só enxerga do lado que lhe convém  e esquece o que Peter Drucker disse certa feita: “O reator da economia moderna não é a fazenda , não é a fábrica , não é o banco  .  É a escola“. Num artigo, ainda, de Joelmir Betting, ele assim se pronuncia. “O sistema educacional brasileiro está pregado na cruz “. E não precisa ser sexta-feira santa para assistirmos, a cada dia, a crucificação em massa do magistério. Alguns aposentam diplomas que a vocação expediu e preferem vender salgadinhos lá fora a ter de aguentar classes numerosas, chicotadas do “ patrão “, jornadas impiedosas para receber  , no fim do mês  , nem a décima parte do que ganha o porteiro do congresso.
Enquanto isso vão ficando nossos filhos entregues a professores não habilitados, apresentando algumas delegacias um índice assustador de educadores sem haver concluído o 2º grau. E assim vai chegando este país às manchetes, incluso no quadro-negro de números que nos envergonham e que o colocam numa situação que está muito mais para submundo do que para qualquer lugar deste miserável mundo. Muito mais para africano que para europeu, com 39 % dos alunos que concluem o ensino fundamental. É hora de colocar colírio nas pupilas, não no Senhor Reitor, mas do aprendiz governador  que, gritand, em campanha  , ser saúde e educação prioridade de sua administração , até hoje não deu sinal de aquecimento no sentido de tirar do patamar vergonhoso em que jazem, há quase 30 anos, os míseros salários de nossos profissionais da Educação.

Fonte    -    AFEPESP       pág  15  -   Crônica
“A autora é Conselheira da AFEPESP, professora aposentada, membro das Academias Campinense de Letras e Artes, e Academia Campineira Maçônica de Letras; Presidente do Clube dos Poetas de Campinas e conferencista na área educacional e cultural.

Verdades e mentiras sobre o travesso de uma perna só



“O Saci-Pererê  : Resultado de um Inquérito, relançado em edição fac-similar, traz de volta, 81 anos depois, a curiosa pesquisa  de  Monteiro Lobato  sobre  essa entidade que perambula pelas matas.

Desde 1918, quando foi aprisionado uma peneira de letras impressas entre os parágrafos de um livro, o saci andava solto pelas terras brasílicas sem que ninguém conseguisse capturá-lo. Livro não assinado e excluído por Monteiro Lobato das Obras Completas que organizou e lançou pela Brasiliense em 1946. O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito permaneceu fora da bibliografia do autor e, pior, longe do alcance de seus leitores e pesquisadores. Agora, a edição fac-similar patrocinada pelo próprio Projeto Memória (Fundação Banco do Brasil e Odebrecht) vem, 81 anos depois, trazer de volta essa interessante pesquisa sobre a curiosa entidade que perambula pelas matas fazendo travessuras.
O arraigado hábito das elites de valorizar tudo, o que vinha do estrangeiro - leia-se, Paris  - em detrimento das nossas tradições, há muito preocupava Lobato. Colaborador de O Estado de  São Paulo desse seus polêmicos artigos Uma Velha Praga, e Urupês de 1914, ele vinha denunciando no jornal e na Revista do Brasil o crescente desenraizamento cultural do País. Antecipava em muitos anos tendências tidas como “modernistas“ pela crítica consagradora e eficiente propaganda do movimento de 22.
Dublê de fazendeiro e jornalista, enquanto residia nos grotões do Buquira, Vale o Paraíba, Lobato tentava sintonizar a rica cultura rural, ignorada nos centros urbanos. Já com reputação consolidada como escritor publicista, congregava em torno de si gente da região empenhada em conhecer mais de perto personagens do lendário local, como o saci.
Em janeiro de 1917, Monteiro Lobato relatou a Godofredo Rangel, seu mais assíduo correspondente, as frequentes consultas que lhe faziam sobre o “molecote de uma perna só“, como se ele, Lobato, tivesse uma criação de sacis na sua propriedade. Confessando que jamais vira algum, chegando mesmo a duvidar de sua existência, pedia a Rangel  “algumas luzes“ sobre o assunto, indagando a respeito de sua ocorrência em Minas. Daí a resolver implementar uma sondagem em nível nacional foi um pulo  - de duas pernas  - pois na carta seguinte ele já dizia ao amigo: “Abri no Estadinho um concurso de coisas sobre o saci-pererê e convido-te a meter o bedelho  - você e outros sacizantes que haja por aí“.
Nascia assim, sob o título Mitologia Brasílica, uma investigação antropológica pioneira, considerada por alguns estudiosos como o primeiro manifesto cultural brasileiro da época moderna. Com o objetivo de estabelecer os contornos estéticos, lendários e comportamentais do “insigne perneta", no dia 28 de janeiro de 1917, por meio das páginas da edição vespertina do jornal O Estado de São Paulo, Lobato fez uma convocação aos leitores. “O Estadinho inaugura hoje uma série de estudos em que todos são chamados a colaborar “. Explicava tratar-se de um inquérito. “Sobre o futuro presidente da República ? Não . Sobre o Saci".
Convencido de que, para entender o espírito de um povo, era preciso descobrir suas lendas, costumes e crendices, Lobato aplicou uma técnica de coleta de dados inédita. Ao mesmo tempo  , inovou ao dar voz a vastos setores da sociedade  , contrariando a prática vigente de só ouvir a opinião de nomes consagrados. Para completar, ainda combatia o “macaqueamento“ , ou seja, a mentalidade de imitavista de certos segmentos sociais determinados em plagiar modelos europeus, dos quais tornavam-se nada mais do que cópias fajutas.
A acolhida da sondagem foi surpreendente, com cartas enviadas de Minas, do Rio e interior paulista. Embora estilizado de diferentes maneiras, na maioria delas o mito conservava a mesma origem  - relatos de ex-escravosalém de feições africanas. A ela , seguiu-se um concurso para artistas plásticos desenvolver trabalhos inspirados “satirozinho pitoresco“.
A repercussão excelente levou-o a idealizar um livro com uma seleção de respostas entremeadas com reproduções de algumas das obras inscritas no certame. Nele, Lobato compareceria com abertura, comentários e conclusão  - uma apologia do Jeca.
Impresso na gráfica do Estado, com anúncios estrelados pelo “diabinho de carapuça“  na pena de Voltolino, Resultado de um Inquérito, financiado pelo próprio Lobato, foi lançado em 1918, na fase mais sangrenta da 1ª Guerra Mundial. Em seu epílogo, no tom nacionalista e irreverente que caracterizaria o discurso lobatiano, vibra a intenção de despertar consciências adormecidas. Assim  como o Jeca, símbolo de um heroísmo silencioso que morre, mas não adere  , o saci, tachado pejorativamente de produto de regionalismos, era revelador da alma de nossa terra.
Valeu a pena chamá-lo à cidade  ?  Compreende ela o que no fundo isso significa  ?“ indagava Lobato. Uma pergunta que , como todas as usas inquietações, permanece atual e oportuna ,demandando uma reflexão dos interessados na questão da brasilidade.

Fonte   -  O  ESTADO  DE  SÃO  PAULO  pág   D 5
CULTURA  -  LITERATURA   Domingo , 14/02/99
Marcia Mascarenhas Camargos  é jornalista doutoranda em História Social / USP  e co -autora, com Vladimir Sacchetta e Carmen Lucia de Azevedo, de “Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia“ ( SENAC  – São Paulo )

Perdeu traços  rudes  para servir à indústria  cultural

Teve também de despir–se da magia e ousadia para circular pelo  mundo  branco e urbanizado

Os eventos que recentemente assinalaram o cinquentenário da morte de Monteiro Lobato talvez não tenham resultado certos aspectos antropológicos das contribuições deste intelectual para a cultura brasileira. Afortunadamente, reeditou-se o seu Saci–Pererê: Resultado de um Inquérito, livro publicado em 1918 e do qual Lobato reservou para si a parte introdutória  , a conclusão e um epílogo. O restante da obra reúne mais de uma centena de riquíssimos depoimentos  - ademais de outras tantas ilustrações  - datados de 1917 e remetidos por leitores paulistas, mineiros e fluminenses ao jornal Estado, tudo isso dando vida à intrigante figura  do saci.
Neste livro  , Lobato concede a palavra aos informantes, mas não se furta à interpretação, tão rigorosa quanto crítica  , e densamente contextualizada, do material recolhido, traduzindo-o à luz do saber da época  , em graúdos desdobramentos analíticos. Aliás, o roteiro que ele mesmo fez publicar nas páginas do referendo jornal, solicitando aos leitores que enviassem à redação depoimentos sobre o Saci, nasceu da sua percepção de que a cultura brasileira vinha sendo descaracterizada pelos estrangeirismos então em voga.
E acordo com Lobato, o Saci sintetizava a mais típica e autêntica das nossas criações populares, “filho da imaginação coletiva  , uma resultante psíquica do nosso povo  , digno de estudo como todas as suas outras manifestações originais". Reveladora do seu pioneirismo antropológico, essa passagem evoca o preceito, tão caro a Franz Boas, segundo o qual não há temas indignos para a pesquisa científica. Ademais, realizando este inquérito , Lobato foi igualmente pioneiro no uso do questionário para a coleta de dados  , com o que logrou sondar a memória  de inúmeros  informantes.
Antecipando-se em alguma medida àqueles que, a exemplo de Gramsci, destacaram a importância do estudo da cultura popular para a compreensão da dinâmica das transformações sociais, o criador do Sítio do Pica-Pau–Amarelo  argumentava que “a fonte da água pura é uma só, e a mesma, na Grécia  , em França  , na Rússia e no Brasil: o povo".
O Saci que povoa as páginas do Inquérito é uma criatura turbulenta, protagonista de aventuras em que predominam a malícia , a zombaria e a astúcia. Preto, perneta, feiticeiro  , ladrão, hematófago e demoníaco, perambula em geral à noite e habita espaços marginais ( limites, porteiras de fazendas , margens , cantos de cozinhas esfumaçadas ). O cavalo – símbolo e instrumento de poder  - é o seu alvo preferido, objeto das suas muitas ações malfazejas.
Tal como estampado na capa do Inquérito  - um adulto, exibindo um par de cornos,  dentes pontiagudos e porrete - , este Saci não se assemelha ao Saci–Menino, cativante e buliçoso, que aparece mais tarde na mídia , já domesticado e infantilizado pelo próprio Lobato, devidamente despojado de suas feições e condutas ameaçadoras.
A progressiva passagem da condição liminar  , que o imaginário das classes rurais lhe atribuía  , para a centralidade custou-lhe os traços mais rudes e agressivos e só assim o saci, porque preto, pôde integrar-se aos valorizados espaços do mundo urbano. Na cidade de São Paulo  , por exemplo  , um cinema e um ônibus urbano levam seu nome. As bancas dos jornais costumavam anunciar o novo número da revista em quadrinhos  A Turma do Pererê, enquanto o seriado da TV O Sítio do Pica-Pau–Amarelo divulgava a sua imagem pelo País. Artistas de teatro recebiam o Prêmio Saci  , instituído pelo Estado para distinguir aqueles que representam  , que “fazem arte“. Por fim  , um Saci alado e aureolado podia ser visto numa pintura no teto da Igreja de São Benedito, em Serra Negra  , SP, convivendo sem constrangimento com santos e anjos barrocos.
Para que pudesse circular com tal desenvoltura no mundo branco e urbanizado, foi preciso despir o Saci  das feições e condutas agressivas com que, a despeito das expectativas iniciais do próprio Lobato, fora pormenorizadamente caracterizado em depoimentos compilados pelo Inquérito. Perdendo os poderes  mágicos, a agressividade e a ousadia, converteu-se numa figura simplesmente cômica inofensiva, bem de acordo com o perfil traçado para os subalternos incluindo–se aí, e sobretudo, os pretos.
Mas  , sendo tão forte o nosso ideal de branqueamento, alteraram ainda mais o fenótipo do Saci: numa ilustração de propaganda infantil paulistana, ele aparece com um largo sorriso estampado em sua face inteiramente branca, a mesma cor de seu barrete, outrora provocadoramente encarnado. Agora assim, o Saci é nosso.

Renato da Silva Queiroz é professor titular do Departamento de Antropologia
Da  Universidade  de  São Paulo