Estou na maior praça do mundo . Tiananmen , Pequim . Poderia estar na menor , já que não enxergo dez metros à frente do meu nariz .O ar é pesado e opaco. As cores esmaecem , os contornos se diluem .
A poluição chinesa , em duas semanas , vai cair sujeirada faz amarelar o sorriso da Mona Lisa lá em Paris . A fumaça da Europa desaba em Manaus . As queimadas fazem chover cinzas na Avenida Pau-lista , cujos carros sujam o ar da África , A poeira dos bombardeios americanos no Iraque escurece o Taj Mahal . Um bilhão de indianos , com seus carros populares novinhos , sujam o céu da China , cu- cujas centenas de milhões de novos consumidores alimentam a cadeia a cada dia .
Corte rápido para o americano tomando um copão de café na cadeia de lojas da logomarca verde , redondinha . Close na mão do gringo . Entre os dedos e o copo , um curioso anel de papel reciclado evita que o cowboy se queime . Em letrinhas não tão miúdas , orgulhosas , lê-se que aquele estranho aparato ajuda a " save the planet " .
" Save the planet " ( salvar - ou economizar - o planeta ) ? Como a produção de ( mais ) um pe- daçao de papel pode salvar o planeta ? Que baleia ! Por que não usam xícaras de porcelana ?
De dentro da lixeira transbordante salta um especialista pintado de verde- dólar que esclarece tudo . " A energia para produzir uma xícara e a água para lavá-la várias vezes consome ainda mais recursos naturais que o papel reciclado do protetor de calor e o descartável do copo envernizado " . Não sei se é verdade ou mentira , mr Dollargreen , mas , e se as suas milhares de lojas simplesmente não existissem ? Quantos copinhos a menos por dia ? " Não podemos fazer isso , seria uma catástrofe , replica o monstrinho Bucks . " Quantas famílias perderiam seu sustento se todos os nossos cafés fe - chassem as portas ? "
Esse é o raciocínio dominante : deve-se fazer o maior marketing possível sobre poluir o menos pos- sível mantendo intacta a sociedade de consumo , essa sim intocável . Se é a cadeia do consumo que faz girar o mundo , não se pode atacá-la jamais , sob o risco de a Terra parar de rodar .Tratar-se- ia , pois , de " racionalizar " o uso dos recursos , fazer de tudo para que não mudemos substancial - mente nada .
Na virada do século passado , surgiram na Europa escolas de pensamento que , em discordância da aceleração da vida pós - Revolução Industrial , pregavam utopias de retorno , o abandono das má - quinas , o retorno à vida simples do campo . Na virada deste século , o mesmo fenômeno se fez notar nos EUA , onde famílias se mudaram para o mato e os pudo polui . Esse é o problema . Estou escrevendo mais , no Natal , em vez de computadores , presentearam os filhos com arranjos de gra-vetos . Os " retornistas " não vingaram e o mundo inteiro continua querendo consumir mais .
Tudo polui . Esse é o problema . Estou escrevendo num computador que devorou sei lá quanto de re-cursos naturais para ser produzido . A energia elétrica que o possibilita , a comida que me move , a água que eu bebo , a roupa que eu visto , tudo o que eu tenho de mais fundamental para a sobre - vivência ajuda a destruir a Terra . E agora , o que fazer para eliminar o inimigo que vive dentro ?
Sinto decepcionar você que achou que eu teria uma solução para o dilema . Não tenho . Confesso que gastei a tinta e o papel dos milhares de exemplares desta revista para constatar o incontestável e não oferecer solução alguma .
Me contento em retirar o problema de onde ele não está nos paliativos - marqueteiros ou sinceros - é posar o problema onde ele deve , na lógica do consumo e , em última instância , na própria existência humana .
Com a incorporação de novas massas à sociedade de consumo , o problema só piora . Não adi - anta fechar a torneira , não adianta apagar a luz , não adianta ir de bicicleta , é tudo eufemismo , tudo paliativo , nós somos o câncer do planeta . E agora , fazer o quê ?
Em tempo : eu apago a luz , fecho a torneira e ando de bicicleta . Mas não sei o que fazer .
Fonte - Revista O GLOBO - pág 32 - Colunista Convidado Data - 25 de maio de 2008 - Felipe Lacerda , cineasta , é autor da série documental " Na China" ,
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