domingo, 15 de setembro de 2024

Seu inimigo mais íntimo

 





Estou na  maior praça do mundo . Tiananmen , Pequim . Poderia estar  na menor , já que não enxergo    dez metros à frente do meu nariz .O ar é pesado e opaco. As cores  esmaecem , os contornos se diluem .

A  poluição chinesa , em duas semanas , vai cair  sujeirada faz amarelar o  sorriso da  Mona Lisa  lá em  Paris . A  fumaça da  Europa desaba em Manaus . As queimadas fazem chover cinzas na  Avenida  Pau-lista , cujos carros sujam o  ar da  África , A poeira dos  bombardeios  americanos no Iraque escurece o  Taj Mahal . Um  bilhão de  indianos , com seus carros  populares novinhos , sujam o céu da  China , cu- cujas  centenas de milhões de  novos consumidores  alimentam  a cadeia a  cada dia .

Corte rápido para  o  americano tomando um copão de  café  na  cadeia de lojas  da  logomarca verde ,  redondinha . Close  na  mão do gringo . Entre os dedos e o copo , um curioso anel de papel reciclado evita que o  cowboy se queime . Em letrinhas não tão  miúdas , orgulhosas , lê-se que aquele estranho  aparato ajuda  a " save  the  planet " .

" Save  the  planet  "  ( salvar  - ou  economizar - o planeta ) ? Como  a  produção de  ( mais ) um  pe-  daçao de papel pode  salvar  o  planeta ? Que  baleia ! Por que não usam xícaras de porcelana ?

De dentro da lixeira transbordante salta um especialista pintado de  verde- dólar que esclarece tudo .    " A  energia para  produzir uma  xícara e a água para lavá-la várias vezes consome ainda mais recursos  naturais que o  papel reciclado do protetor de calor e o descartável  do copo envernizado " . Não  sei    se  é  verdade ou mentira , mr  Dollargreen , mas , e se as suas  milhares de lojas simplesmente não   existissem ?  Quantos copinhos a menos por dia ?  " Não podemos fazer isso , seria uma  catástrofe , replica o  monstrinho  Bucks . " Quantas famílias perderiam  seu sustento se todos  os nossos cafés fe -  chassem  as  portas ? "



Esse é o  raciocínio dominante : deve-se fazer o  maior  marketing possível sobre poluir o  menos pos-  sível  mantendo  intacta  a  sociedade de  consumo , essa sim  intocável . Se é a  cadeia  do  consumo que faz girar o mundo , não se pode  atacá-la jamais , sob o  risco de a Terra  parar de  rodar .Tratar-se-   ia , pois , de  " racionalizar " o uso  dos  recursos , fazer de tudo para que não mudemos substancial - mente nada . 

Na virada do século passado , surgiram na  Europa  escolas de  pensamento que , em discordância da  aceleração da  vida  pós - Revolução  Industrial , pregavam utopias  de retorno , o abandono das  má -  quinas ,  o retorno à  vida simples  do  campo . Na  virada deste  século , o mesmo fenômeno  se fez  notar  nos  EUA  , onde famílias se mudaram para o mato  e  os pudo  polui . Esse é o problema . Estou escrevendo mais , no Natal , em vez  de  computadores , presentearam os  filhos  com arranjos de gra-vetos . Os  " retornistas "   não vingaram  e o    mundo  inteiro continua querendo  consumir  mais .

Tudo  polui . Esse é o problema . Estou escrevendo num  computador que devorou sei lá quanto de re-cursos naturais para  ser produzido . A energia  elétrica que o possibilita , a  comida que me move , a água  que   eu bebo , a roupa que eu visto , tudo o que eu  tenho de  mais  fundamental para  a  sobre  -  vivência ajuda a  destruir a  Terra . E agora , o que fazer para  eliminar  o  inimigo  que vive dentro  ? 

Sinto  decepcionar você que achou que eu  teria uma  solução para o  dilema . Não tenho . Confesso    que gastei a tinta e o papel  dos milhares de exemplares desta revista para  constatar o  incontestável e  não  oferecer  solução  alguma .

Me  contento em  retirar  o problema de onde ele não está nos  paliativos  - marqueteiros ou sinceros     - é posar o  problema  onde  ele  deve , na  lógica do  consumo e , em  última  instância , na  própria   existência  humana . 

Com a  incorporação  de  novas  massas  à sociedade  de  consumo , o problema  só  piora . Não adi -  anta fechar  a  torneira , não adianta  apagar  a luz , não adianta  ir  de bicicleta  , é tudo  eufemismo ,  tudo paliativo  , nós  somos o  câncer  do  planeta . E  agora  , fazer  o quê  ? 

Em  tempo : eu  apago  a  luz , fecho a  torneira  e ando de  bicicleta . Mas  não  sei  o  que  fazer .

Fonte  -  Revista  O  GLOBO   -   pág  32  - Colunista  Convidado                                                              Data  - 25  de  maio  de  2008  - Felipe  Lacerda , cineasta , é autor  da série  documental  " Na China" ,

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