terça-feira, 24 de maio de 2016

O Barroco Brasileiro



O ESTUDO DA ARTE NO BRASIL envolve, tanto do ponto de vista sociológico como estético, uma série de questões que decorrem do fato de o nosso conceito de produção artística ter sido assimilado e ter desenvolvido a partir da colonização europeia. Assim, aquilo que entendemos por arte e que constitui o patrimônio disponível para a formação de nosso gosto e para o estudo de pesquisadores e historiadores corresponde ao que foi produzido após a conquista portuguesa. A arte nativa, criada pelos diversos grupos indígenas que aqui viviam, foi reduzida a um conjunto de práticas de interesse meramente antropológico. E, embora se reconheça nessa produção seu inegável valor estético, responsável inclusive por certas características da arte brasileira, os moldes em que foi produzida - mesclada às atividades políticas e religiosas dos grupos – não lhe garantiram legitimidade. A arte como atividade autônoma, desenvolvida individualmente por pessoas que a ela se dedicam profissionalmente e com valor de mercado, é uma herança essencialmente europeia trazida para a América junto com outros instrumentos da colonização, como o Estado Nacional e a religião católica, excluindo da categoria “arte“ outras manifestações mais “ritualizadas“ e coletivas que anteriormente existiam na colônia. 
Assim, toda a produção artística de nossos indígenas esteve ligada a  outras práticas da vida social, como ocorreu com alguns povos não europeus imersos em civilizações mais homogêneas, como os africanos. Por exemplo. Seu estudo, entretanto, permaneceu no âmbito da pesquisa etnográfica ou, simplesmente, como uma base sobre a qual se erigiu a verdadeira arte. Essa postura resultante do colonialismo relegou a arte plumária, a cerâmica e a pintura corporal a uma condição subalterna, quando não a de manifestações de barbárie e exotismo.
Quando o Modernismo se firmou no Brasil , no século XX, despertando o  interesse de intelectuais e artistas por nossa cultura nativa e folclore, muito do que se produzira artisticamente havia já desaparecido para sempre. As pesquisas que procuraram dar conta desse legado acabaram por se deparar com uma arte transfigurada e, em muitos casos, só accessível através de suas reminiscências e influências. A troca de traços culturais e a referência entre duas culturas – a europeia e a indígena – ocorreram dos  dois lados. A antropologia Lux Vidal, no catálogo da mostra Tradição e Ruptura, menciona a existência, na atualidade , de duas artes indígenas: uma realizada “para dentro“ do grupo, isto é, integrando seu cerimonial religioso ou servindo à atribuição de status social  aos seus membros, e outra “para fora“, destinada a satisfazer a curiosidade dos brancos.
Data da década de 1970, a primeira exposição de arte plumária apresentada em sala especial, na 17 ª Bienal de São Paulo. O texto das etnógrafas Sonia Ferraro D Horta e Lúcia Hussak van Velthem  publicado no catálogo da exposição reconhece a importância dessa manifestação artística que exigiu séculos de conhecimento natural aliado a uma técnica complexa de manufatura. A arte plumária, entretanto, se encontra ameaçada de extinção pela aculturação indígena e pelas transformações impostas ao meio natural pelo homem branco, levando inclusive à extinção de pássaros, matéria–prima de tal técnica artística. Por essa atitude colonialista e pelas dificuldades de preservação da arte indígena, quando falamos da arte brasileira, estamos nos referindo àquilo que foi produzido em moldes europeus, a partir de noções introduzidas por nossos colonizadores e que dizem respeito a suportes, temas, técnicas e relações de produção. No entanto, essa arte deve muito a toda uma herança estética dos povos nativos que a cultura européia ajudou a destruir.
Assim, a partir de tal perspectiva , podemos dizer que o primeiro momento artístico nacional foi o Barroco, introduzido no Brasil pelas ordens religiosas, esses grandes mentores de nossa cultura colonial. O Barroco havia se desenvolvido na Europa no século XVII , fazendo oposição ao Renascimento e a todas as premissas estéticas classicistas, tais como harmonia, proporcionalidade e simetria. Apresentou tendências diferentes conhecidas por : gótico, de Trento, manoelino , jesuíta e até romântico, que tinham como valores comuns a assimetria e a irregularidade, que lhe valeram, no século XVIII, a denominação geral de Barroco, inspirado em uma pérola de formato bizarro e irregular. Correspondendo  a quase toda a produção artística que vai do Renascimento ao Neoclassicismo, esse estilo foi além da produção  material, constituindo-se numa cultura que incluía maneiras de ser e pensar e uma atitude crítica e dicotômica frente à realidade. Segundo Antonio Cândido, sociólogo e teórico da literatura, e José Aderaldo Castello, historiador da literatura. 

O Barroco se define libertador, amante da força, voltado para a paisagem e apegado ao espírito pagão, intensamente dinâmico. Panteísmo, dinamismo, assim como audácia, imaginação e exageração são características barrocas, no seu desejo de valorização do humano contraditório e instável, transitório e finito. 
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O Barroco propunha-se a integrar as artes e as linguagens, criando um mise em scène de natureza espetacular que parecia absorver o meio social e as relações entre a pessoas. Espetaculares eram os palácios erguidos na Europa com seus jardins e fontes, palcos de uma corte teatral e maneirista, assim como os templos nos quais a igreja Católica promovia cultos feéricos em oposição ao ceticismo protestante. 
O círculo e as curvas eram formas por excelência eleitas por essa estética do momento e da infinitude. O artista barroco queria a atenção de seu público e, por isso, era exuberante, persuasivo e exagerado. Desejava envolver o observador e o ouvinte, prendendo-os num clima catártico e apaixonado
Essa estética teve grande aceitação na Península Ibérica e em especial em Portugal, cuja cultura, além de essencialmente católica e monárquica, tendo para o milenarismo. A influência moura e o misticismo dos cristãos-novos criaram um ambiente propício às crenças religiosas exacerbadas. O sebastianismo, movimento de crença e esperança no retorno de Dom Sebastião, monarca português cujo cadáver não foi encontrado após a derrota contra os mouros na batalha de Alcácer–Quibir, logo se transformou em messianismo – a fé no surgimento de um salvador da humanidade. Esse espírito animou o movimento das ordens religiosas, especialmente a dos jesuítas, em sua luta contra os infiéis – pagãos e protestantes. O Barroco, por ser um estilo artístico expressivo e emocional, atendia aos anseios dessa mentalidade mística e fervorosa.  
Entende-se assim por que o Barroco é considerado o primeiro movimento artístico verdadeiramente universal e por que Portugal e Espanha se encarregaram de disseminá-lo por suas colônias como parte de seu arsenal colonialista.
No Brasil, o Barroco se deparou com uma cultura indígena festiva e “ritualizada“ que se mostrou propícia à compreensão e adoção de tal gosto. A mística dos nativos, sua expressividade e oralidade vieram ao encontro desse movimento artístico cheio de mistério e emoção. A tarefa de conversão que os jesuítas tomaram para si teve nos princípios expressivos barrocos um forte aliado. Assim, a história da colônia se viu marcada por uma arte teatral e retórica, expressiva e “devocional“ , envolvente e espetacular , uma arte que , sabendo lidar com as ambiguidades e as dicotomias, teve a capacidade de integrar heranças e legados. 
O território da colônia foi dividido, em partes ao longo da costa . Nesses pontos estratégicos, erigiram-se templos, seminários e fortes que se incrustaram em todo o litoral, nos centros das vilas, nos acampamentos das missões indígenas e nas cidades que sediavam os ciclos econômicos. Nessa paisagem, começou a seu gestado um barroco brasileiro cujas bases se encontravam na Europa, mas cuja essência resultou dessa história de conquista, conversão e resistência. Considerar tal arte como um Barroco tardio é desconhecer seus particularismos e a mestiçagem de estilos estéticos que ele promoveu, essa aculturação lenta que durou quase três séculos. 
O começo foi tímido. A partir do século XVII, começa a produção de uma estatuária sacra feita sob a orientação da Igreja para seus rituais religiosos e para a devoção dos fiéis. Espelhando-se  nos modelos europeus, essas imagens já demonstravam originalidade ao serem modeladas como barro, e não com madeira ou  pedra como na metrópole, aproveitando-se a habilidade dos indígenas que prontamente aprenderam a esculpir os santos. Pouco a pouco, a produção deixa os templos e ganha as estradas, passando às mãos da população da colônia, que produzia as imagens para a sua devoção íntima. As capelas domésticas e os oratórios exigia que a arte sacra entrasse pelas residências para o culto em família.
Á medida que a vida colonial  se tornava mais segura e estável, os templos passaram a ser de pau-a-pique, seguindo a técnica nativa, e os padres puderam deixar suas habitações e templos provisórios erguidos, inicialmente , como acampamentos precários. Nos séculos XVI e XVIII, o desenvolvimento do Barroco acompanhou os surtos da economia colonial – para o Norte e Nordeste, no apogeu do engenho de açúcar e na expansão do gado; e para as Minas Gerais, com a descoberta do ouro e diamantes. Essa arte se enriquecia juntamente com a economia exportadora e exibia o sucesso das atividades econômicas e produtivas. Os artesãos, em sua maioria negros escravos, especializavam-se e adquiriam maestria na arquitetura, no entalhe da pedra, na cultura de madeira e argila, na pintura. Uma arte diferente, fruto de heranças e contingências, nascia na colônia com grande desenvoltura.
O Barroco brasileiro era festivo e organizava a vida social da terra  com seu extenso calendário de comemorações, cujas festas eram embaladas por procissões, mascaradas, danças e apresentações teatrais das quais participavam brancos, índios e negros. Com farsas e autos, os jesuítas introduziam o teatro no Brasil para contar a história dos santos ou representar passagens da Bíblia. Uma arte mestiça, ambígua e dissimulada percorria a colônia, lançando as bases de uma cultura oral, comunicativa, emocionada e teatral, para a qual os gestos e a expressividade eram o elemento –chave de comunicação.
O processo lento e secular de gestão e desenvolvimento da arte barroca é visível no grande número de ampliações, reconstruções e reformas que marcaram as paredes dos templos e prédios públicos, ao contrário do que acontecia na Europa, cujas construções obedeciam a um plano prévio. No Brasil, essa arte se constituiu em história e em testemunho das transformações da sociedade.
O apogeu do Barroco se deu em Minas Gerais, onde ordens religiosas e irmandades se rivalizavam pela conversão do povo e pela construção dos mais suntuosos templos. Deixava-se para trás a contenção jesuítica e procurava-se comover as pessoas por meio de manifestações artísticas que falassem às suas almas e que fossem, ao mesmo tempo, suntuosas e discretas. Mas , mesmo em Minas Gerais, a construção dos edifícios foi lenta , como lentas foram a conquista da terra e a conversão do gentio. Uma arte coletiva, anônima e mestiça percorria a serra e se instalava de forma indelével em suas vilas. Havia nesse fervor religioso e estético o anseio pela riqueza, a saudade a que ficavam obrigados os aventureiros e seus escravos, a herança artística de mil culturas diferentes e a experiência de artesãos que atravessavam oceanos colecionando influências.
A pintura não foi arte maior dessa época; mais brilhantes foram sua escultura e arquitetura, imortalizadas por Aleijadinho , Antonio Francisco Lisboa. Não podemos, porém, deixar de analisar a herança dessa primeira manifestação pictórica que resistiu tenazmente à decadência das cidades e às intempéries. Essa pintura apresentou diferentes graus de qualidade, objetivos e realizações, podendo-se encontrar desde aquela simplesmente decorativa, cuja função era cobrir de figuras simbólicas os claros existentes nas paredes dos edifícios , até, manifestações bem-sucedidas que representavam as cenas mais comoventes da História Sacra, dispostas geralmente, nas partes mais importantes dos templos , como o teto da nave e o altar–mor. Outras enfeitam as capelas onde os sacerdotes se preparavam para o culto e recebiam os fiéis de maior prestígio.
Pág   56 a 59

Fonte – A  IMAGEM  DA  MULHER - Um estudo da arte brasileira 
CRISTINA COSTA   SENAC, RIO - 2002

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