terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O ESTUDO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA E DO NEGRO NO BRASIL: BREVE ROTEIRO




Corrigindo  o  olhar  vesgo  sobre  a  África 

A reconstrução do regime democrático, após o período militar de 1964-85, contribuiu para a mudança do olhar brasileiro sobre a África. É de ressalvar, contudo, que durante os últimos governos desse regime  - do general Geisel e do general Figueiredo – ocorreu um substantivo aumento de trocas comerciais e gestos políticos de grande repercussão.
É o caso do imediato reconhecimento da independência de Angola sob o governo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) quando o Brasil foi o primeiro país a expressá-lo de júri ( de fato, foram os países africanos e Cuba já com tropas no terreno), bem como da independência da Guiné Bissau, sem que o PAIGC ( Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde ) ocupasse a capital. Isso foi inédito na história do Itamaraty
Não se pode deixar de salientar que esses gestos diplomáticos foram parte integrante de uma específica política de Estado e que estavam também fortemente impulsionados por razões econômicas e circunstâncias políticas: a crise do petróleo de 1973 e a Revolução dos Cravos, em 1974, que nos livrou de peias que nos prendiam ao regime ditatorial português.
Essas circunstâncias foram detonadoras da política de Pragmatismo Ecumênico e Responsável adotado pó Geisel. A aproximação com a África foi então revestida de um discurso culturalista de exaltação identitária e de promessa de resgate da dívida histórica do Brasil pelo passado escravista. Essa política também deve ser avaliada pelo vulto que alcançou nas relações Sul-Sul da época e também pelas pontes que construiu entre o Brasil e a África. Contudo, após 1985, o transito nessas pontes diminuiu consideravelmente  , derivado da grande crise econômica que atingiu  , ao mesmo tempo  , os países das duas margens do Atlântico. 
Feito este breve retrospecto, dele se pode concluir que esse período provocou o despertar de uma nova relação com o continente africano, levando o Brasil a experimentar um novo olhar sobre a Africa que, no entanto, só começaria a perder seu estrabismo secular a partir dos meados da década de 1990. A possibilidade de um novo olhar sobre o continente tornou-se concretamente possível com a “ obrigatoriedade “ de se estudar a África e o nosso povo negro a partir do Decreto Lei 10.639 de 9 de janeiro de 2003, ato esse reclamado pela sociedade civil sob a persistente liderança dos nosso movimentos negros.
No decorrer do seu processo de aplicação, isto é, do estudo da África e da história do negro no Brasil, possibilitar-se-á estender por todo o país o resgate da história dos negros como aliás de toda a nossa gente.
Por enquanto, embora com o avanço dos cursos de Graduação e Especialização já existentes  , de novas pesquisas e da disponibilidade  , já razoável nas circunstâncias  , de edições brasileiras da nova bibliografia sobre o continente africano, ainda predominam no estudo da História da África conteúdos em que  , freqüentemente, coexistem o viés colonial e uma visão idealista, pretensamente resgatadora do passado – romantismo sobre a comunidade rural igualitária e quase paradisíaca que viria a ser destruída pelos europeus. Também está presente afro-pessimismo empenhado em vitimizar a África como se todos os seus males viessem do exterior – escravismo, colonialismo, imperialismo e o neoliberalismo da globalização. Os responsáveis principais desses males seriam as fronteiras artificiais, que gerariam lutas tribais, que produziram governos ditatoriais, corrompidos pelos europeus.  A vitimização continua a partir das epidemias ( Aids, em destaque  ) e catástrofes naturais etc.
As mazelas apontadas ainda existem, embora as suas razões sejam predominantemente endógenas à África e possam ser encontradas também em outros continentes, em outras épocas. Enquanto isso, poucos brasileiros se apercebem que a África viveu uma época-chave da sua história – a descolonização  - em tempo intenso de Guerra – Fria, seguido de um neoliberalismo adverso.
O continente está se ajustando à velocidades das mudanças ocorridas a nível doméstico e internacional  e  , no seio de inúmeras contradições  , ele vai refazendo a sua história. Mais do que a redução dos conflitos do pós – Guerra–Fria  - menos controláveis que os anteriores - está diminuindo e seu descontrole está sendo amainado com a intervenção da União Africana, herdeira da OUA, e não mais de potências estrangeiras. 
A democracia vai se tornando um valor universal e uma tendência crescente  , não só pelas eleições que já traduzem rotatividade no poder, como cada vez mais são resultado do fortalecimento de uma ainda incipiente sociedade civil. As taxas de baixa condição de vida começam a ser revertidas e até o crescimento do PIB  se faz sentir, após o início deste milênio  , a ponto de ultrapassar os 5 % de média em 2006.

Instituições  e  organizações Negras
  
A característica mais notável dos africanos e seus descendentes submetidos no Brasil à escravidão foi a resistência cultural e social que sempre exerceram. Derivada destas, resultou a persistente capacidade de organização. Esta não se limitou à resistência mas, sobretudo no período pós – Abolição  , visava a formas de inserção  , as mais favoráveis possíveis, na sociedade do seu tempo. Mestre Clóvis Moura enfatizava isso, embora reconhecendo que estas organizações pós-Abolição fossem por vezes intermitentes e frágeis. Contudo, sucediam-se umas às outras, cada vez mais preparadas às exigências do seu tempo. 
Dentre várias dessas instituições, destacamos duas, de caráter religioso: as Irmandades e as “ casas de santo  “

As  Irmandades  

As Irmandades, ou confrarias religiosas, foram as primeiras instituições negras publicamente reconhecidas. Através de uma dinâmica sincrética de adesão ao catolicismo e da manutenção dos principais valores africanos, seu intento era o de organizar, com a maior autonomia possível  , um espaço de sociabilidade fraterna, uma cota de manutenção de identidades étnicas particulares e, sobretudo, de assegurar assistência mútua  , marcante nos casos de doença e de morte. Neste último caso, um funeral gregário e solene era importante nesse rito de passagem para a ancestralidade.
As Irmandades tiveram também um papel destacado na recolha de fundos para a obtenção de alforrias e participaram ativamente na luta abolicionista, sobretudo na Bahia e no Rio de Janeiro.

As  religiões  de  culto  aos orixás, voduns, inquices  e  aos ancestrais
  
As instituições religiosas de origem africana, mais conhecidas como candomblé e umbanda, passaram a ter maior visibilidade já no início do século XIX, com o crescimento da urbanização e com a chegada dos africanos oriundos da região do Golfo de Benin, com destaque para os iorubas, do sudoeste da Nigéria e leste do Benin
Por mais de um século foram perseguidas pelo poder público.  Em plena década de 1930, mais de 40 anos depois da Abolição, só podiam realizar seus cultos com autorização policial.
Não se pode deixar de levar em consideração que as variadas culturas étnico-regionais, para aqui transplantadas pelos africanos, possuíam uma diversidade não só cultural, mas de nível técnico que derivavam de dois fatores básicos: a época em aqui chegavam e a região de onde provinham. As mudanças no tempo e no espaço africano da sua proveniência tinham decisiva importância nos seus padrões culturais e, sobretudo, técnicos.
A extraordinária adaptação e recriação de valores e técnicas aqui produzidas pelos africanos e seus descendentes  - mesmo durante três séculos na condição de escravos  - traduziram –se em diversidade, em riqueza cultural e técnica, da qual todos os brasileiros usufruem e, no conjunto, constituem a marca registrada da presença brasileira no mundo de hoje. 
Gilberto Freyre considerava o africano como co-colonizador do Brasil, junto com o português, com a colaboração do indígena. Isso pela liderança que exerceu na “tropicalização “ da camada escravocrata da época. Podemos traduzir esta tropicalização não só no campo da alimentação, da farmacopéia, do vestuário e no campo simbólico, como na tecnologia do ferro, na pesquisa do ouro e dos diamantes e na criação extensiva do gado. Essa participação ( e não só “ influência“ , como ainda se diz por aí, quando pejorativamente referida à “ culinária, folclore e crenças ( ou crendices) “ foi feita a partir de três situações sociais sucessivas  - o africano  , o escravo e o negro.

Quilombos

Os quilombos foram a instituição negra de maior carga simbólica e repercussão histórica. De matriz predominantemente angolana, adaptada às condições da escravidão brasileira contra a qual lutaram até a Abolição. A áurea de resistência  , e incarnada sobretudo na figura de Zumbi - um dos mencionados heróis nacionais  - diminuiu a visibilidade de outras características dos quilombos.
Além da conquista da liberdade e, no seu espaço, a construção de uma cidadania, eles constituíram micro-sociedades camponesas que, por circuitos paralelos, abasteciam os engenhos de inúmeros produtos. Desde os mais imediatos, como a lenha, até os excedentes agrícolas que produziram e eram escassos nos latifúndios absorvidos pela rentável monocultura.
Referência central na nossa História, eles estão também, até hoje, gratificadamente para todos nós  , presentes nas artes brasileiras: em filmes ( Ganga Zumba, Quilombo ) , no teatro, Arena Canta Zumbi, além da pintura e literatura. Deram nome a um jornal, Quilombo, órgão do Teatro Experimental do Negro, e, como não poderia deixar de ser, a vários enredos de escolas de samba, desde 1960, quando a Acadêmicos do Salgueiro adentrou a avenida com Quilombo dos Palmares.
O 20 de Novembro, data da morte de Zumbi  , é o Dia da Consciência Negra. Não é só uma data afro-brasileira  , mas um marco de referência da identidade nacional. 

Fonte    -   Revista      A  COR  DO  BRASIL    ano 2  - nº 2   2007
 AÇÃO  AFIRMATIVA  - ATITUDE POSITIVA  págs  10, 11 e 12
José  Maria  Nunes  Pereira 



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