terça-feira, 30 de julho de 2019

O poeta da RAZÃO

 


João  Cabral  de  Melo  Neto,  um  dos  grandes  poetas  contemporâneos  de  Língua  Portuguesa, construiu uma  obra  marcada  por  um  estilo  que  beirava  a  engenharia  

Em seus últimos anos de vida, João Cabral de Melo Neto vinha sendo insistentemente apontado como forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura , escolha que inauguraria a ainda inédita galeria dos brasileiros laureados com o maior dos reconhecimentos literários. Perguntado por um jornalista se desejaria ganhar o Nobel, Cabral respondeu: “Quem é que não desejaria “?

Realista , fez questão de acrescentar: “mas não creio que haja possibilidade “ . O poeta, que construiu toda sua obra privilegiando a razão, estava mais uma vez, coberto dela.  Afinal, uma crítica frequente é a de que os critérios adotados para concessão do Nobel de Literatura, em geral, parecem não valorizar de forma adequada os aspectos estritamente literários, concentrando-se mais nos políticos. Seja como for, o fato é que em 1998 o primeiro ( e até hoje, o único ) Nobel concedido a um escritor de língua portuguesa coube ao lusitano José Saramago e , em 1999 , ano da morte de Cabral, ao alemão Günter Grass. Como desde 1974 os estatutos da Fundação Nobel vedam os prêmios póstumos, o comitê responsável optou assim por deixar definitivamente de incluir, entre seus premiados, o nome  do excelente escritor pernambucano.

QUEM  FOI  JOÃO  CABRAL  DE  MELO  NETO ?

Nascido no Recife em 9 de janeiro de 1920 , João Cabral de Melo Neto era primo de  Manuel Bandeira  e Gilberto Freyre . Passou a infância e a adolescência em engenhos de  açúcar  pernambucanos , conhecendo a literatura de cordel que influenciou toda sua obra . Em 1930 , mudou-se com a família , do interior para a capital do Estado . Só então , aos 10 anos , iniciou seus estudos , no Colégio Marista . Aficionado por futebol, chegou a ser campeão estadual juvenil em 1935 , jogando pelo Santa Cruz . Com 17 anos , trabalhou na Associação Comercial e em seguida ,no Departamento de Estatística de Pernambuco . Aos, 18 começou a frequentar a roda literária  do Café Lafayette ,onde entrou em contato com o realismo francês  que , segundo ele , o marcou muito . Em 1940 , no Rio de Janeiro ,  conheceu  Murilo  Mendes, Carlos Drummond de Andrade e os intelectuais que se reuniam no consultório do médico e poeta Jorge de Lima . Em 1941 , participou do Primeiro Congresso de Poesia do Recife. No ano seguinte, lançou seu primeiro livro de poemas, dando início a uma série de cerca de vinte volumes , ao longo de quase meio século. Ainda em 1942 , no Rio , foi aprovado em concurso para trabalhar no DASP ( Departamento de Administração do Serviço Público) .

Em 1945 , quando saiu seu segundo livro , Cabral prestou  concurso  para a  carreira  diplomática. Aprovado, iniciou seu trabalho no Itamaraty em 1946, sendo designado no ano seguinte vice-cônsul em Barcelona. Transferido para Londres, retornou ao Brasil em 1952, para responder a inquérito em que era acusado de subversão . Foi posto em disponibilidade sem vencimentos pelo Itamaraty, e cedido ao Ministério da Fazenda . Porém ,recorreu ao Supremo Tribunal Federal e conseguiu anular a decisão, com o arquivamento do processo.

Reintegrado , serviu no Departamento Culutral do Itamaraty de novo na Espanha , como cônsul adjunto em Barcelona e em Sevilha . Prosseguindo na carreira , trabalhou em Marselha , Genebra , Berna , Assunção , Dacar , Tegucigalpa e Quito chegando a embaixador . Em 1978 , foi eleito para a Academia Brasileira de Letras na cadeira 37 , cujo patrono é o poeta Tomás Antônio Gonzaga .

Dentre os numerosos prêmios e comendas que recebeu , pode-se mencionar os internacionais Camões ( Brasil e Portugal ) em 1990 , considerado o maior prêmio para um escritor de língua portuguesa pelo conjunto de sua obra, Neustad (Estados Unidos ) em 1992 e Rainha Sofia ( Espanha ) em 1994 . João Cabral morreu no Rio de Janeiro , em 9 de outubro de 1999.

A propósito , nas décadas de 1970 e 1980 , houve vários debates sobre quem seria "o maior  poeta  brasileiro vivo " : João Cabral ou Carlos Drummond de Andrade (1902 -1983 ) . Desautorizado essa competição, Cabral dizia que era amigo de Drummond desde que se conheceram , no início dos anos 1940 , tendo-o inclusive como padrinho de casamento. "Ele foi a grande influência da minha vida ( ...) Nunca houve rivalidade entre nós. Sempre o tive como um mestre, de forma que não compreendo isto", declarou em entrevista .

Cabral é classificado por alguns como "um poeta de poucas palavras e poucos assuntos" , numa definição que combina sua postura pessoal introspectiva e arredia à insistência quase patológica em alguns temas. Um dos mais importantes críticos literários brasileiros contemporâneos , Wilson Martins , sintetizou sobre a repetição temática do poeta: "A psicologia poética de João Cabral enquadra-se nas paralelas de duas séries de metáforas obsessivas, ambas de natureza mineral:   a pedra e a água " .

De fato, são duas imagens bastante recorrentes na obra de Cabral . A pedra simboliza a aridez do Nordeste, ao mesmo tempo geográfica e humana. Com ela, o poeta arquiteta suas composições , sempre busca da forma exata, com geometria, cálculo e clareza, como se fosse um engenheiro. A esse respeito , ele explicava : "Qual a influência ? É difícil dizer. Enquanto você vive, você é influenciado. Em geral, há uma influência essencial, definitiva, que marca a vida da pessoa.  Nesse caso, eu posso dizer que filosoficamente foram os livros de arquitetura  de  Le Corbusier" .



Quanto à água ,além de aparecer como elementos de destaque em numerosos poemas, como em Imitação da água , pode-se considerar que entre o temas centrais de três livros que o poeta escreveu , O Cão sem Plumas, O Rio ; e Morte e Vida Severinaestejam o rio de sua cidade natal, o Capibaribe , e os habitantes de suas margem, por sua vez fortemente condicionados por sua presença .

A poesia de João Cabral fala diretamente à razão , sua grande emoção consistindo em conter o derramamento lírico e resistir à ênfase , construindo textos descarnados , secos e objetivos. Segundo ele , respondendo aos inconformados com um poeta que não falava do amor , só se pensa em amor subjetivo ou voltado para o corpo. Em seus textos, entre a palavra concreta e a abstrata, fez uma escolha definitiva pela primeira. Embora essencialmente racional, sua poesia passa pelos sentidos, privilegiando a impressão concreta sobe e abstração . Sem renegar o lirismo ( um atributo da alma ) , ele desprezava a lírica cantante , chorosa , os poemas feitos para serem declamados ao som da lira , até por não ter qualquer familiaridade com a música . 

Apesar disso , impressionou-o fortemente o ritmo característico da Andaluzia , que motivou muitos de seus poemas. Recusava o verso livre e a forma irregular dos modernistas , preferindo trabalhar com métricas variadas , estrofes tradicionais e rimas toante , mais sutis e discretas que as consoantes. Ele afirmou : "Para mim , esse negócio de inspiração não funciona. Sou incapaz de uma sentada produzir um poema definitivo. Morte e Vida Severina , por exemplo , foi reescrito várias vezes. No mais , tenho o vivido de leitura, que me coloca sempre como um severo autocrítico de minha obra " .

Curiosamente , no livro A educação  pela  pedra  , Cabral incluiu o poema "Num  monumento  à aspirina " . Comparando o remédio ao sol, o poeta homenageou o paliativo que usava para suavizar a constante dor de cabeça que o acometeu diariamente, por anos. Chegou a declarar , em entrevista à televisão , que  sua inspiração ( sempre cerebral ) provinha do comprimido , do qual tomava de três a dez unidades por dia . 

Cabral costumava ficar muito irritado quando era tratado de poeta: "a coisa que me dá mais raiva é alguém me chamar de poeta. Chegam ao cúmulo de me escrever cartas endereçadas 'ao poeta João Cabral de Melo Neto' . Tenho vontade de devolver tudo com um bilhete: ' não é aqui  ' . Ninguém escreve ' ao engraxate Fulano de Tal  ' ou 'ao romancista Jorge Amado ! ' O funcionário da embaixada vem me entregar a carta e eu sinto aquele ar de ironia . Por que poeta ? Poeta não tem isenção nenhuma . Nem imunidade" .

Outra curiosidade exemplifica sua personalidade singular: embora houvesse sido escolhido e fosse considerado membro da Academia Pernambucana de Letras, Cabral nunca compareceu como acadêmico a nenhuma sessão daquela Casa: nem sequer para tomar posse...

 A exemplo do que já havia acontecido com dois outros grandes autores da literatura universal no século XX , o irlandês James Joyce  ( 1882 - 1941 ) e o argentino Jorge Luís Borges ( 1899- 1986 ) , também eles ignorados pelo prêmio Nobel, João Cabral ficou cego para leitura . No seu caso , isso ocorreu por volta de 1992 , aos 72 anos , ocasião em que praticamente encerrou sua carreira literária . "Um poema  se  faz  vendo, / um  poema  se  faz  para  a  vista, /  como  fazer  o  poema  ditado  / sem vê-lo na  folha  inscrita ?", perguntava nos raros versos datados de 1995, ainda inconformado com a cegueira. Apesar dessa grave limitação, o poeta não abandonou completamente  os livros: até o fim da vida, costumava pedir à filha que lesse para ele.

Revista  - LITERATURA    -  págs  30 a 33   -  número  32 
Conhecimento  Prático  - Sergio Amaral  é jornalista formado pela USP e escritor , 
ganhador de vários prêmios literários e do Prêmio Jornalístico Vladimir  Herzog  de Anistia e Direitos Humanos  , categoria Literatura .

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