Das lavouras de café
Ao Sambódromo
O documentário Samba
à Paulista, feito por alunos de cursos da USP, narra a história do Ritmo trazido pelos negros que hoje inspira milhões na
comemoração do Carnaval de São Paulo
Na periferia marginalizada de uma São Paulo em
construção, o som retumbante dos
batuques anunciava uma cultura imigrante que mais tarde influenciaria a cultura
brasileira de forma definitiva. Os
negros, últimas gerações de escravos do
século 19, resgatavam sua identidade
perdida nos navios negreiros com o som dos seus instrumentos peculiares em um
samba rural e popular, improvisado em
meio às lavouras cafeeiras. Não eram
poetas ou compositores, mas cantavam
sua vida em ritmo dançante e contagiante.
Esta história e suas consequências são ricamente e contadas
no documentário Samba à Paulista – fragmentos de uma história esquecida. O documentário realizado por alunos da
Escola de Comunicações e Artes e da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da USP resgata, através de depoimentos e vídeos antigos, a história daquele que é o mais característico ritmo musical
brasileiro e que na próxima semana embala a todos no festejo do Carnaval. O documentário está sendo exibido pela TV
Cultura em três partes. O último
episódio vai ao ar nesta quinta-feira,
15 de fevereiro, às 23 h 40.
Com poucos registros históricos existentes, o documentário trabalha sempre
com um diálogo entre o histórico e o atual, costurado pelo depoimento de estudiosos e daqueles que viveram
momentos áureos deste movimento popular. Personagens como Toniquinho
Batuqueiro, Mestre Feijoada, Geraldo Filme, Germano Mathias e Nelson Primo contam as
histórias que São Paulo não registrou e trazem à tona um movimento que por pouco
não se perde no tempo. E é neste
resgate de depoimentos e da história que está a grandiosidade do
documentário.
Quando os negros chegam das lavouras de café à capital após
a instauração da Lei Áurea de 1888, trazem consigo toda a cultura musical do
interior. A cidade não os aceita e eles
partem para a periferia em um movimento urbanístico de marginalização. Nas fronteiras da cidade, eles constroem centros de resistência e
terreiros onde podem desenvolver sua cultura. “Entender a participação do negro neste movimento é a parte mais
ensaística do documentário. Trabalhamos com depoimentos como gancho para
contar esta história e usamos os raros textos que a retratam para ajudar a
compor o cenário“, explica Gustavo Mello, diretor do documentário.
“Esses negros trouxeram para São Paulo o mesmo ritmo que
levaram para a Bahia ou para o Rio de Janeiro, mas aqui isso se perdeu“, aponta Eduardo Piagge, assistente de
direção e pesquisador. Em São
Paulo, o negro não conseguiu se
integrar à sociedade e assim como seu samba de batuque tornou-se elemento
marginal até meados do século 20.
Já no Rio de Janeiro a, cidade que mais tarde seria modelo
de Carnaval para São Paulo, os poetas e compositores abraçaram esse ritmo
popular e improvisado. Com a ajuda da
Rádio Nacional, a urbanização do samba
rural foi difundida e popularizada. “O
que mais difere no Rio foi a receptividade do espaço urbano a este movimento
rural. Lá, eles estão mais próximos dos morros onde se desenvolveu o ritmo e
mais para frente você vê as autoridades visitando os galpões das escolas de
samba. Em São Paulo há este movimento
de urbanização, mas não há a difusão como houve no Rio“, conta Mello.
Dionísio Barbosa e os cordões - A história do samba em São Paulo é feita de
alguns grande nomes. Um deles e talvez
o primeiro é Dionísio Barbosa, negro da
primeira geração de escravos livres que veio para a capital em busca de
oportunidades como liberto. Aqui, foi
para a Barra Funda, reduto negro da cidade.
Nascido em 1891, Dionísio uniu a expressão do interior
paulista com a influência do samba Rio de Janeiro, onde conheceu a Festa da Penha e
todas as tradições carnavalescas cariocas. Em 1914, reuniu sua família e
foi para as ruas festejar, cantar e
tocar o samba que iniciou a tradição dos cordões. “Ele é emblemático porque cria essa
manifestação genuína que é bem típica de São Paulo. Já havia na cidade eventos carnavalescos, mas eram manifestações da classe rica e
branca. O Cordão da Barra Funda era o
primeiro movimento cultural organizado dos negros, o primeiro cordão da cidade, algo
pequeno, composto por 15 a 20 pessoas“, explica Mello.
No Cordão da Barra Funda , os homens ensaiavam e desfilavam
pelas ruas vestidos com camisas verdes e calças brancas. Este movimento foi o embrião do hoje
Grêmio Recreativo Escola de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco.
Mais do que um grupo que desfilava no carnaval, o cordão era um espaço de identidade
reativa dos negros onde eles cultivavam todos os elementos de sua cultura. “O
cordão era o espaço deles, onde
realizavam bailes, cortejos e até
piqueniques com elementos típicos de sua culinária em Santos ou no interior. O
samba era uma parte dessa manifestação cultural“, conta Piagge.
Logo os cordões vão surgindo pelos bairros e terreiros
ocupados pelos negros, como a Baixada
do Glicério e Bexiga. Na Época do
Carnaval, os negros se fantasiavam de corte européia, com
direito a rei, rainha , conde , duquesa e toda linhagem real. Nas imagens recuperadas de um documentário
de 1937, os negros dançam com suas
perucas brancas e roupas elegantes levando os estandartes com o nome do
grupo. À frente, vinha a baliza, alguém habilidoso que fazia diversas
piruetas com o bastão. Atrás, a bateria formada por instrumentos de
sopro, violões e muitos surdos, liderados por um apitador.
Saindo de seus territórios de periferia, os negros invadiam os espaços tipicamente
brancos causando reações agressivas por parte de uma sociedade ainda acostumada
com a escravidão. “Muitas vezes as camadas com mais dinheiro jogavam bexigas
com urina ou mesmo agrediam fisicamente os participantes dos cordões. A
maioria deles preferia usar a força policial
para reprimir a manifestação popular negra na cidade, assim os policiais levavam instrumentos ou
mesmo prendiam membros“, conta Mello.
Em meados do século 20, as escolas de samba começaram a
sufocar os cordões. Inspirada pelo
sucesso do Carnaval carioca, a população
branca começa a se envolver no movimento e até a fundar suas próprias
escolas. “Começaram a surgir mais
escolas de samba do que cordões pela cidade. Mudou a manifestação. Não que tenha sido ruim, mas essa influência do Rio de Janeiro
acabou sublimando um movimento típico de São Paulo“, afirma Mello, diretor
do documentário.
No início, era uma manifestação amadora. As escolas ainda eram majoritariamente
negras e pobres e não tinham verbas para sustentar um desfile luxuoso de
fantasias e carros alegóricos. Para
pagar os custos, eles passavam a taça
do ano anterior para que os membros contribuíssem.
Já em 1967, com a ditadura militar recém-instaurada no
País, o governo decide oficializar o
Carnaval paulistano como forma de distrair o povo da repressão política. “O
que era mais fácil para iludir o povo ? Futebol e Carnaval“, relata Evaristo
de Carvalho, radialista que participou
deste movimento.
No entanto, o então
prefeito Faria Lima, um carioca de Vila
Isabel, não confiava nos dirigentes das escolas para cuidar da verba. Assim, decidiu repassá-la para a rádio Record. Os papas do samba ficaram indignados e decidiram unir-se para garantir
que no ano seguinte eles recebessem o dinheiro diretamente. Elegeram um como porta-voz Moraes
Sarmento, que ficou encarregado de
falar com o prefeito.
Aceita a proposta de Sarmento, Faria Lima exigiu que o Carnaval paulistano
tivesse a mesma estrutura e organização de o evento carioca. Com a conivência dos sambistas foi imposto
às escolas daqui o mesmo regulamento das do Rio de Janeiro, que determinava todos os detalhes da
apresentação e do julgamento dos desfiles. “Segundo os pesquisadores,
importar o modelo do Rio foi a forma
encontrada pelos sambistas de São Paulo para legitimar seu movimento, de fazê-lo aceito e valorizado pela parcela
da sociedade que agredia os negros do cordão. E muitos desses sambistas viam o
modelo carioca o verdadeiro modelo de Carnaval“, relata o diretor.
Com a adoção do modelo carioca, os cordões que antes se espalhavam pelas
ruas de toda a cidade foram concentrados em duas avenidas da capital: São João e
Tiradentes.
Já no início dos anos 90, durante o governo da prefeita Luisa Erundina foi criado o Sambódromo
do Anhembi, local onde se concentra o Carnaval paulistano até hoje. “Hoje não tem mais Carnaval, tem
desfie. Estamos confinados no
Sambódromo", critica Carlão, “embaixador“ da Unidos do Peruche que
foi acompanhado pela equipe do documentário durante todo o dia de desfile de
sua escola no Carnaval de 2006. “Hoje o ônibus vai à quadra, apanha as
alas, leva para o Sambódromo,
descarrega na concentração, vai para a
dispersão, para o desfile, sobe no ônibus e vai para a quadra. Lá,
põe a roupa e vai embora“, resume o radialista Evaristo de Carvalho.
Com o confinamento no Sambódromo, o Carnaval perdeu não só o espaço como
participação popular, sua
característica mais marcante. “Não
pertence mais ao povo, ao pobre.
Pertence a quem pode pagar, a quem tem
dinheiro“, critica o sambista Osvaldinho da Cuíca.
Para o pesquisador Eduardo Piagge, a única Escola de samba
que mantém um pouco tradição dos cordões é a Vai-Vai. Segundo ele, ela apresenta um samba de som
mais forte e mais similar às margens de tradição rural, graças à sua bateria mais pesada, com
destaque para os surdos espalhados entre os diversos membros.
Mas não era só no Carnaval que se fazia samba. O ritmo contagiante inspirou sambistas do
Rio e de São Paulo , que , cada qual a
seu jeito , começaram a desenvolver o
novo ritmo para as rádios nacionais. Manteve-se o batuque pesado do samba
rural como fundo para as letras agora com estrofes e refrões. Era o samba rural urbanizado que ganhou o
País em músicas como Está chegando a hora, de Henricão, compositor do
primeiro samba da Vai-Vai, em 1928.
Se no Rio de Janeiro o Carnaval virava modelo para o
País, era em São Paulo que os sambistas
viam o dinheiro e as oportunidades em casas como o Jogral e Oba Oba. Assim, os nomes mais talentosos migraram para
cá em busca de trabalho e de espaço para cantar. “Martinho da Vila conta que todo o início de sua carreira foi aqui em
São Paulo. Aqui tina espaço e público.
Mesmo nos anos 60, os sambistas de São Paulo ainda não tinham se consolidado
como grandes cantores. A única exceção
é o Adoniram Barbosa e mais tarde Germano Matias. Quem fazia sucesso era mesmo os cariocas“, aponta Piagge.
O Carnaval é hoje um dos eventos mais aguardados por
brasileiros e até estrangeiros, mas há
mais heranças deste samba rural dos negros espalhados pelo Estado.
A essência do samba familiar permanece viva em grupos do
interior paulista como o Samba de Bumbo em Vinhedo e Tambu de Piracicaba. “São as manifestações mais fortes deste
samba do século 19 que encontramos,
movimentos que se mantêm por uma tradição familiar ao longo das décadas “,
cita Piagge.
Mas como toda manifestação cultural, a história do samba rural é viva e
constantemente reconstruída sob as influências dos novos tempos. O samba de hoje mantém o batuque, mas conta outra história. Uma história miscigenada de brancos e
negros, de outras dificuldades,
alegrias e tristezas e quês está se perdendo a cada nova geração.
Os depoimentos de sambistas do interior ilustram bem a
mudança na interação do batuque com a comunidade. “Ao mesmo tempo em que esses grupos mantém
o samba de batuque por uma tradição familiar, é cada vez mais evidente seu
enfraquecimento nas cidades. Quando
fomos para Tietê filmar a festa lá ,
ninguém sabia dizer onde ou mesmo quando ela acontecia“, revela o diretor
Gustavo Mello.
No outro lado estão aqueles que na ânsia de preservar uma
história por tanto tempo marginalizada vêem o samba rural como um folclore. “É muito complexo aceitar esta herança e
deixá-la em aberto para que ela sofra as transformações naturais da
cultura. As pessoas entram num radicalismo que se fecha em si mesmo e
que não aceita a pluralidade do movimento“, critica Piagge.
Samba à Paulista não se propõe a dar um final para a
narrativa. Ele deixa ao espectador a
oportunidade de pensar naquele que é sua principal questão: o que fazer com esta história? Para tal,
oferece os depoimentos de defensores da tradição e aqueles que tocam o samba
urbano, influenciado pelo movimento do Rio de Janeiro. “Nós não queremos fazer o documentário
definitivo do Samba de São Paulo. Nós
sabemos que se esse documentário for feito daqui a dez anos, vai ser diferente. É um processo em constante mudança e nosso
documentário está dentro disso“, resume Mello.
A avó das escolas de samba
Fundada na Baixada do Glicério em 1937, a Sociedade
Recreativa Beneficente Esportiva Lavapés foi a primeira Escola de Samba de São
Paulo. Sob a presidência de Madrinha Eunice, a escola encantou a cidade com seus desfiles e tornou-se a mais
importante manifestação do Carnaval paulista nas décadas de 40 e 50. “Ela foi
19 vezes campeã na sua época de ouro. Ganhava de todos“, conta Mello,
diretor do documentário. Apesar do título de escola impresso em seu
estandarte, a Lavapés tinha todos os
elementos de um cordão: a corte, os instrumentos de sopro e os violões.
Seus membros desfilavam entoando as marchas de sucesso na rádio como as de
Carmem Miranda, fator que contribuiu
para seu enorme sucesso.
De suas alas e bateria saíram alguns dos fundadores das
grandes escolas do Carnaval paulistano.
“Vila Maria, Unidos do Peruche. Muitos passaram por aqui , aprenderam por
aqui e depois fundaram a (escola ) deles. Por isso considero a Lavapés a avó
das escolas“, gaba-se Madrinha Eunice em uma entrevista de arquivo recuperada
pela equipe do documentário.
Hoje , confinada à casa de Rose, neta de Madrinha Eunice e atual presidente
da sociedade, a Lavapés sobrevive no
ostracismo do segundo grupo. Espalhadas pelos cômodos da casa, as fantasias são preparadas pelos membros
da comunidade. Nas ruas em que ela
desfilava, hoje se vê apenas carros e
pedestres que por ali passam sem saber os dias e glória na Rua do Glicério. “O Carnaval começou a evoluir muito e ela não acompanhou, ficou nos mil e
novecentos e nada“, avalia Rose sobre a decadência da escola. “Um dia ela foi campeã hegemônica, hoje ninguém ouve mias falar dela. E o caso mais expressivo de de como esta
memória está se perdendo e para mostrar que não é uma história só de flores ,
mas também de perdas“, analisa Piagge, pesquisador do documentário.
Fonte – JORNAL DA USP - ESPECIAL PÁG 8 e 9
MÁRCIA
SOMAN MORAES
de 12 a 18/02/2007