terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Donga

João da Baiana, Caninha e Donga: da batucada ao samba. A partir dos últimos anos do século passado, as principais cidades brasileiras assistiram ao despertar da consciência das camadas mais humildes da sociedade. Inferiorizados até 1888 pela existência da escravidão, os trabalhadores livres da era republicana começaram a disputar um lugar na sociedade, o que, no campo do lazer, se evidenciou por uma crescente participação na festa do carnaval, transformada pela classe média numa imitação da brincadeira européia, a base de desfiles de carros alegóricos, corsos e batalhas de flores. Os integrantes dessas populações predominantemente negras e mestiças mais integradas na estrutura econômica das cidades, como os empregados de fábricas e pequenos burocratas organizaram-se principalmente no Rio de Janeiro em sociedades recreativas denominadas ranchos, e passaram a sair no carnaval produzindo um tipo de música orquestral que acabaria fazendo nascer as marchas de rancho - e, em decorrência delas, as marchas–ranchos.
Os mais pobres, porém, onde a cor negra predominava (era o mestiço que invariavelmente galgava os primeiros degraus da escala social), continuaram a exercitar-se nos seus batuques e rodas de pernadas ou de capoeira (nome preferido na Bahia). Essa parte da população não saía no carnaval de forma organizada, mas em cordões desordenados, cujos desfiles terminavam quase sempre uma esfuziante coreografia de rabos-de-arraia e em coloridas cenas de sangue.
No entanto, ia ser da música à base de percussão produzida por esses negros com o nome de “batucada“ que ia nascer o gênero popular mais nacionalmente representativo da música brasileira: o samba. Três dos mais velhos representantes dessa fase seriam Caninha, João da Baiana e Donga, dos quais os dois últimos ainda chegaram à década de 70 do século XX, não apenas como sobreviventes de uma era extinta, mas continuando a demonstrar a validade de sua arte em espetáculos evocativamente denominados  “velha guarda".
O mais antigo, José Luís de Morais, O caninha ( 1883 -1961 ), chamado em criança de Caninha Doce ( porque vendia roletes de cana na zona da estação da Estrada de Ferro, Central do Brasil, no Rio de Janeiro ), aprendeu a música dos negros durante as batucadas realizadas na Festa da Penha. E em 1932 - quando essa população de descendentes de escravos foi obrigada a morar em casebres no alto dos morros do Rio de Janeiro – compôs o samba que valia por uma de história da música popular: “Samba  do morro / Não é samba, é batucada / É batucada / É batucada ... /Cá na cidade / A escola é diferente / Só tira samba / Malandro que tem patente“.
De fato, quando Donga, o mais novo desses pioneiros, realiza em 1917, sob o nome de samba, o arranjo de motivos populares que intitulou Pelo telefone, sua primeira providência é registrar música e letra na Biblioteca Nacional - o que equivalia mesmo a tirar patente. A atitude de Donga  ( Ernesto dos Santos, Rio, 1891-1974 ) significa que, coincidindo com o aparecimento do samba, a música popular, como criação destinada ao entretenimento da massa, tinha atingido o estágio de produto comercial capaz de ser vendido e de gerar lucros. O crescimento da indústria do disco, e logo o aparecimento do rádio, seguidos mais tarde do cinema e da televisão, provaram que Donga tinha sido um pioneiro esperto ao correr à repartição oficial para “tirar patente“.
Mas o exemplo da vida do mais velho sobrevivente da geração que criou o samba a partir da batucada, João Machado Guedes (chamado João da Baiana porque era filho da baiana Perciliana de Santo Amaro), veio mostrar que essa esperteza ia valer para todos, menos para os que criaram o samba.
Donga viveu seus últimos anos como funcionário aposentado da Justiça, doente e quase cego, num subúrbio do Rio de Janeiro. João da Baiana, com 85, acabou por ser recolhido à Casa dos Artistas de Jacarepaguá, na zona rural carioca, passando o fim de seus dias de uma forma não muito diferente daquela que desenvolveu com bom humor no seu samba de maior sucesso, o Cabide de Molambo, de 1932: Mas hoje  eu ando / Com o sapato furado..."

Fonte – Revista  - NOVA  HISTÓRIA  DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
DONGA  E  OS PRIMITIVOS  -  Abril  Cultural pág  8 - 1ª Edição  1970  2ª Edição 1978

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