As imagens da revista O Cruzeiro, publicadas entre 1940 e 1960, são apresentadas em livro exposição lançados pelo Instituto Moreira Salles. Sob a organização de Helouise Costa e Sergio Burgi, reconstituem as origens do fotojornalismo no Brasil.
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas nem reflexões profundas. A onda humana galopa, uma espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder.
A crítica sobre o cotidiano acelerado, a superficialidade na comunicação e as limitações do intelecto na sociedade moderna faz lembrar os editoriais recentes sobre a crise da cultura e da mídia pontuada pela falta de reflexão. O texto acima, no entanto, foi assinado no dia 13 de janeiro de 1901 pelo poeta e cronista Olavo Bilac na Gazeta de Notícias. Naquela época, ele já repensava os rumos do jornalismo, da informação. Defendia a fotografia como espelho do real. E já antevia o mundo sem fronteiras. Continua: “A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco, quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti o “ Deus te ajude" de um americano."
O jornalista Olavo Bilac discutia, em suas crônicas, o processo acelerado da industrialização, a ascensão da publicidade e , ao mesmo tempo , o caos do analfabetismo. A sua reflexão sobre as mudanças da imprensa brasileira na virada do século 20 está na abertura do livro As origens do foto jornalismo no Brasil – Um olhar sobre O Cruzeiro ( 1940 – 1960 ) , lançado pelo Instituto Moreira Salles (IMS).
A edição, organizada por Helouise Costa, professora do Museu de Arte Contemporânea (MAC ) da USP, e pelo coordenador de fotografia do IMS, Sergio Burgi, resgata a história do fotojornalismo brasileiro através das imagens da revista O Cruzeiro. Os dois pesquisadores também reuniram cerca de 300 fotos na exposição apresentada na galeria do Instituto Moreira Salles.
Helouise e Burgi ressaltam que o legado histórico do foto jornalismo brasileiro do século 20 ainda é pouco estudado. “Passados 38 anos de fechamento da revista O Cruzeiro, ela continua sendo importante referência para a imprensa brasileira, muito embora seja pouco conhecida pelas gerações atuais", explica Helouise. “Lançada em 1928 como revista semanal de variedades, de circulação nacional, incorporou, no início de 1940, o modelo da foto reportagem, tornando-se pioneira na implantação do foto jornalismo no Brasil“.
A proposta dos pesquisadores é também refletir sobre a importância dos acervos de fotografia e sobre as possíveis res–significações de suas imagens . “Mais do que rever a história de uma revista , o livro propõe uma abordagem crítica das origens do foto jornalismo por meio de um dos mais influentes veículos de comunicação de massa que o País já conheceu e que retratou, com nenhum outro, as peculiaridades e contradições do Brasil moderno.“
Brasil moderno – “Contemporânea dos arranha-céus. Esse era o slogan veiculados nas campanhas publicitárias para definir o ideal de grandeza da revista O Cruzeiro. “O nome remetia à constelação do Cruzeiro do Sul e à nova moeda prevista para circular em breve no País“, explica Helouise Costa. “Assis Chateaubriand não pouparia esforços para dar corpo ao projeto. Tudo seria cuidadosamente planejado numa escala não usual para a época, inclusive o lançamento, precedido de uma grande campanha publicitária.“
No texto de abertura do livro, Helouise apresenta uma pesquisa minuciosa desenvolvida em seu mestrado e doutorado. E transporta o leitor para a época, descrevendo a trajetória da revista no contexto social e político do país. Entre os documentos está o editorial do primeiro número, com a promessa de ser um “espelho leal onde se reflete a vida nos seus aspectos edificantes , atraentes e instrutivos“.
A supremacia de O Cruzeiro transformou, segundo a pesquisadora, jornalistas e fotógrafos em verdadeiras celebridades. “Um dos primeiros profissionais da revista a atingir esse patamar de visibilidade foi o fotógrafo francês Jean Manzon“, explica Helouise.
Ao longo da década de 1940, Manzon implantou a foto reportagem na imprensa brasileira, baseando-se em revistas internacionais como a francesa Match e a norte-americana Life. “ A exaltação da natureza e da aventura, presente igualmente nas revistas estrangeiras, materializou-se em O Cruzeiro de modo particular“, afirma Helouise. “Aqui a natureza desconhecida encontrava-se no interior do próprio País , o que tornava a realização de muitas reportagens uma tarefa extenuante e perigosa. Assim, a coragem dos repórteres e a importância de seu trabalho eram constantemente exaltadas, em especial com relação aos fotógrafos agentes que possibilitavam a visualização de dimensões ignoradas do País por meio de imagens grandiosas.“
O heroísmo dos repórteres pregado pelas revistas estrangeiras passou a ecoar em O Cruzeiro. “Freqüentemente, além de descrever em detalhes as aventuras vividas pelos repórteres, as reportagens incluíam imagens dos profissionais em ação, como a que mostra Nasser e Manzon num deserto no Egito. “
Importante lembrar que, na época, a fotografia tinha um espaço privilegiado. O destaque era o discurso visual. E o texto se limitava às legendas. Ou ocupava as sobras deixadas entre as imagens. A informação ficava por conta da excelência do trabalho do fotógrafo. “O tipo de diagramação característico do modelo da foto reportagem seguido por Manzon implicava a realização de inúmeras intervenções nas imagens originais, que precisavam ser quase sempre cortadas ou rebatidas de modo a se adequar ao discurso visual pretendido.“
Até o exigente Cândido Portinari, ao ser fotografado pelo francês, fez questão de elogiar: “Jean Manzon, esse gênio da fotografia contemporânea, é o homem que dá valor ao detalhe, de modo a torná-lo essencial.” O retrato de Portinari documentado no livro revela a preocupação de Manzon em mostrar o cotidiano do artista e captar manias, como a de pintar segurando vários pincéis entre os dedos.
Viés humanista – Entre 1947 e início dos anos 1950, o foto jornalismo passa a seguir um viés mais humanista. “Concretizada por fotógrafos como José Medeiros, Luciano Carneiro, Flávio Damm, Luiz Carlos Barreto, Henri Ballot e Eugênio Silva, essa nova visão do foto jornalismo trouxe para O Cruzeiro maior e ênfase na objetividade e no caráter documental e jornalístico“, ressalta o pesquisador Sergio Burgi.
O sensacionalismo jornalístico iniciado como Manzon é substituído por uma nova linguagem, que flui no cenário do pós-guerra. "O surgimento da agência Magnum de foto jornalismo , de Henri Cartier–Bresson e Robert Capa , em 1947 , e os consagrados ensaios de fotógrafos como Robert Doisneau e Willy Ronis, na França e W . Eugene Smith são todos trabalhos representativos desse novo momento".
Burgi conta que começa uma nova escola de foto jornalismo dentro da revista, que se opões ao uso da reportagem como espetáculo, trabalhando por uma linguagem comprometida com um olhar objetivo e documental, incorporando temas da cultura e do povo brasileiro. ”Uma boa indicação dessa nova vertente são os os primeiros trabalhos de José Medeiros em Alagoas, sobre a cultura e festas populares do Estado, dentro da estrutura editorial e de paginação estabelecida por Manzon, e que se desenvolveria até as grandes reportagens da década de 1950, com trabalhos icônicos de Medeiros, Luciano Carneiro , Flávio Damm , Luiz Carlos Barreto e Henri Ballot , entre outros.“
A produção dos fotógrafos, segundo Burgi , passa a ser marcada por uma postura mais generosa. “O foto jornalismo humanista se desenvolveria igualmente como uma fotografia engajada e de resistência sob regimes ditatoriais como nas ditaduras militares do Brasil e em outros países da América Latina nas décadas de 1960 e 1970.“
Burgi aponta também o surgimento de uma fotografia ligada a ações humanitárias com grande impacto na mídia da década de 1980. Cita os trabalhos de Sebastião Salgado na África, junto a organizações como Médicos sem Fronteiras. “ Todos esses desdobramentos de um novo foto jornalismo que se desenvolveram dentro e fora do País pelo trabalho de resistências e denúncia de fotógrafos que atuaram nas década de 1960 a 1990 têm conexão direta, aqui no Brasil, com o foto jornalismo da Revista O Cruzeiro nos anos 1950. Os fotógrafos comprometidos com uma visão objetiva do País, refletida na busca por uma impressa socialmente responsável, buscavam, de alguma maneira, retratar a essência da vida humana.“
Fonte JORNAL DA USP - ESPECIAL PÁG 10 e 11
de 25 de fevereiro a março de 2013
Leila KIYOMURA
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