Nélida entregou-me seu livro mais recente, no dia de seu aniversário. E quem ganhou o presente fui eu.
Devorei cada linha de Aprendiz de Homero, identificando-me com o pensamento de Nélida, mas devo dizer que discordo dela em uma questão fundamental: ela se proclama aprendiz, já no título do livro, e afirma não ser uma pedagoga, e eu garanto que ela é mestra (embora todos os mestres sigam sendo inexoravelmente aprendizes). Basta ler apenas um dos vinte e quatro ensaios (Descoberta do mundo) que compõem o livro. Ali, num tom memorialista, mas de clara intimidade com o ofício de ensinar, apresenta um dos mais profundos e ao mesmo tempo concisos depoimentos que já li, de alguém que se dispõe a falar de educação. Modestamente, como é de seu talhe, ponderou que não tem teorias a defender, que lhe “falta o instrumental com que abordar a matéria educacional com isenção crítica“, e que portanto, seus apontamentos teriam a superficialidade da amadora. Nada disso. Eu sou educador, por vocação, formação e ocupação , e posso falar de cátedra: Nélida é uma educadora perspicaz e consciente.
Uma análise do ensaio permite essa afirmação. A frase inicial é uma verdadeira profissão de fé: “ A experiência humana, onde quer que se manifeste, começa no coração“ . A frase tem mais profundidade do que aparenta , à primeira leitura . Saber de cor , ( cor , cordis , coração em latim ), uma das atitudes que tradicionalmente ilustram o aprendizado , é conhecer com o coração. Diz ela: “Estou convencida de que o filtro do amor e do prazer encontra-se também nas páginas de livros. A pedagogia moderna recomenda a atividade de contar histórias, em casa ou na escola, a partir de livros, como apoio fundamental da educação. Costumo dizer que na lembrança melhor, de uma infância bem vivida, do que o acalanto de uma voz querida, contando histórias , ilustrando a vida . Nélida pontifica, sobre a mesma idéia, com esta assertiva: “ Os livros e as palavras , inseparáveis , são os melhores inventos da raça humana.“ E diz mais ainda: “Sendo ambos, por excelência , produtos rebeldes , perambulam ao lado de quem sonha , de quem se aflige , de quem se senta nos bancos escolares , de quem ensina, de quem se aflige, de quem frui a invenção, de quem se encanta com as manifestações da inteligência humana . “
O professor é a alma da escola; sem ele a educação não ocorre. Nélida dá testemunho: “Enquanto leciono , sei-me destinada a queimar meu coração , repartir minhas fibras entre anônimos , entre filhos de outros, que não são do meu sangue. A sofrer as emoções advindas de um convívio difícil, mas comovente. (...) E se em tantos momentos aparenta ser um intercâmbio ingrato, onde se abandona no outro o que a nossa natureza produz de sombrio e altaneiro, é a mais generosa das profissões.“
“A escola foi sempre benfazeja. Longe de ser um cárcere , estimulou-me a privar com o desconhecido, a lançar-me às aventuras marítimas, começando pelo litoral brasileiro e terminando do outro lado do Atlântico. ( ... )“ “Os professores, por sua vez, conviviam com o temor de errar e com a ânsia de acertar. “ Complementam-se, essas duas frases, como se complementam duas mãos direitas, de amigos, a se cumprimentar . Nélida é de uma felicidade incomparável, ao dar vida, por meio das palavras , a sentimentos que afloram nos alunos e nos professores. Sentenças de quem sabe o que é aprender e sabe o que é ensinar.
E vejam mais esta: “Talvez a escola dos sonhos seja simultaneamente o território da crise e o lugar da solução.“ É isto mesmo : a escola deve estimular a criatividade pelo incentivo ao raciocínio , ao enfrentamento de problemas, em suma, pela parturição do que quer transformar de dentro de cada aprendiz. O professor não pode ser apenas um mero facilitador, um repassador de informações prontas. Nélida sabe disso, como boa educadora que é.
Sabe mais: “ Educar não é empobrecer quem é pobre; não humilhar o aluno privando-o de um saber o que o pode elevar a patamar superior ; não lhe é dar a metade de uma língua que consagra os erros trazidos de casa. Educar é desconsiderar os obstáculos da miséria e do obscurantismo, e fazer a criança sonhar, o adolescente derrubar os entraves culturais, para que pleiteiem um mundo à altura da sua imaginação.“
E eis aqui o que talvez seja o mais feliz, parágrafo do ensaio: “Educar é fazer o aluno fruir dos bens do planeta em todas as suas manifestações. Para que sua fantasia, seu verbo , sua linguagem , sejam libertárias , destemidas, sem freios . É fazer do ato de pensar um feito não natural quanto respirar. Um dom ao alcance de todos independentemente de sua condição.“
À guisa de corolário, Nélida, a educadora que modestamente alega não ser, apresenta essa conclusão belíssima: “ Reverenciar , hoje e sempre , a figura do professor que nos tomando pela mão , enlaçados pelo mesmo ideal , leva –nos a freqüentar o próprio mistério, o coração alheio, a visitar a memória, as civilizações pretéritas que residem em nós.“
A educação é apenas uma das múltiplas faces do livro Aprendiz de Homero. Mas há muito mais nesse relicário de reflexões que Nélida Pinõn compôs, debatendo suas influências literárias, como Jorge Luís Borges, Carlos Fuentes, Gabriel Garcia Marquez, Camões, Shakespeare, Machado de Assis. E Homero que dá nome ao livro. Um livro instrutivo. prazeroso e , principalmente , inteligente .
Por essa leitura, que tive o desmesurado prazer de fazer, tomo-lhe a benção, mestra Nélida Pinõn.
Fonte Jornal de letras pág 8
Gabriel Chalita é doutor em Direito e em Comunicação e Semiótica , professor da PUC –SP e Mackenzie . Foi secretário estadual de Educação de São Paulo e presidente do ) Conselho Nacional dos Secretários de Educação do Brasil ) . É membro da Academia Paulista de Letras .
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