terça-feira, 11 de julho de 2017

HECTOR BABENCO




A  autobiografia  como matéria  prima 

Em “Meu Amigo  Hindu“,  HECTOR  BABENCO  remonta   seu  imaginário  de vida  e cinematográfico , revisita e reinventa  seu encontro  com  a  morte.
A carreira de Hector Babenco é marcada por uma série de filmes que olham para grandes mazelas da sociedade. São assim, por exemplo, “Lúcio Flávio  , o Passageiro da Agonia “ ( 1977 ) , “ Pixote , a Lei do Mais Fraco “, ( 1981 ), “ Brincando nos Campos do Senhor   ( 1981 ) e “Carandiru “ ( 2003 ). Agora, como acontecia em “ Coração Iluminado   ( 1998 ), o material do filme são suas memórias, seus sentimentos sobre si. Ambos os longas-metragens têm seu fio narrativo nas lembranças que se embaralham e nas vivências que retomam quase como sonhos.

Se “ Coração Iluminado “ foi obra da sua convalescência, marcando a volta ao set após um duro tratamento contra um câncer no sistema linfático. “ Meu Amigo Hindu “ é, de certo modo, o filme sobre essa história: a história de um diretor que, à beira da morte, sonha com a realização de um último trabalho.

Projeto de fortes tintas autobiográficas, o filme é todo alinhavado por pedaços de sua trajetória e por afetividades concretas. Para além do que está no roteiro. Babenco chamou amigos para fazer figuração durante uma festa dada pelo diretor – personagem, onde usou a própria casa como locação e escalou sua mulher e atriz Bárbara Paz, para emprestar rosto e voz ao amor que dá o fecho à narrativa.

FORÇAS  DE  MOTIVAÇÃO

Apesar de assumir que foi da própria vida que extraiu o material de “ Meu Amigo Hindu “ , o cineasta nega-se a estabelecer ligações diretas entre os personagens e as figuras reais que nutriram a ficção. “Cada personagem é o que é. Tentar procurar uma explicação para isso é um exercício da mediocridade. Blanche DuBois  [ personagem da peça “Um Bonde Chamado Desejo , de Tennessee Williams] é o que ela é; ela não representa nada, ela é “, diz, com seu habitual estilo bateu-levou, em entrevista à Revista de CINEMA.

Instado a falar sobre as motivações por trás do novo filme e do quanto ele retoma, de alguma maneira, sentimentos que já perpassavam  Coração Iluminado , Babenco diz que as forças que motivam as escolhas estão sempre muito próximas ao momento de vida no qual se está. Não é também por acaso que entre os dois filmes existe “ Carandiru”.

“Carandiru  nasce de um momento do renascimento pós –anos de doença e convalescência e vai ao encontro do médico [ Dráuzio Varella ] que me contou histórias durante dez anos de doença“, relembra. “Ao estar zerado, me joguei nas histórias que eu ouvira do livro [ “Estação Carandiru“ ]  feito criança numa piscina. me diverti muito e me alimentei muito. Ter feito esse filme foi um momento de grande expansão humana “,

Parece, porém, que o artista que, vindo da Argentina, se chocou com certos aspectos da realidade brasileira e quis explicitá-los e problematizá-los por meio de imagens e narrativas, já vinha cedendo lugar a um criador mais marcado pela subjetividade. O desejo de trabalhar sobre um material menos colado à realidade começava a se impor.

“A seguir a Carandiru, acho que o homem nasce após anos de doença decide se anestesiar um pouco a sua relação com a indignidade que a realidade brasileira lhe provoca“, reflete. Veio na sequência  O Passado  “ ( 2007 ), que coloca na tela dois personagens que tentam lidar com a vida após o fim de um amor  e, agora, “ Meu Amigo Hindu .

“Neste filme, decidi virar uma página que nunca soube que virei, olhar um pouco mais para o meu umbigo e  , fazendo isso, percebi que meu manancial mais querido nesse momento era eu mesmo“, diz Babenco, que é também autor do roteiro. “Decidi então ir à procura das histórias das quais me lembrava e as usei como matéria prima para reconstruir ficções que tinham referências já vividas e que foram manipuladas para dar criação a novas histórias.

O  BEIJO  DA  MORTE

Nesse sentido, Diego Fairman, o protagonista é e, ao mesmo tempo, não é Hector Babenco. Vivido pelo ator norte-americano Willem Dafoe  ( de “Platoon, “A Última Tentação de Cristo “ , “ A Sombra do Vampiro “ , “ O Anticristo   etc ), Diego é um cineasta de sólida carreira que , de repente, se descobre com a vida por um fio. Irônico, por vezes cruel e quase sempre auto centrado, ele tem de lidar com o corpo que definha e com um amor que vai se esgarçando. Mas, no leito do hospital, ao encontrar-se com a morte  ( o personagem Homem Comum, vivido por Selton Mello ), o que ele pede é uma coisa só: o direito de fazer um último filme. É também enquanto está internado que Diego conhece um menino para quem passa a contar as histórias e a materializar esse desejo de criar.

A lembrança do menino hindu que dá título à obra veio à tona quando, um dia, uma criança de rua foi limpar o vidro do carro do cineasta Babenco, de repente, lembrou-se do garoto que vira no hospital norte–americano onde submeteu-se a um transplante de medula óssea. Ambos dividiram, uma única vez, a mesma sala de  quimioterapia. Não conversaram. Babenco não tem a menor ideia do que aconteceu com ele. Mas foi ao imaginar um diálogo com o garoto que o cineasta viu “ Meu Amigo Hindu   nascer.

REFERÊNCIAS  E  EXPECTATIVAS 

Se a morte é um dos fundamentais da narrativa, outro é próprio cinema. Entrelaçando realidade e sonho, dureza e fábula, o filme faz uma série de homenagens ao cinema. Uma referência indireta talvez seja “O Show Deve Continuar “ ( 1979 ), de Bob Fosse. Entre as referências diretas, estão a partida de xadrez jogada com a morte, cena famosa de “O Sétimo Selo “ ( 1957 ), de Ingmar Bergman; os passos de Gene Kelly, em “ Cantando na Chuva “ ( 1952 ), que Bárbara Paz reproduz; a canção “Cheek to Cheek ; celebrizada por Fred Astaire  e Ginger Rogers, em “ O Picolino “ (1935 ) , cantada por Dafoe. Trata-se, claramente, de um filme que trabalha a ideia do cinema como salvação, da arte como uma fresta pela qual, em qualquer situação, é possível entrever a vida.

Cineasta que já conheceu grandes bilheterias - “Lúcio Flávio  fez 5 milhões de espectadores e “ Carandiru   mais de 4 milhões  -, Babenco sabe que, desta vez, assim como em seu filme anterior, falará com um público restrito. Perguntado sobre o quanto o fato de o filme ser falado em inglês pode afastar o público – não só pela língua, mas pela artificialidade de se ver Sellton Mello ou Reinaldo Gianecchini falando em inglês -, Babenco pondera, primeiro, que toda aposta tem um risco. Além disso, diz ele, a escolha derivou menos de uma decisão  que tenha levado em conta o mercado para o filme e mais de uma contingência.

“ Não encontrei atores brasileiros para fazer o filme. Eles estavam fazendo novela e comprometidos com outros trabalhos“ , relata. “Quando Willem falou que queria fazer o filme, não pensei em nenhum mercado, nem internacional nem nacional; pensei que ele era o ator certo. E os riscos que o inglês poderia trazer dizem respeito, exclusivamente no Brasil. No Uruguai e na Argentina, não sabem nada do Selton Mello, a não ser que é um bom ator“.

E a opção por Dafoe  foi  , antes de tudo  , uma oportunidade  . Quase uma peça pregada pelo destino. Babenco foi assistir à montagem de “ The Old Woman “ , de Bob Wilson, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e  , ao fim da peça, foi jantar com o elenco  - Dafoe e Mikhall Baryshnikov . Ao ouvir Babenco mencionar seu novo projeto, Dafoe pediu para ler o roteiro. O problema é que a versão para o inglês ainda estava sendo preparada  . Qual não foi a surpresa do cineasta ao chegar em casa e ouvir um recado do tradutor  , avisando que a havia concluído. Babenco preferiu não ignorar o sinal e deixou o roteiro no hotel onde o ator estava hospedado. Três dias depois, recebeu uma ligação - o fim da história sabemos. Sobre o trabalho do ator, Babenco resume: “ Ele é uma pessoa amável, sensível, e um profissional como eu “.

TONS DE  DESPEDIDA

Décimo – primeiro longa –metragem da carreira do cineasta  . “ Meu Amigo Hindu “ pode também marcar o começo da sua despedida  do set. No ano passado, durante entrevistas concedidas antes da abertura da Mostra Internacional de Cinema  - que exibiu o filme na noite de abertura -, Babenco falou que está tirando sua câmera de campo, “Cidade Maravilhosa “ , seu próximo projeto, deve ser também seu último trabalho como diretor, “Não há recursos para o cinema no Brasil. As morosidades impostas pela relação com o Estado tornam o ciclo da produção muito complicado“, diz . “ E eu estou cansado “  .

Apesar do desalento em relação a seu próprio fazer, Babenco se diz muito bem impressionado com a nova geração de cineastas brasileiros – mencionando, especificamente, Gabriel Mascaro  ( de “ Ventos de Agosto   e " Boi Neon “ ) e Felipe Barbosa  ( de “ Casa Grande “ ).

 Estou vendo um novo cinema brasileiro nascer de jovens diretores e isso me deixa entusiasmado", conclui.

Fonte    -   REVISTA   DE  CINEMA   págs   30  , 31  32
ANO XVI   -         EDIÇÃO   128      -  MAR/ ABR    2016
Por  Ana Paula  Sousa




Educação do  olhar 
Cinema 
Um  dos  responsáveis  pela  Novelle Vague  , o crítico 
André  Bazin  deu  status intelectual aos   filmes no anos  50 

Homem culto e crítico de cinema, André Bazin é, com Henry Langlois  - que foi diretor da Cinemateca Francesa  -, um dos dois responsáveis pela Nouvelle Vague, movimento cinematográfico do qual surgiram muitos filmes e os pequenos cinemas de arte em Paris.

Todos os cineastas da Nouvellle Vague  - de Truffaut, Godard  - são unânimes em dizer que André Bazin deu status intelectual ao cinema na década de 50, tendo como mote a famosa pergunta: o que é cinema? 

Para os jovens da Nouvelle Vague  , o crítico Bazin era um cineasta que não fazia filmes , mas que fazia cinema ao falar dos filmes. Tão importante quanto fazê-los era falar dos filmes, obsessão que volta e meia ressurge nos veteranos da Nouvellle Vague, a exemplo de Jean-Luc Godard, para quem o grande pecado do cinema atual é que os cineastas não mais conversam entre si.

O sentimento de solidão tomou conta dos cineastas. A troca de ideias tornou-se problemática. Antes de André Bazin, o pensador do plano sequência, existiu Roger Leenhardt, o teórico mais sutil ao cinema na França. Ambos foram amigos e admiradores. O epitáfio de Bazin, feito por Leenhardt em 1959, é célebre por tê-lo colocado ao lado do filósofo Sócrates, e não de Aristóteles.
 
Antes de dialetizar o sentido de um filme em meio a outros filmes, André Bazin partia de um detalhe concreto, de uma imagem viva, de um pequeno detalhe do plano cinematográfico.

O cineasta François Truffaut, filho único, morou uns tempos na casa de Bazin. Este tirou Truffaut duas vezes da cadeia. Seu primeiro filme, “ Os incompreendidos “ ( 1959 ), é dedicado ao grande crítico que alentava o projeto de realizar um curta–metragem documentário sobre as Igrejas de Roma. Mas não deu tempo. André Bazin morreu sem filmar e sem ver a estreia de seu discípulo Truffaut.

A patota do “ Cahiers du Cinéma presta até hoje um merecido culto a André Bazin, que integra a notável tradição de crítica de arte na França, a qual teve seu começo com Diderot, depois de Baudelaire, a que se seguem Élie Faure e André Malraux.

Cinema  , arte sem futuro. Cumpriu-se a profecia. Na metade do século 20  , em Paris a morte do cinema foi pranteada pela Nouvelle Vague como cinema criança, o “petit enfant” mudo, que começa a falar e logo morre para dar vida à TV. A tese de Godard, dialogando com André Malraux, é que o cinema  pós–pintura teve morte depressa, mas essa arte sem futuro produziu o século 20. É clássica sua definição: “Cinema  , arte do século 19  , que traz o 20 .

A crítica francesa é a melhor crítica estética do mundo  , segundo Godard em sua “História do Cinema  . Nesta  , André Bazin é o homenageado como filósofo da imagem. O cinema nasce com a pintura moderna de Édouard Manet.

A morfogênese do cinema foi o lance crítico revelado pela Nouvelle Vague, graças à incorporação da psicologia da arte feita por André Malraux, segundo a qual o fim da pintura representativa coincide com o nascimento do cinema como arte de ficção. Da pintura ao cinema. Resulta daí a formulação engenhosa e provocativa de Godard : a Nouvelle Vague, em vez de começar alguma coisa, foi na verdade uma porta que se fechou, pois o cinema começou a morrer justamente com o advento da televisão e a morte de André Bazin.

Embora dotado de um raciocínio sempre claro (“ Cidadão Kane “ é um americano dispendioso com grana, que conquista em vão o mundo porque perdeu a infância ). André Bazin fazia crítica de cinema usando a linguagem da metáfora.

Recordo-me do nosso Paulo Emílio na Escola de Comunicação da USP, já cercado por uma plateia libeluneoliberal: todo filme brasileiro tem de ser visto. Atenção: o cinema é produtor de sentido.

Eis Bazin, agora  , neste ano  , falado por Jean-Luc-Godard: o cinema produz o século 20. Essa montagem como atração implícita de ideias caracterizará o procedimento de todo cinema moderno. É o caso por exemplo de Glauber Rocha, discípulo além mar de Bazin, pensando em Orson Welles como repórter na Brasília de Ernesto Geisel: o golpe de 64 é um golpe de  Roliudi“! A comunicação forma e deforma a história, eis a façanha das Pictures.

Foi o cinema que ensinou a Bazin o olho do tempo, isto é, a história na segunda metade do século 20, enquanto a televisão, médium de difusão e comércio, significará o olhar degradado ou, parafraseando Karl Marx: o sentido deseducador da polis.

A TV nasceu de um tubo de cinema, mas é difícil afirmar que o cinema está interessado nas lembranças, ainda que tenha antevisto o horror nazi-fascista antes de Auschwitz.

Esta é a lição do grande crítico André Bazin: o cinema ensina olhar melhor o mundo.

Fonte  -       Jornal  FOLHA  DE  SÃO   PAULO               pág 12 mais  !
Domingo  , 25/0/99   -    Gilberto Nascimento Vasconcellos  é professor  de Ciências  Sociais na                                Universidade Federal  de  Juiz  de Fora  (MG ) e  autor  de “ O Príncipe da Moeda  “ ( Espaço e Tempo )  , entre outros   

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