A autobiografia como matéria prima
Em “Meu Amigo Hindu“, HECTOR BABENCO
remonta seu imaginário
de vida e cinematográfico , revisita e reinventa seu encontro
com a morte.
A carreira de Hector Babenco é marcada por uma série de
filmes que olham para grandes mazelas da sociedade. São assim, por exemplo, “Lúcio Flávio , o Passageiro da Agonia “ ( 1977 ) , “
Pixote , a Lei do Mais Fraco “, ( 1981 ), “ Brincando nos Campos do Senhor “
( 1981 ) e “Carandiru “ ( 2003 ). Agora, como acontecia em “ Coração Iluminado
“ ( 1998 ), o material do filme são suas memórias, seus sentimentos sobre si. Ambos os longas-metragens têm seu fio
narrativo nas lembranças que se embaralham e nas vivências que retomam quase
como sonhos.
Se “ Coração Iluminado “ foi obra da sua convalescência, marcando a volta ao set após um duro
tratamento contra um câncer no sistema linfático. “ Meu Amigo Hindu “ é, de certo modo, o filme sobre essa história: a história de um diretor que, à beira da morte, sonha com a realização de um último
trabalho.
Projeto de fortes tintas autobiográficas, o filme é todo alinhavado por pedaços de
sua trajetória e por afetividades concretas. Para além do que está no roteiro. Babenco chamou amigos para fazer figuração durante uma festa dada pelo
diretor – personagem, onde usou a
própria casa como locação e escalou sua mulher e atriz Bárbara Paz, para emprestar rosto e voz ao amor que dá o
fecho à narrativa.
Apesar de assumir que foi da própria vida que extraiu o
material de “ Meu Amigo Hindu “ , o cineasta nega-se a estabelecer ligações
diretas entre os personagens e as figuras reais que nutriram a ficção. “Cada personagem é o que é. Tentar
procurar uma explicação para isso é um exercício da mediocridade. Blanche DuBois [ personagem da peça “Um Bonde Chamado
Desejo “, de Tennessee Williams] é o
que ela é; ela não representa nada, ela é “, diz, com seu habitual estilo bateu-levou, em
entrevista à Revista de CINEMA.
Instado a falar sobre as motivações por trás do novo filme e
do quanto ele retoma, de alguma
maneira, sentimentos que já
perpassavam “Coração Iluminado “, Babenco diz que as forças que motivam as
escolhas estão sempre muito próximas ao momento de vida no qual se está. Não é também por acaso que entre os dois
filmes existe “ Carandiru”.
“Carandiru nasce de
um momento do renascimento pós –anos de doença e convalescência e vai ao
encontro do médico [ Dráuzio Varella ] que me contou histórias durante dez anos
de doença“, relembra. “Ao estar zerado, me joguei nas histórias que eu ouvira do
livro [ “Estação Carandiru“ ] feito
criança numa piscina. me diverti muito
e me alimentei muito. Ter feito esse
filme foi um momento de grande expansão humana “,
Parece, porém, que o artista que, vindo da Argentina, se chocou com certos
aspectos da realidade brasileira e quis explicitá-los e problematizá-los por
meio de imagens e narrativas, já vinha
cedendo lugar a um criador mais marcado pela subjetividade. O desejo de trabalhar sobre um material
menos colado à realidade começava a se impor.
“A seguir a Carandiru, acho que o homem nasce após anos de
doença decide se anestesiar um pouco a sua relação com a indignidade que a
realidade brasileira lhe provoca“,
reflete. Veio na sequência “ O Passado
“ ( 2007 ), que coloca na tela
dois personagens que tentam lidar com a vida após o fim de um amor e,
agora, “ Meu Amigo Hindu “.
“Neste filme,
decidi virar uma página que nunca soube que virei, olhar um pouco mais para o meu umbigo
e , fazendo isso, percebi que meu manancial mais querido
nesse momento era eu mesmo“, diz
Babenco, que é também autor do roteiro. “Decidi então ir à procura das histórias
das quais me lembrava e as usei como matéria prima para reconstruir ficções que
tinham referências já vividas e que foram manipuladas para dar criação a novas
histórias.
O BEIJO DA
MORTE
Nesse sentido, Diego
Fairman, o protagonista é e, ao mesmo tempo, não é Hector Babenco. Vivido pelo ator norte-americano Willem
Dafoe ( de “Platoon“, “A Última Tentação de Cristo “ , “ A
Sombra do Vampiro “ , “ O Anticristo “
etc ), Diego é um cineasta de
sólida carreira que , de repente, se descobre com a vida por um fio. Irônico, por vezes cruel e quase sempre auto centrado, ele tem de lidar com o corpo que definha e
com um amor que vai se esgarçando.
Mas, no leito do hospital, ao encontrar-se com a morte ( o personagem Homem Comum, vivido por Selton Mello ), o que ele pede
é uma coisa só: o direito de fazer um
último filme. É também enquanto está
internado que Diego conhece um menino para quem passa a contar as histórias e a
materializar esse desejo de criar.
A lembrança do menino hindu que dá título à obra veio à tona
quando, um dia, uma criança de rua foi limpar o vidro do
carro do cineasta Babenco, de repente, lembrou-se do garoto que vira no
hospital norte–americano onde submeteu-se a um transplante de medula óssea. Ambos dividiram, uma única vez, a mesma sala de quimioterapia. Não conversaram. Babenco não
tem a menor ideia do que aconteceu com ele. Mas foi ao imaginar um diálogo com o garoto que o cineasta viu “ Meu
Amigo Hindu “ nascer.
REFERÊNCIAS E EXPECTATIVAS
Se a morte é um dos fundamentais da narrativa, outro é próprio cinema. Entrelaçando realidade e sonho, dureza e
fábula, o filme faz uma série de
homenagens ao cinema. Uma referência
indireta talvez seja “O Show Deve Continuar “ ( 1979 ), de Bob Fosse. Entre as referências diretas, estão a partida de xadrez jogada com a
morte, cena famosa de “O Sétimo Selo “
( 1957 ), de Ingmar Bergman; os passos
de Gene Kelly, em “ Cantando na Chuva “
( 1952 ), que Bárbara Paz reproduz; a canção “Cheek to Cheek “; celebrizada por Fred Astaire e Ginger Rogers, em “ O Picolino “ (1935 ) , cantada por
Dafoe. Trata-se, claramente, de um filme que trabalha a ideia do cinema
como salvação, da arte como uma fresta
pela qual, em qualquer situação, é possível entrever a vida.
Cineasta que já conheceu grandes bilheterias - “Lúcio Flávio“ fez 5 milhões de espectadores e “ Carandiru
“ mais de 4 milhões -, Babenco sabe que, desta vez, assim como em seu filme anterior, falará com um público restrito. Perguntado sobre o quanto o fato de o filme ser falado em inglês pode
afastar o público – não só pela língua,
mas pela artificialidade de se ver Sellton Mello ou Reinaldo Gianecchini
falando em inglês -, Babenco
pondera, primeiro, que toda aposta tem um risco. Além disso, diz ele, a escolha derivou
menos de uma decisão que tenha levado em
conta o mercado para o filme e mais de uma contingência.
“ Não encontrei atores brasileiros para fazer o filme. Eles estavam fazendo novela e comprometidos
com outros trabalhos“ , relata. “Quando Willem falou que queria fazer o filme, não pensei em nenhum mercado, nem
internacional nem nacional; pensei que
ele era o ator certo. E os riscos que o
inglês poderia trazer dizem respeito,
exclusivamente no Brasil. No Uruguai e
na Argentina, não sabem nada do Selton
Mello, a não ser que é um bom ator“.
E a opção por Dafoe
foi , antes de tudo , uma oportunidade . Quase uma peça pregada pelo destino. Babenco foi assistir à montagem de “ The
Old Woman “ , de Bob Wilson, no Sesc
Pinheiros, em São Paulo, e ,
ao fim da peça, foi jantar com o elenco
- Dafoe e Mikhall Baryshnikov . Ao ouvir Babenco mencionar seu novo
projeto, Dafoe pediu para ler o
roteiro. O problema é que a versão para
o inglês ainda estava sendo preparada .
Qual não foi a surpresa do cineasta ao chegar em casa e ouvir um recado do
tradutor , avisando que a havia concluído. Babenco preferiu não ignorar o sinal e
deixou o roteiro no hotel onde o ator estava hospedado. Três dias depois, recebeu uma ligação - o fim da história sabemos. Sobre o trabalho do ator, Babenco resume: “ Ele é uma pessoa amável, sensível, e um profissional como eu “.
TONS DE DESPEDIDA
Décimo – primeiro longa –metragem da carreira do
cineasta . “ Meu Amigo Hindu “ pode
também marcar o começo da sua despedida
do set. No ano passado, durante entrevistas concedidas antes da
abertura da Mostra Internacional de Cinema
- que exibiu o filme na noite de abertura -, Babenco falou que está tirando sua câmera
de campo, “Cidade Maravilhosa “ , seu
próximo projeto, deve ser também seu
último trabalho como diretor, “Não há
recursos para o cinema no Brasil. As morosidades impostas pela relação com o
Estado tornam o ciclo da produção muito complicado“, diz . “ E eu estou cansado “ .
Apesar do desalento em relação a seu próprio fazer, Babenco se diz muito bem impressionado com
a nova geração de cineastas brasileiros – mencionando, especificamente, Gabriel Mascaro ( de “ Ventos de Agosto “ e " Boi Neon “ ) e Felipe Barbosa ( de “ Casa Grande “ ).
“Estou vendo um novo
cinema brasileiro nascer de jovens diretores e isso me deixa entusiasmado",
conclui.
Fonte - REVISTA
DE CINEMA págs
30 , 31 32
ANO XVI - EDIÇÃO 128
- MAR/ ABR 2016
Por Ana Paula Sousa
Educação do
olhar
Cinema
Um dos responsáveis
pela Novelle Vague , o crítico
André Bazin deu
status intelectual aos filmes no
anos 50
Homem culto e crítico de cinema, André Bazin é, com Henry Langlois - que foi diretor da Cinemateca Francesa -, um dos dois responsáveis pela Nouvelle Vague, movimento cinematográfico do qual surgiram muitos filmes e os pequenos
cinemas de arte em Paris.
Todos os cineastas da Nouvellle Vague - de Truffaut, Godard - são unânimes em dizer que André Bazin deu
status intelectual ao cinema na década de 50, tendo como mote a famosa pergunta: o que é cinema?
Para os jovens da Nouvelle Vague , o crítico Bazin era um cineasta que não
fazia filmes , mas que fazia cinema ao falar dos filmes. Tão importante quanto fazê-los era falar
dos filmes, obsessão que volta e meia
ressurge nos veteranos da Nouvellle Vague, a exemplo de Jean-Luc Godard,
para quem o grande pecado do cinema atual é que os cineastas não mais conversam
entre si.
O sentimento de solidão tomou conta dos cineastas. A troca de ideias tornou-se
problemática. Antes de André Bazin, o pensador do plano sequência, existiu Roger Leenhardt, o teórico mais sutil ao cinema na
França. Ambos foram amigos e
admiradores. O epitáfio de Bazin, feito por Leenhardt em 1959, é célebre por tê-lo colocado ao lado do
filósofo Sócrates, e não de
Aristóteles.
Antes de dialetizar o sentido de um filme em meio a outros
filmes, André Bazin partia de um
detalhe concreto, de uma imagem viva,
de um pequeno detalhe do plano cinematográfico.
O cineasta François Truffaut, filho único, morou uns tempos
na casa de Bazin. Este tirou Truffaut
duas vezes da cadeia. Seu primeiro
filme, “ Os incompreendidos “ ( 1959
), é dedicado ao grande crítico que alentava
o projeto de realizar um curta–metragem documentário sobre as Igrejas de
Roma. Mas não deu tempo. André Bazin morreu sem filmar e sem ver a
estreia de seu discípulo Truffaut.
A patota do “ Cahiers du Cinéma “ presta até hoje um
merecido culto a André Bazin, que
integra a notável tradição de crítica de arte na França, a qual teve seu começo com Diderot, depois de Baudelaire, a que se seguem Élie Faure e André
Malraux.
Cinema , arte sem
futuro. Cumpriu-se a profecia. Na metade do século 20 , em Paris a morte do cinema foi pranteada
pela Nouvelle Vague como cinema criança, o “petit enfant” mudo, que
começa a falar e logo morre para dar vida à TV. A tese de Godard, dialogando
com André Malraux, é que o cinema pós–pintura teve morte depressa, mas essa arte sem futuro produziu o século
20. É clássica sua definição: “Cinema
, arte do século 19 , que traz o
20 “.
A crítica francesa é a melhor crítica estética do mundo , segundo Godard em sua “História do Cinema “.
Nesta , André Bazin é o homenageado como
filósofo da imagem. O cinema nasce com
a pintura moderna de Édouard Manet.
A morfogênese do cinema foi o lance crítico revelado pela
Nouvelle Vague, graças à incorporação
da psicologia da arte feita por André Malraux, segundo a qual o fim da pintura representativa coincide com o
nascimento do cinema como arte de ficção. Da pintura ao cinema. Resulta
daí a formulação engenhosa e provocativa de Godard : a Nouvelle Vague, em vez de começar alguma coisa, foi na verdade uma porta que se fechou, pois o cinema começou a morrer justamente
com o advento da televisão e a morte de André Bazin.
Embora dotado de um raciocínio sempre claro (“ Cidadão Kane
“ é um americano dispendioso com grana,
que conquista em vão o mundo porque perdeu a infância ). André Bazin fazia crítica de cinema usando
a linguagem da metáfora.
Recordo-me do nosso Paulo Emílio na Escola de Comunicação da
USP, já cercado por uma plateia
libeluneoliberal: todo filme brasileiro
tem de ser visto. Atenção: o cinema é produtor de sentido.
Eis Bazin,
agora , neste ano , falado por Jean-Luc-Godard: o cinema produz
o século 20. Essa montagem como atração
implícita de ideias caracterizará o procedimento de todo cinema moderno. É o caso por exemplo de Glauber Rocha,
discípulo além mar de Bazin, pensando
em Orson Welles como repórter na Brasília de Ernesto Geisel: o golpe de 64 é um golpe de Roliudi“! A comunicação forma e deforma a
história, eis a façanha das Pictures.
Foi o cinema que ensinou a Bazin o olho do tempo, isto é, a história na segunda metade do século 20, enquanto a televisão, médium de difusão e comércio, significará o olhar degradado ou, parafraseando Karl Marx: o sentido deseducador da polis.
A TV nasceu de um tubo de cinema, mas é difícil afirmar que o cinema está
interessado nas lembranças, ainda que
tenha antevisto o horror nazi-fascista antes de Auschwitz.
Esta é a lição do grande crítico André Bazin: o cinema ensina olhar melhor o mundo.
Fonte - Jornal
FOLHA DE SÃO
PAULO pág 12
mais !
Domingo ,
25/0/99 - Gilberto Nascimento Vasconcellos é professor
de Ciências Sociais na Universidade
Federal de Juiz
de Fora (MG ) e autor
de “ O Príncipe da Moeda “ (
Espaço e Tempo ) , entre outros
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