Escrever simplesmente
Clarice Lispector começou a escrever muito cedo. Com nove anos, foi ver uma peça de teatro e ficou tão entusiasmada que escreveu uma outra, em três atos! Pena que hoje ninguém possa ler – o texto se perdeu. Aos 11 anos, ela mandava histórias para o jornal da sua cidade, Recife. O diário tinha uma seção só para textos de crianças. Nunca aceitaram as colaborações de Clarice. O que mostra que a gente não pode desistir dos sonhos quando recebe um não . Clarice recebeu muitos “ não “ pela vida , mesmo quando já tinha sido premiada como escritora . Mas não desistiu de escrever. Ela dizia que escrever era sua maneira de entender o mundo.
Clarice escrevia muitas vezes à máquina, mas também gostava de rabiscar em papéis soltos e cadernetas. Como dizia Clarice : “ Escrevo para mim , para que eu sinta a minha alma falando e cantando , às vezes chorando … “ .
Ferreira Gullar e Júlia Peregrino - Curadores - Banco do Brasil
Declaração de amor
Clarice Lispector
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável . E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento alerteza. E de amor.
A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve . Sobretudo para quem escreve. Tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo .
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado . Às vezes se assusta com o imprevisível de uma frase . Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas , às vezes lentamente , às vezes a galope . Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos . E este desejo todos os que escrevem têm . Camões e outros iguais não bastaram para nos dar sempre uma herança de língua já feita . Todos nós que escrevemos, estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida .
Estas dificuldades , nós a temos . Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada .
O que recebi de herança não me chega .
Se eu fosse muda , e também não pudesse escrever , e me perguntassem a que língua eu queria pertencer , eu diria : inglês , que é preciso e belo . Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português . Eu até queria não ter aprendido outras só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.
Cronologia
1920 - Nasce em 10 de dezembro, na Ucrânia, a menina Haia Lispector, terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector.
1922 - Os Lispector embarcam para o Brasil. Em Maceió, a família adota novos nomes: o pai passa a se chamar Pedro; Mania, Marieta; e Haia, Clarice. Pedro passa a trabalhar como mascate.
1925 - Mudam-se para Recife, em busca de novas perspectivas , de trabalho.
1930 - Matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch - Brasileiro. Em 21 de setembro, morre a mãe, Marieta, que sofria de paralisia.
1931 - Pedro solicita a cidadania brasileira. Clarice escreve contos para a seção infantil do Diário de Pernambuco , recusados por tratar de " sensações " ao invés de fatos .
1932 - A família muda-se para o Rio de Janeiro.
1936 - Termina o curso ginasial e passa a frequentar uma biblioteca perto da sua casa na Tijuca, onde conhece obras de autores clássicos nacionais e universais.
1939 - Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito. Trabalha como tradutora e secretária.
1940 - Publica seu primeiro texto na imprensa , o conto Triunfo, no seminário Pan morre o pai, em 26 de agosto. Emprega-se como redatora da Agência Nacional, onde convive com os escritores Antonio Callado e Lúcio Cardoso , entre outros .
1942 - Torna-se redatora do jornal A Noite . Escreve seu primeiro romance , Perto do coração selvagem .
1943 - Obtém a nacionalidade brasileira. Casa-se com Maury Gurgel Valente, colega de faculdade . Os dois terminam o curso de Direito e o marido ingressa na carreira diplomática . A editora A Noite publica Perto do coração selvagem .
1944 - Muda-se para Belém do Pará (PA) com o marido . Perto do coração selvagem recebe o Prêmio Graça Aranha de melhor romance de 1943 . Muda-se para Nápoles .
1945 - Trabalha voluntariamente em um hospital, assistindo aos soldados brasileiros. A Livraria Agir Editora publica O lustre.
1946 - Vem ao Brasil como correio diplomático e aproveita para divulgar O lustre. Muda-se com Mary para Berna na Suíça. Publica contos em jornais brasileiros .
1948 - Nasce seu primeiro filho, Pedro , em 10 de setembro. Continua a escrever contos, que publica na imprensa brasileira.
1949 - Mauri é transferido para Secretaria do Estado do Rio de Janeiro. Lança A cidade sitiada, pela editora A Noite.
1951 - Publica seis contos na coleção Cadernos de Cultura , do Ministério da Educação e Saúde.
1952 - Assina a coluna Entre mulheres, no semanário Comício, sob o pseudônimo de Tereza Quadros . Muda-se com Maury para os EUA, grávida. Inicia o romance A maça no escuro.
1953 - Em 10 de fevereiro, nasce Paulo, seu segundo filho.
1954 - Sai a edição francesa de Perto do coração selvagem , pela Editora Plon.
1956 - Termina de escrever A maça no escuro. A pedido do filho Paulo, escreve seu primeiro livro infantil. O mistério do coelho pensante .
1959 - Separa-se do marido e, em julho, regressa ao Brasil. Assume a coluna Correio feminino - feira de utilidades, com o pseudônimo de Helen Palmer, no Correio da Manhã.
1960 - A Francisco Alves publica o livro de contos Laços de família . Assina a coluna Só para mulheres , como ghost-writter da atriz Ilka Soares , no Diário da Noite .
1961 - Deixa de escrever colunas femininas . A Francisco Alves lança A maça no escuro . Recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro , por Laços de família.
1962 - Passa a assinar a coluna Children 's corner na Senhor , onde publica contos e crônicas. Recebe o Prêmio Carmem Dolores Barbosa , de melhor livro do ano , por A maçã no escuro .
1964 - Publica o livro de contos A legião estrangeira e o romance A paixão segundo G.H, ambos pela Editora do Autor . Desquita-se de Maury .
1966 - Um incêndio provocado por um cigano causa graves queimaduras na escritora, especialmente nas mãos. Corre o risco de morte, mas recupera-se.
1967 - Publica seu primeiro livro infantil . O mistério do coelho pensante . Inicia uma coluna semanal no Jornal do Brasil .
1968 - O mistério do coelho é premiado pela Campanha Nacional da Criança como melhor livro de 1967. Assina na Manchete a seção Diálogos possíveis com Clarice Lispector, em que entrevista personalidades .Publica o infantil A mulher que matou os peixes .
1969 - A Editora Sabiá lança Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres . O romance ganha o Prêmio Golfinho de Ouro , do MIS/Rio de Janeiro.
1971 - Publica o livro de contos Felicidade clandestina.
1973 - Publica àgua-viva , pela Artenova . A mesma editora lança a seleção de contos. A imitação da rosa . Deixa o Jornal do Brasil .
1974 - Trabalha como tradutora. Publica o infantil A vida íntima de Laura. Escreve os 13 contos de A via-crúcis do corpo para a Arte-nova. Publica ainda a coletânea de escritos One as estivestes de noite .
1975 - Lança Visão do esplendor , reunião de trabalhos publicados na imprensa . Publica De corpo inteiro , com suas entrevistas .
1976 - Recebe prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal. Faz entrevistas para a revista Fatos e fotos Gente .
1977 - Faz crônicas para o jornal Última Hora. Escreve o livro Quase de verdade e a série de histórias Como nasceram as estrelas , ambos infantis. Publica o romance A hora da estrela , pela José Olympio . Descobre que sofre de câncer de ovário em estágio avançado. Em 9 de dezembro , Clarice morre , no Rio .
Fonte - Centro Cultural Banco do Brasil - págs 1,2,3,4 - Caderno distrib/gratuita
Exposição de 19 de agosto a 28 de setembro de 2008 - Rio de Janeiro
Saudades
Sinto saudades de tudo que
marcou a minha vida.
Quando vejo retratos, quando
sinto cheiros, quando escuto uma voz,
quando me lembro do passado,
eu sinto saudades.
Sinto saudades de amigos que
nunca mais vi, de pessoas com
quem não mais falei ou cruzei...
Sinto saudades da minha infância,
do meu primeiro amor, do meu segundo,
do terceiro, do penúltimo e daqueles
que ainda vou ter, se Deus quiser...
Sinto saudades do presente,
que não aproveitei de todo,
lembrando do passado
e apostando no futuro...
Sinto saudades do futuro,
que se idealizado,
provavelmente não será do jeito
que eu penso que vai ser...
Sinto saudades de quem me
deixou e de quem eu deixei !
De quem disse que viria e nem
apareceu; de quem apareceu
correndo, sem me conhecer
direito, de quem nunca vou ter
a oportunidade de conhecer.
Sinto saudades dos que se foram
e de quem não me despedi direito !
Daqueles que não tiveram
como me dizer adeus; de gente
que passou na calçada contrária
da minha vida e que só
enxerguei de vislumbre !
Sinto saudades de coisas
que tive e de outras que não tive
mas quis muito ter !
Sinto saudades de coisas que
nem sei se existiram.
Sinto saudades de coisas sérias,
de coisas hilariantes,
de casos, de experiências...
Sinto saudades do cachorrinho
que eu tive um dia e que me
amava fielmente, como só os
cães são capazes de fazer!
Sinto saudades dos livros que li
e que me fizeram viajar !
Sinto saudades dos discos que
ouvi e que me fizeram sonhar.
Sinto saudades das coisas que
vivi e das que deixei passar,
sem curtir na totalidade.
Quantas vezes tenho vontade
de encontrar não sei o que...
não sei onde...
para resgatar alguma coisa que
nem sei onde o que é e nem onde
perdi...
Vejo o mundo girando e penso
que poderia estar sentindo
saudades
Em japonês, em russo,
em italiano, em inglês...
mas que minha saudade,
por eu ter nascido no Brasil,
só fala português, embora, lá no fundo,
possa ser poliglota.
Aliás, dizem que costuma-se
usar sempre a língua pátria,
espontaneamente quando
estamos desesperados...
para contar dinheiro... fazer amor ...
declarar sentimentos fortes,
seja lá em que lugar do mundo
estejamos .
Eu acredito que um simples
"I miss you "
ou seja lá
como possamos traduzir
saudade em outra língua ,
nunca terá a mesma força e
significado da nossa palavrinha .
Talvez não exprima
corretamente
a imensa falta
que sentimos de coisas
ou pessoas queridas .
E é por isso que eu tenho mais
saudades ...
Porque encontrei uma palavra
para usar todas as vezes em que
sinto este aperto no peito , meio
nostálgico , meio gostoso , mas
que funciona melhor do que um
sinal vital
quando se quer falar de vida
e de sentimentos .
Ela é a prova inequívoca de que
somos sensíveis !
De que amamos muito o que
tivemos e lamentamos as coisas
boas que perdemos ao longo da
nossa existência ...
Fonte - Joranla PRANA - pág 18
Setembro de 2016 - De: Clarice Lispector