terça-feira, 23 de junho de 2020

Clarice Lispector



Escrever  simplesmente 

Clarice Lispector começou a escrever muito cedo. Com nove anos, foi ver uma peça de teatro e ficou tão entusiasmada que escreveu uma outra, em três atos! Pena que hoje ninguém possa ler – o texto se perdeu. Aos 11 anos, ela mandava histórias para o jornal da sua cidade, Recife. O diário tinha uma seção só para textos de crianças. Nunca aceitaram as colaborações de Clarice. O que mostra que a gente não pode desistir dos sonhos quando recebe um não . Clarice recebeu muitos “ não “ pela vida , mesmo quando já tinha sido premiada como escritora . Mas não desistiu de escrever. Ela dizia que escrever era sua maneira de entender o mundo.

Clarice escrevia muitas vezes à máquina, mas também gostava de rabiscar em papéis soltos  e cadernetas. Como dizia Clarice : “ Escrevo  para  mim  ,  para  que  eu  sinta  a  minha  alma  falando  e  cantando  , às vezes  chorando  … “ .

Ferreira  Gullar  e  Júlia  Peregrino  - Curadores    - Banco  do  Brasil


Declaração  de  amor 

Clarice  Lispector  

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável . E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento alerteza. E de amor.

A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve . Sobretudo para quem escreve. Tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo .

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado . Às vezes se assusta com  o imprevisível de uma frase . Eu gosto de manejá-la – como gostava de estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas , às vezes lentamente , às vezes a galope . Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos . E este desejo todos os que escrevem têm . Camões e outros iguais não bastaram para nos dar sempre uma herança de língua já feita . Todos nós que escrevemos, estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida . 

Estas dificuldades , nós a temos . Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada .

O que recebi de herança não me chega .

Se eu fosse muda , e também não pudesse escrever , e me perguntassem a que língua eu queria pertencer , eu diria : inglês , que é preciso e belo . Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português . Eu até queria não ter aprendido outras só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida. 

Cronologia

1920 - Nasce em 10 de dezembro, na Ucrânia, a menina Haia Lispector, terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector.

1922 - Os Lispector embarcam para o Brasil. Em Maceió, a família adota novos nomes: o pai passa a se chamar Pedro; Mania, Marieta; e Haia, Clarice. Pedro passa a trabalhar como mascate.

1925 - Mudam-se para Recife, em busca de novas perspectivas , de trabalho.

1930 - Matricula-se no Collegio Hebreo-Idisch - Brasileiro. Em 21 de setembro, morre a mãe, Marieta, que sofria de paralisia.

1931 - Pedro solicita a cidadania brasileira. Clarice escreve contos para a seção infantil do Diário de Pernambuco , recusados por tratar de " sensações " ao invés de fatos .

1932 - A família muda-se para o Rio de Janeiro.

1936 - Termina o curso ginasial e passa a frequentar uma biblioteca perto da sua casa na Tijuca, onde conhece obras de autores clássicos nacionais e universais.

1939 - Inicia seus estudos na Faculdade Nacional de Direito. Trabalha como tradutora e secretária.

1940 - Publica seu primeiro texto na imprensa , o conto Triunfo, no seminário Pan morre o pai, em 26 de agosto. Emprega-se como redatora da Agência Nacional, onde convive com os escritores Antonio Callado e Lúcio Cardoso , entre outros .

1942 - Torna-se redatora do jornal A Noite . Escreve seu primeiro romance  , Perto do coração selvagem .

1943 - Obtém a nacionalidade brasileira. Casa-se com Maury Gurgel Valente, colega de faculdade . Os dois terminam o curso de Direito e o marido ingressa na carreira diplomática . A editora A Noite publica Perto do coração selvagem .

1944 - Muda-se para Belém do Pará (PA) com o marido . Perto do coração selvagem recebe o Prêmio Graça Aranha de melhor romance de 1943 . Muda-se para Nápoles . 

1945 - Trabalha voluntariamente em um hospital, assistindo aos soldados brasileiros. A Livraria Agir Editora publica O lustre. 

1946 - Vem ao Brasil como correio diplomático e aproveita para divulgar O lustre. Muda-se com Mary para Berna na Suíça. Publica contos em jornais brasileiros .

1948 - Nasce seu primeiro filho, Pedro , em 10 de setembro. Continua a escrever contos, que publica na imprensa brasileira.

1949 - Mauri é transferido para Secretaria do Estado do Rio de Janeiro. Lança A cidade sitiada, pela editora A Noite.

1951 - Publica seis contos na coleção Cadernos  de Cultura , do Ministério da Educação  e  Saúde.

1952 - Assina a coluna Entre mulheres, no semanário Comício, sob o pseudônimo de Tereza Quadros . Muda-se com Maury para os EUA, grávida. Inicia o romance A maça no escuro.

1953 - Em 10 de fevereiro, nasce Paulo, seu segundo filho.

1954 - Sai a edição francesa de Perto do coração selvagem , pela Editora Plon.

1956 - Termina de escrever A maça no escuro. A pedido do filho Paulo, escreve seu primeiro livro infantil. O mistério do coelho pensante .

1959 - Separa-se do marido e, em julho, regressa ao Brasil. Assume a coluna Correio feminino  - feira de utilidades, com o pseudônimo de Helen Palmer, no Correio da Manhã.

1960 - A Francisco Alves publica o livro de contos Laços de família . Assina a coluna Só para mulheres , como ghost-writter da atriz Ilka Soares , no Diário da Noite .

1961 - Deixa de escrever colunas femininas . A Francisco Alves lança  A maça  no escuro . Recebe o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro , por  Laços  de família.

1962 - Passa a assinar a coluna Children 's corner na Senhor , onde publica contos e crônicas. Recebe o Prêmio Carmem Dolores Barbosa , de melhor livro do ano ,  por A maçã no escuro .

1964 - Publica o livro de contos A legião estrangeira e o romance A paixão segundo G.H, ambos pela Editora do Autor . Desquita-se de Maury .

1966 - Um incêndio provocado por um cigano causa graves queimaduras na escritora, especialmente nas mãos. Corre o risco de morte, mas recupera-se.

1967 - Publica seu primeiro livro infantil . O mistério do coelho pensante . Inicia  uma coluna semanal no Jornal do Brasil .

1968 - O mistério do coelho é premiado pela Campanha Nacional da Criança como melhor livro de 1967. Assina na Manchete a seção Diálogos possíveis com Clarice Lispector, em que entrevista personalidades .Publica o infantil A mulher que matou os peixes  .

1969 - A Editora Sabiá lança Uma aprendizagem  ou O livro dos prazeres . O romance ganha o Prêmio Golfinho de Ouro , do  MIS/Rio de Janeiro.

1971 - Publica o livro de contos  Felicidade clandestina.

1973 - Publica àgua-viva , pela  Artenova . A mesma editora lança a seleção de contos. A imitação da rosa . Deixa o Jornal do Brasil .

1974 - Trabalha como tradutora. Publica o infantil A vida íntima de Laura. Escreve os 13 contos de A via-crúcis do corpo para a Arte-nova. Publica ainda a coletânea de escritos One as estivestes de noite .

1975 - Lança Visão do esplendor , reunião de trabalhos publicados na imprensa . Publica De corpo inteiro , com suas entrevistas .

1976 - Recebe prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal. Faz entrevistas para a revista Fatos e fotos Gente .

1977 - Faz crônicas para o jornal Última Hora. Escreve o livro Quase de verdade e a série de histórias  Como nasceram as estrelas , ambos infantis. Publica o romance  A hora da estrela , pela José Olympio . Descobre que sofre de câncer de ovário em estágio avançado. Em 9 de dezembro , Clarice morre , no Rio . 

Fonte  -  Centro  Cultural  Banco  do  Brasil  -  págs  1,2,3,4 - Caderno distrib/gratuita
Exposição  de  19  de  agosto  a  28  de  setembro  de  2008  - Rio de  Janeiro 


Saudades  

Sinto  saudades  de  tudo  que 
marcou  a  minha  vida.
Quando  vejo  retratos, quando  
sinto  cheiros, quando  escuto  uma  voz, 
quando  me  lembro  do  passado,  
eu  sinto  saudades.

Sinto  saudades  de  amigos  que  
nunca  mais  vi,  de  pessoas  com 
quem  não  mais  falei  ou  cruzei...

Sinto  saudades  da  minha  infância, 
do  meu  primeiro  amor,  do  meu  segundo, 
do terceiro,  do  penúltimo  e  daqueles  
que  ainda  vou  ter,  se  Deus  quiser...

Sinto  saudades  do  presente,  
que  não  aproveitei  de  todo, 
lembrando  do  passado 
e  apostando  no  futuro...

Sinto  saudades  do  futuro,  
que se idealizado,  
provavelmente  não  será  do  jeito
que  eu  penso  que  vai  ser...


Sinto  saudades  de  quem  me  
deixou  e  de  quem  eu  deixei !  
De  quem  disse  que  viria  e  nem
apareceu;  de  quem  apareceu  
correndo,  sem  me  conhecer  
direito,  de  quem  nunca  vou  ter  
a  oportunidade  de  conhecer.

Sinto  saudades  dos  que  se  foram  
e  de  quem  não  me  despedi  direito ! 

Daqueles  que  não  tiveram
como  me  dizer  adeus;  de  gente 
que  passou  na  calçada  contrária  
da  minha  vida  e  que  só  
enxerguei  de  vislumbre  !

Sinto  saudades  de  coisas 
que  tive  e  de  outras  que  não  tive  
mas  quis  muito  ter  ! 

Sinto  saudades  de  coisas  que
nem  sei  se  existiram.

Sinto  saudades  de  coisas  sérias,
de  coisas  hilariantes, 
de  casos,  de  experiências...

Sinto  saudades  do  cachorrinho 
que  eu  tive  um  dia  e  que  me 
amava  fielmente, como só  os
cães  são  capazes  de  fazer!  

Sinto  saudades  dos  livros  que  li
e  que  me  fizeram  viajar  !

Sinto  saudades  dos  discos  que 
ouvi  e  que  me  fizeram  sonhar.

Sinto  saudades  das  coisas  que 
vivi e  das  que  deixei  passar,  
sem  curtir  na  totalidade.

Quantas  vezes  tenho  vontade 
de  encontrar  não  sei  o  que...
não sei  onde...
para  resgatar  alguma  coisa  que
nem  sei  onde  o  que  é  e  nem  onde
perdi...

Vejo  o  mundo  girando  e  penso 
que  poderia  estar  sentindo  
saudades  
Em  japonês,  em  russo,
em  italiano,  em  inglês...
mas  que  minha  saudade,
por  eu  ter  nascido  no  Brasil,
só  fala  português,  embora, lá  no  fundo,
possa  ser  poliglota.

Aliás, dizem que costuma-se 
usar  sempre  a  língua  pátria,
espontaneamente  quando 
estamos desesperados...
para contar  dinheiro... fazer  amor ...
declarar  sentimentos  fortes,
seja  lá  em  que  lugar  do  mundo 
estejamos .

Eu  acredito  que  um  simples  
"I  miss  you  " 
ou  seja  lá 
como  possamos   traduzir  
saudade  em  outra  língua  ,
nunca  terá  a  mesma  força  e 
significado  da  nossa  palavrinha  .

Talvez    não   exprima 
corretamente 
a  imensa  falta  
que  sentimos  de  coisas  
ou  pessoas  queridas  .

E  é  por  isso  que  eu  tenho  mais  
saudades  ...
Porque  encontrei  uma  palavra  
para  usar  todas  as  vezes  em  que  
sinto  este  aperto  no  peito  ,  meio
nostálgico  ,  meio  gostoso  ,  mas 
que  funciona  melhor  do  que  um  
sinal  vital  
quando  se  quer  falar  de  vida 
e  de  sentimentos .

Ela  é  a  prova  inequívoca  de  que 
somos  sensíveis  ! 
De  que  amamos  muito  o  que  
tivemos  e  lamentamos  as  coisas 
boas  que  perdemos  ao  longo  da 
nossa  existência ...

Fonte  -  Joranla  PRANA    -   pág  18   
Setembro  de  2016   -  De:   Clarice  Lispector  

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