Os protestos pelo assassinato do segurança Georg Floyd ganharam as ruas dos Estados Unidos e de vários países. A cena chocante em que o homem negro é asfixiado por um policial branco na cidade de Minneapólis já entrou para a história mundial, como aquelas imagens que exigem uma tomada de posição da humanidade. Como continuar vivendo num lugar que produz e tolera a crueldade? “ Não consigo respirar “ , essas foram as últimas palavras de George. Mais que um grito de socorro , a frase do segurança é uma síntese de como o racismo é perverso e estruturante. Quando não mata pelo uso da força, aniquila o negro pouco a pouco, fechando portas , minando as possibilidades até o último suspiro. Mas se engana quem acha que esse episódio ilustra uma realidade específica , de tensões históricas como a norte-americana. No Brasil , de acordo com a Anistia Internacional , um jovem negro tem em média duas e meia vezes mais chances de morrer do que um jovem branco. Discutir sobre as desvantagens de ser negro num país violento e de desigualdade secular não pode continuar sendo tabu .
A comoção por George rendeu uma onda de apoios nas redes sociais no Brasil. A hastag =BlackLivesMatter foi endossada por muitos formadores de opinião daqui, de políticos a artistas. Infelizmente tal posicionamento soa como jogo de cena , que não reflete em ações mais efetivas no combate ao racismo . Recentemente , Agatha e João Pedro , crianças negras , tiveram suas vidas ceifadas e só observamos alguns lamentos. Esta semana o garoto Miguel, de cinco anos, morreu ao cair de nove andares de um prédio, no Recife onde sua mãe trabalhava . No momento do acidente, a empregada doméstica tinha ido passear com o cachorro dos patrões e deixou o Miguel aos cuidados da mulher. Segundo as investigações , a patroa teria negligenciado e se omitido de cuidar do menino enquanto a mãe cumpria as suas ordens. Após pagar multa de vinte e mil reais, a investigada obteve a liberdade provisória. A morte de Miguel escancara uma sociedade , estruturada num modelo de dominação , que tem origem no sistema escravocrata.
Apesar de alguns avanços sociais conquistados na última década , os negros continuam sendo os mais vitimados no país com relação aos direitos à saúde , educação , trabalho , moradia , transporte e segurança. Sem estudo formal não há possibilidade de romper os ciclos de pobreza herdados do passado. Não é coincidência de que a maioria das empregadas domésticas , como a mãe de Miguel ,seja composta por mulheres negras , moradoras de periferias , que convivem com a discriminação racial e com a baixa renda. Vale lembrar que a primeira pessoa a morrer por causa da pandemia do novo coronavírus no estado do Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica negra que não foi dispensada pela empregadora com a doença confirmada. O Estatuto da Igualdade Racial , instituído em dois mil e dez , que deveria funcionar como um conjunto de regras para coibir a discriminação , estabelecendo políticas para diminuir a desigualdade , pouco fez efetivamente para reduzir as assimetrias históricas entre brancos e negros .
No livro “ Sobre o Autoritarismo Brasileiro “ , Lília Schwarcz explica que os padrões atuais de mortandade dos negros remetem a questões históricas mal resolvidas. A antropóloga argumenta que o sistema escravocrata se transformou num modelo tão enraizado no Brasil que acabou se convertendo numa linguagem com graves consequências para a sociedade , ou seja , ela não funciona sem a lógica de servidão da casa grande senzala . Lília mostra que o período pós-abolição não construiu uma nação mais igualitária no que se refere aos diferentes povos que a formaram , ao contrário levou à exclusão de boa parte da população das principais instituições do Estado.
Diante desse cenário de desigualdade o que podemos fazer além de subir hastag ? A filósofa Djamila Ribeiro na obra “ Pequeno Manual Anti Racista “aponta alguns caminhos , como questionar a proporção de brancos e negros no quadro de funcionários e os critérios de contratação das empresas , refletindo se os mesmos não excluem os negros". A autora também sugere que se valorize mais produções intelectuais negras, de modo a expandir nossos pontos de vista eurocêntricos. Sobre isso, é necessário se posicionar contra o apagamento dos saberes de populações historicamente oprimidas. A obra ainda recomenda que apoiemos movimentos e organizações engajadas em combater práticas de discriminação racial. A comoção por George exige de todo nós – brancos e negros – assumamos uma mentalidade antirracista . O tempo da chibata em praça pública já passou.
Fonte - Jornal A TRIBUNA -CIDADES - pág Adez
Sábado , seis de junho de dois mil e vinte
Michel Carvalho – Jornalista , professor e especialista em Comunicação
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