Parecia o fim do mundo : cadáveres insepulcros , falta de comida e de remédios para enfrentar a maior epidemia de todos os tempos . No Rio de Janeiro ,usada politicamente , a gripe espanhola construiu e des-truiu reputações
Num espaço de oito meses , a gripe espanhola matou entre 50 a 100 milhões de pes-soas no mundo. Na cidade do Rio de Janeiro , então capital federal ,os índices de mortalidade alcançaram cifras nunca ima- ginadas .No mês de setembro de 1918 morreram 48 pessoas , e em outubros óbitos aumentaram em 2000% . Apenas no dia 22 desse mês registraram-se 890 mortes .
Vistas no passado como consequência dos miasmas que habitam as imundícies e os ares fétidos , as epi- demias evocam medos ancestrais , que remontam à antiguidade e à Idade Média . De fato , sobreviventes da espanhola , entrevistados por mim , he-sitaram em pronunciar o nome da gripe , como se sua simples menção pudesse de-sencadear novamente a tragédia vivida .
Nas suas memórias , o médico Pedro Nava descreve aquele dramático período da seguinte forma : “ Aqueles dias ninguém que os tenha vivido poderá jamais esquecê-los ; tudo era de um cinza purulento , dum roxo podre , poente de chuva , saimento, marcha fúnebre , viscosidade e catarro “ .
Os primeiros brasileiros a contraírem a foram os oficiais do Exército que integravam a Missão Médica Brasileira.Estavam a caminho de Dacar , no Senegal ,com a missão de auxiliar as forças aliadas .Durante o trajeto ,muitos adoeceram e morreram , tendo seus corpos lançados ao mar .A notícia chegou ao Brasil , por cabograma ,no dia 26 de setembro de 1918 . A gravidade do acontecimento e a expansão da moléstia foi , no entanto, ignorada pelas autoridades ,na verdade sem recursos para montar uam estratégia de so - corro à população .
As primeiras notícias sobre a peste que devastava a Europa , publicadas pela im-prensa nos últimos dias de setembro de 1918 , também foram encaradas com displicência .Algumas vezes ,como aparece na re- vista A Careta ,as notícias eram abor-dadas de forma cômica e num tom de crítica política : a gripe vista como arma bacteriológica criada pelos alemães para vencer a Primeira Guerra e afastar dos combates os países neutros .
Tal visão da espanhola só se desfez quando as pessoas começaram a adoecer em massa e as ruas da ci -dade a sede cadáveres .A incubação da gripe durava de três a sete dias . De uma simples zoeira nos ou- vidos , surdez , dores de cabeça e os-cilação de temperatura , a doença se desenvolvia com os infectados apresentando calafrios , hemorragias intensas , urina e vômitos , misturados a sangue .Tal quadro era acom-panhado de pertubações nos nervos cardíacos , infecções nos intestinos ,pulmões e meninges , levando as vítimas a sufocações ,a diarréias , dores - lancinantes ,à letargia , ao coma , à intoxicação pela falta de fun-cionamento dos rins ,a cianose ( azulamento da pele ) ,à síncope e finalmente à morte em algumas horas ou dias , cuja proximidade era conhecida pelo escurecimento dos pés das vítimas .O doente passava a maior parte do tempo em delírio devido à febre alta .
Em muitas casas , famílias inteiras caíam acamadas , dependendo de quem pela rua passasse para que se pudessem alimentar e receber remédios .Essa função acabava sendo exercida por lixeiros , coveiros , e policias ,que acudiam os " espanholados " . Colocavam -se panos negros nas janelas para indicar que na casa havia doentes necessitando de socorro .
Luta contra o tempo , luta contra a morte : gripe mobilizou cientistas do mundo inteiro
As limitações da ciência e da medicina , não só brasileira como mundial , em
1918 , impossibilitaram a identificação do agente especíifico da gripe espan-
hola ,levando a diagnósticos controversos e métodos de combate diversificados .
A ciência se encontrava , na verdade , diante de algo muito além da sua compre-
ensão .
A epidemia desencadeou no Brasil e em outras partes do mundo esforços cientí-
ficos com vistas a descobrir o verdadeiro agente da doença . Um estagiário do
Instituto Pasteur de Paris .Dujarric , expôs teoria bastante consistente , apon -
tando como causador da gripe um vírus filtrável - que poderia facilmente trans-
por as membranas das células ddificultando a sua localização e , consequente -
mente, a sua identificação e o seu isolamento - , e não uma bactéria . esses es-
tudos desencadearam uma série de outros , entre os quais se destacam os do
dr .Selter ,na Alemanha , e os do dr . Yamonuchi , no Japão .
O agente causador da gripe comum só seria coberto em 1933 , quando a ciência
já era capaz de identificar estruturas como DNA e RNA e visualizar seres micros-
cópios como os retrovírus . O mistério da espanhola , no entanto , perdura até
hoje .
Quando as mortes se intensificaram e não se dava amis vazão às demandas por enterros , punham -se os pés
dos mortos escorados nas janelas das casas para que a Assistência Pública viesse recolher o cor po . Para cobrir a demanda por caixões , passaram a fabricá-los com tábuas retiradas dos tetos e assoalhos das casas. Com o acirramento da crise nos serviços funerários a população deixava no meio da rua os corpos dos pa-rentes , que já apresentavam sinais de decomposição a coleta dos cadáveres insepultos foram utilizados ca-minhões de lixo e bondes ,estes apelidados pela população de " trens fantasmas " , pois transportavam os defuntos amortalhados em lencóis brancos , não sendo raro encontrar alguns vivos entre os mortos .Visando contornar a falta de coveiros , para os serviços funerários convocaram-se os presos da Casa de Correção , presídio localizado no Rio de Janeiro , o que só fez aumentar o pânico da população .Circulavam boatos de que os detentos mutilavam os dedos e as orelhas dos mortos para roubar os brincos e anéis , entre outros mais assombrosos e impactantes .
A Santa Casa da Misericórdia , único hospital voltado para o atendimento do público na cidade ,recebeu da população a alcunha de " casa do Diabo " .Devido ao elevado número de mortes na instituição , difundiu-se pela cidade que ali se ministrava aos do-ente mais crônicos uma tisana letal , imortalizada na memória popular como " chá da meia noite " - supostamente uma mistura de chá com aesênico .
Algumas instituições foram de grande importância no auxílio da população como a Cruz Vermelha Brasileira, que improvisou vários hospitais pela cidade pa aatender ao público,e o Corpo de Bombeiros que distribuía sopas aos necessitados .Os bombeiros eram responsáveis também pela venda das galinhas que passaram a ser confiscadas pelo governo em granjas e casas particulares .A canja ,feita com arroz e galinha, era tida como um ótimo alimento na recuperação dos doentes .Isso originou um mer-cado negro de galinhase vários quebra-quebras pela cidade , consequentes da acirrada disputa pelas valiosas aves .
Um inimigo invisível no front
Não se sabe até hoje com certeza onde se originou a gripe espanhola e por que
lhe deram esse nome . Numa das versões , teria sido batizada pela Inglaterra , como resposta àsimpatia declarada de vários membros do governo espanhol ao
inimigo alemão ,na Primeira Guerra .O fato é que a gripe afetou esforços bélicos,
levando muitos soldados de ambos os lados a tombarem no front não pela bala
dos inimigos , mas pela ação de um mal invisível e insidioso .
A gripe acabou também frustrando um plano militar alemão que poderia ter levado o general Erich Von Ludendorf ,comandante dos exércitos germânicos , a ganhar a guerra .O intenso tráfego marítimo na época , tanto de navios bélicos como de em-barcações comerciais , abarrocadas de refugiados, ajudou a expansão da epidemia
pelos quatro cantos do mundo .
O colapso das instituições de saúde pública , juntamente com a falta de médicos , leitos nos hospitais , re-médios e alimentos , despertou a ira da população .Mesmo diante do caos instaurados , as autoridades po-líticas e sanitárias insistiam em defender publicamente a benignidade do mal reinante , tornando mais agudas as tensões sociais instauradas pela pandemia ,que construiu e destruiu reputações .A imprensa conduziu à execração pública , por exemplo , o diretor - geral da Saúde Pública , Carlos Seidl . Bode expiatório da gri-pe espanhola , sua perda prestíigio social foi tamanha que ele jamais se recuperou . Foi nesse contexto que a figura de Carlos Chagas emergiu como herdeiro cientíifico de Oswaldo Cruz .A opinião pública exigiu que o comando dos serviços de socorro público no combate à gripe fosse entregue a ele .Chagas foi então requi-sitado pelo presidente da República , Venceslau Brás , para administrar as atividades de socorro à popu-lação enferma.
No auge da epedemia tudo tudo se desorganizou , invibializando o funcionamento da cidade , na época cen-tro administrativo e político do país . As repartições fecharam por falta de funcionários e os colégios sus-penderam as aulas .Diante de todos esses problemas , o próprio presidente Venceslau Brás ( 1914 - 1918 ) foi acusado de incompetência política Saiu do episódio achicanlhando pelos seus adversário adversários po-líticos e pela opinião políiitica . Não se candidatou a político pelo resto da vida .
A epidemia foi manipulada , politicamente , por partidários do conselheiro Rodrigues Alves , que se can-ditara a novo mandato presidencial . Ironia do destino , acabaria como uma das vítimas mais ilustres da espanhola . Idoso , não resistiu à investida da gripe e morreu no dia 16 de janeiro de 1919 .
De todo modo, a gripe contribuiu para que as questões de saúde ganhassem mais atenção na agenda política do governo seguinte .Permaneceu , no entanto , como um enigma . Desde a década de 80 do século passado, cientistas americanos , ingleses e canadenses percorrem o mundo atrás de corpos conservados de vítimas ,de onde possam desentranhar o vírus adormecido .Até hoje ,não se conseguiu produzir em laboratório a carga viral completa da maior epidemia de todos os tempos .O trabalho de detetive desses cientistas se justifica : não estamos livres de uma nova gripe assassina . Para a ciência , é apenas uma questão de tempo . Resta saber se até lá teremos instrumentos eficazes para impedir ou pelo menos atenuar os seus efeitos catastrófico. .
Fonte - REVISTA DE HISTÓRIA - BIBLIOTECA NACIONAL
Data - Janeiro 2004 - ADRIANA DA COSTA GOULART é mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense onde defendeu dissertação intitulada . Um cenário mefistofélico , a gripe espanhola no Rio de Janeiro , no ano de 2003 .
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