terça-feira, 7 de maio de 2024

Memória da peste




Parecia  o  fim do  mundo : cadáveres  insepulcros , falta de  comida e  de remédios para  enfrentar a  maior  epidemia de  todos os  tempos . No Rio de  Janeiro ,usada politicamente , a gripe espanhola construiu e des-truiu reputações 


Num espaço de oito meses , a  gripe espanhola matou entre 50 a 100 milhões de pes-soas no mundo. Na  cidade do Rio de Janeiro , então  capital  federal ,os  índices de  mortalidade alcançaram cifras nunca ima- ginadas .No mês  de setembro de  1918  morreram 48 pessoas , e  em  outubros óbitos aumentaram em 2000% . Apenas no dia 22 desse  mês registraram-se  890  mortes .

Vistas no passado como consequência dos  miasmas que habitam as  imundícies e os  ares  fétidos , as epi- demias evocam  medos  ancestrais , que remontam à  antiguidade e  à Idade Média . De fato , sobreviventes da espanhola , entrevistados  por mim , he-sitaram em pronunciar  o nome  da  gripe , como se sua simples  menção pudesse de-sencadear novamente a tragédia vivida . 

Nas  suas  memórias , o médico  Pedro  Nava  descreve aquele  dramático período  da seguinte  forma : “ Aqueles dias  ninguém que os tenha  vivido poderá jamais esquecê-los ; tudo  era de um cinza  purulento , dum  roxo podre , poente de chuva , saimento, marcha  fúnebre , viscosidade e  catarro “ .

Os primeiros  brasileiros a contraírem a  foram os oficiais do Exército  que integravam a   Missão Médica  Brasileira.Estavam a caminho de Dacar , no Senegal ,com a missão de auxiliar as forças  aliadas .Durante o  trajeto ,muitos adoeceram e morreram , tendo seus corpos lançados ao mar .A notícia chegou  ao  Brasil ,    por cabograma ,no dia 26  de setembro de 1918 . A gravidade do acontecimento e a expansão da  moléstia foi , no entanto, ignorada pelas autoridades ,na verdade sem recursos para montar uam  estratégia de so - corro  à  população .

As  primeiras  notícias sobre  a  peste que devastava  a Europa , publicadas pela im-prensa nos últimos dias de  setembro de  1918 , também  foram encaradas com  displicência .Algumas vezes ,como aparece na re- vista A  Careta ,as  notícias eram abor-dadas de forma cômica e num tom de crítica política : a  gripe vista como arma bacteriológica criada pelos  alemães para vencer a  Primeira Guerra e afastar dos combates os países neutros . 

Tal visão da espanhola só se desfez quando as  pessoas começaram a  adoecer em  massa e as ruas da ci -dade a sede cadáveres .A incubação da  gripe durava de três a  sete dias . De uma  simples  zoeira nos ou- vidos , surdez , dores de cabeça e  os-cilação de temperatura , a doença se desenvolvia com os  infectados apresentando calafrios , hemorragias  intensas , urina e vômitos , misturados a sangue .Tal quadro era acom-panhado de pertubações  nos nervos cardíacos , infecções nos intestinos ,pulmões e  meninges , levando as  vítimas a  sufocações ,a diarréias , dores - lancinantes ,à letargia , ao coma , à intoxicação pela falta de fun-cionamento dos rins ,a cianose ( azulamento da pele ) ,à  síncope e finalmente  à morte em algumas horas ou dias , cuja  proximidade era conhecida pelo  escurecimento dos  pés das vítimas .O doente passava a maior parte do  tempo em  delírio devido  à  febre alta .

Em muitas casas , famílias  inteiras caíam acamadas , dependendo de quem pela  rua passasse para que se pudessem  alimentar e receber remédios .Essa  função acabava  sendo exercida por  lixeiros , coveiros , e policias ,que acudiam os  " espanholados " . Colocavam -se  panos  negros nas  janelas para indicar que na casa havia  doentes necessitando de  socorro . 


       Luta contra o tempo , luta  contra a morte :  gripe  mobilizou cientistas do mundo inteiro                            

       As  limitações  da  ciência e da  medicina , não só  brasileira como mundial , em  
       1918 , impossibilitaram a  identificação do  agente especíifico  da  gripe  espan-
        hola ,levando a diagnósticos controversos e métodos de combate diversificados . 
        A ciência  se  encontrava , na verdade , diante de algo muito além da sua compre-   
        ensão .

         A epidemia  desencadeou no Brasil e em outras partes do mundo  esforços cientí-     
         ficos com  vistas a descobrir o  verdadeiro agente  da doença . Um  estagiário do  
         Instituto Pasteur de Paris .Dujarric , expôs  teoria  bastante  consistente ,  apon -       
         tando como  causador da gripe  um  vírus  filtrável - que poderia facilmente trans-
         por as  membranas das  células ddificultando  a  sua localização e , consequente -  
         mente, a sua  identificação  e o seu  isolamento - , e não uma bactéria . esses es-   
         tudos desencadearam  uma  série  de outros , entre os quais  se destacam os do     
         dr .Selter ,na  Alemanha , e os do dr . Yamonuchi , no Japão .

        O agente causador da  gripe comum só seria coberto em  1933 , quando a ciência 
        já era capaz de  identificar estruturas como  DNA e  RNA e visualizar  seres micros-
        cópios como os  retrovírus . O  mistério  da  espanhola , no entanto , perdura  até 
        hoje .                                     


Quando as mortes se intensificaram e não se dava  amis vazão às demandas por enterros , punham -se os pés
dos mortos escorados  nas  janelas das casas para que  a  Assistência  Pública viesse recolher o cor po . Para cobrir a demanda  por caixões , passaram a fabricá-los com tábuas retiradas dos tetos e assoalhos  das casas. Com o acirramento da crise nos serviços funerários  a população deixava no meio da  rua  os corpos dos pa-rentes , que já apresentavam  sinais de decomposição a coleta dos  cadáveres  insepultos foram utilizados ca-minhões de lixo e bondes ,estes apelidados pela  população  de  " trens  fantasmas " , pois transportavam os defuntos amortalhados em lencóis brancos , não sendo raro encontrar alguns  vivos entre  os mortos .Visando contornar a falta de coveiros , para os serviços funerários convocaram-se os presos da  Casa  de Correção , presídio localizado no  Rio de Janeiro , o que só fez aumentar o pânico da população .Circulavam  boatos de que os detentos mutilavam  os dedos e as orelhas dos mortos para roubar os brincos e  anéis , entre outros mais assombrosos e impactantes . 

A  Santa Casa da Misericórdia , único hospital voltado para o atendimento do público na cidade ,recebeu da população a  alcunha de  " casa do  Diabo " .Devido ao elevado  número de mortes na instituição , difundiu-se pela cidade que ali se ministrava aos do-ente mais crônicos uma tisana letal , imortalizada na  memória popular como  " chá da meia noite " - supostamente uma mistura de chá com  aesênico .

Algumas  instituições foram  de grande  importância  no auxílio da população como a Cruz Vermelha Brasileira, que improvisou vários  hospitais  pela cidade pa aatender ao  público,e o Corpo de  Bombeiros que distribuía sopas aos necessitados .Os bombeiros eram  responsáveis  também  pela venda das  galinhas que passaram a  ser confiscadas pelo governo em granjas e casas particulares .A canja ,feita com arroz e galinha, era tida como um ótimo alimento na  recuperação dos doentes .Isso originou um mer-cado negro de galinhase vários quebra-quebras pela cidade , consequentes da  acirrada disputa pelas  valiosas aves . 

   Um inimigo invisível  no  front 

  Não se sabe até hoje com certeza onde se originou a  gripe espanhola e por que 
  lhe deram  esse nome . Numa  das versões , teria sido  batizada  pela  Inglaterra ,                                            como resposta  àsimpatia declarada de vários membros do governo espanhol ao
  inimigo alemão ,na Primeira Guerra .O fato é que a gripe afetou esforços bélicos,
  levando muitos soldados de ambos os lados  a tombarem no front não pela bala 
  dos inimigos , mas pela  ação de um  mal invisível e  insidioso . 

 A gripe acabou também frustrando um plano militar alemão que poderia  ter levado o general  Erich Von  Ludendorf ,comandante dos exércitos germânicos , a ganhar a  guerra .O  intenso tráfego marítimo na época , tanto de  navios bélicos como de em-barcações comerciais , abarrocadas de  refugiados, ajudou a  expansão da  epidemia 
pelos  quatro  cantos do mundo . 




O colapso das  instituições de  saúde pública , juntamente com a  falta de  médicos , leitos nos  hospitais , re-médios e alimentos , despertou a  ira da  população .Mesmo diante do caos  instaurados , as  autoridades po-líticas e sanitárias  insistiam em defender publicamente a  benignidade do  mal reinante , tornando mais agudas as tensões sociais  instauradas pela  pandemia ,que construiu e destruiu  reputações .A  imprensa conduziu à  execração pública , por exemplo , o diretor - geral da Saúde Pública , Carlos  Seidl . Bode expiatório da  gri-pe espanhola , sua perda  prestíigio social foi  tamanha que ele jamais  se  recuperou . Foi nesse contexto que a  figura de  Carlos Chagas emergiu como  herdeiro cientíifico de Oswaldo Cruz .A  opinião pública exigiu que o comando dos serviços de socorro público no  combate à gripe fosse entregue a ele .Chagas foi então requi-sitado pelo  presidente da  República , Venceslau Brás , para administrar  as  atividades de socorro  à  popu-lação enferma.

No auge da epedemia tudo tudo se desorganizou , invibializando o funcionamento da cidade , na  época cen-tro administrativo e  político do país . As repartições fecharam por  falta de  funcionários e os  colégios  sus-penderam as aulas .Diante de todos esses  problemas , o  próprio presidente  Venceslau Brás  ( 1914 - 1918 ) foi acusado de incompetência política Saiu do episódio achicanlhando  pelos  seus adversário adversários po-líticos e pela  opinião políiitica . Não se candidatou a político pelo resto da  vida .

A  epidemia foi  manipulada , politicamente , por  partidários  do  conselheiro Rodrigues  Alves , que se can-ditara a  novo mandato presidencial . Ironia do  destino , acabaria  como uma  das vítimas  mais ilustres da  espanhola . Idoso , não resistiu  à investida da  gripe e morreu no dia  16 de janeiro de  1919 .

De todo modo, a gripe contribuiu para que as  questões de saúde ganhassem  mais atenção na agenda política do governo seguinte .Permaneceu , no entanto , como um  enigma . Desde a década de 80 do século passado, cientistas  americanos , ingleses e canadenses percorrem o mundo atrás de corpos conservados de vítimas ,de onde possam  desentranhar o vírus  adormecido .Até hoje ,não se conseguiu produzir em  laboratório a  carga viral completa da  maior  epidemia de todos os tempos .O  trabalho de detetive  desses cientistas  se justifica : não estamos  livres de uma nova gripe assassina . Para a ciência , é apenas  uma  questão de  tempo . Resta saber se até lá teremos instrumentos eficazes para impedir ou pelo menos atenuar os seus efeitos  catastrófico. . 
Fonte  - REVISTA  DE  HISTÓRIA  -  BIBLIOTECA  NACIONAL  
Data    -  Janeiro 2004  -  ADRIANA  DA  COSTA  GOULART   é  mestre  em  História  Social   pela  Universidade Federal Fluminense onde defendeu dissertação intitulada . Um cenário mefistofélico , a  gripe  espanhola no  Rio de  Janeiro , no ano de  2003 .


 

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