Faz muito tempo que a questão me preocupa ,como furúnculo inchado ,não espremido , latejante . Mas nunca tive coragem para dizer o que eu estava pensando . Até que uma colisão acidental -com um técnico fez estourar o furúnculo ,o pus escorreu e saiu o berro de exorcismo que estava entalado .
Um técnico de boca aberta é mais perigoso para a democracia que uma urna de boca fechada .
Sei que seu impulso imediato , frente a afirmação tão estapafúrdia , será de interromper a leitura . Qualquer coisa tem de ser mais séria que tamanho disparate .
Claro que é disparate . Todo mundo sabe que nosso mundo foi gerado nas entranhas dos técnicos . Filhos deles ... Eles falam e acontecem usinas hidrelétricas ,barbeadores descartáveis ,viagens inter planetárias , coadores de papel , anticoncepcionais , computadores , brinquedos eletrônicos , marca-passos para corações trôpegos , salsichas , canetas esferográficas , armas mais inteligentes , inteli-gências mais armadas ...
Mas antes de interromper sua leitura , por favor , ouça as minhas razões . Ela têm uma história .
Tudo aconteceu por causa de um incidente com a administração da Cidade de Campinas .Havia um pequeno balão ajardinado , no meio da avenida Brasil . Lá no centro , uma velha Tipuana , antiga conhecida todos . Era uma ilha em meio à selvageria do tráfego . De lá as pessoas podiam esticar suas línguas para os automóveis ,impunes. A Prefeitura resolveu alargar a tal avenida .Mais espaço para os automóveis .Era necessário correr mais . E assim se decretou a morte do balão e o corte de Tipuana . A população berrou . O balão não sai . É parte do nosso corpo . Fica a Tipuana e sua sombra . Os carros que trafeguem pedindo licença , devagar como convém às máquinas . Afinal, o desejo de quem mora deve ter prioridade sobre tudo o mais . Houve até um moço que se aco-rrentou à Tipuana , já transformada em símbolo de um desejo . A Prefeitura recuou e todos can-taram vitória . Tolice . Poucos dias depois a administração investiu como um tangue de guerra . Açao de comando . O técnico convocou a força das armas . A polícia obedeceu . O lugar foi ocu - pado A Tipuana foi cortada . A praça foi arrasada. O técnico responsável justificou sua ação alegando que " o povo é ignorante em questões de tráfego " .
Acham absurda a prepotência do técnico ? Mas ele é absolutamente lógica . Ele simplesmente repetiu aquilo que já instalou como realidade , em meio à nossa vida cotidiana .
Assim ,o povo deve se calar sobre questões militares , porque os especialistas estão cuidando de tudo . Em assuntos econômicos será bom que ele se dedique a produzir e a consumir , já que todos os outros problemas foram entregues a quem sabe . Na saúde a mesma coisa . O doente abre mão do seu próprio corpo e o entrega às manipulações das pessoas e instituições que detêm o monopólio do saber sobre a vida e a morte . E se o povo chora o desaparecimento de Sete Quedas , vem o vere-dito tranquilo e irrevogável .
Era necessário . Os técnicos assim o disseram .
É o mesmo acontece na educação , na política agrícola , no planejamento urbano ...
É por isso que eu disse que um técnico de boca aberta é mais perigoso para a democracia que uma urna de boca fechada . Quando as urnas estão de boca fechada tudo fica claro . Não há lugar para equívocos . O arbítrio e a violência se apresentam sem qualquer pudor , no horror de sua nudez , obs-cenos ... E todos ficam sabendo que mundo é este em que estão vivendo .Mas a coisa é muito dife-rente quando os técnicos abrem as suas bocas . É aí que começam equívocos . Tudo se recobre com uma tranquilizadora aura de saber e isenção , o que faz com que todos digam aliviados .
Puxa , como é bom saber que as decisões estão sendo tomadas por quem tem competência .A gente até pode dormir melhor .
As urnas de boca fechada são honestas .Não há formas de não se entender o que elas dizem .Mas a voz dos técnicos embaralha tudo e as pessoas se confundem .Chegam mesmo a imaginar que o ideal platônico do rei - filósofo está finalmente se realizando . Platão sonhava com um dia em que o poder se reconciliaria com o saber e pensava que, quando isto ocorresse , o mundo ficaria justo e as pes-soas encontrariam a felicidade . Um poder sábio tem que ser um poder bom ... Esta é a razão por que todos se descontraem quando são informados que o mundo está nas mãos de especialistas . Quem sabe não erram .
Mas o problema real começa nas coisas que não são ditas .Vejam o que ocorrer quando nos informam dedicadamente que a questão é de ordem puramente técnica . Sorrimos , fulminados pelo caráter ir-revogável e final do que nos foi dito , enfiamos a viola no saco ,damos -meia - volta ,calamos a boca e nos esquecemos do assunto . Quando os técnicos têm a última palavra , aqueles que não são téc-nicos não tem palavra alguma . Daí minha convicção : técnico de boca aberta faz mais mal à de-mocracia que urna de boca fechada .Mas quando nos dizem que o assunto deve ser decidido tecni-camente aceitamos , sem maiores esperneios , a necessidade do nosso silêncio .Voluntariamente mu-damos de assunto . Afinal de contas , falta - nos a competência dos especialistas . Acreditamos que a eles pertence o monopólio do saber . E , claro , tratamos de fechar a porta . Ficamos quietinhos , as-sistindo ritmicamente com cabeças pinoquiais .
Por outro lado , ninguém negará que aqueles que detêm o monopólio do saber devem deter tam-bém o monopólio do poder . Esta conclusão é resultado de uma lógica férrea. Seria absurdo admitir o contrário : que os que sabem fiquem sem o poder enquanto os que não sabem fiquem sem o poder enquanto os que não sabem passam a manipulá - lo . Se há técnicos que sabem por que dar o poder a um povo que não sabe ? De fato , uma vez admitido que um grupo , definido como técnico , detém o monopólio do saber, define --se naturalmente a configuração do jogo político ; o poder a quem sabe ... Em outras palavras : existe sempre um autoritarismo disfarçado dentro da arrogância do poder .
Assim , na medida em que se expande o mundo dos técnicos e se definem as áreas controladas por usa competência , encolhe o poder do povo e cresce o seu silêncio e sua impotência . É inútil que as urnas se mantenham com bocas escancaradas : o povo perdeu o poder por lhe ter sido roubado o saber . E quem se entrega ao saber do outro acaba por ficar ao sabor do outro . E ficar ao seu sabor é o mesmo que estar dentro de sua boca , pronto a ser engolido .
Fonte - Livro ESTÓRIAS DE QUEM GOSTA DE ENSINAR - RUBEM ALVES - CORTEZ EDITORA - 17 : edição -São Paulo