Elciene Azevedo realizou um movimento algo distinto. Centrou–se num “mito“, numa figura
quase épica, legendária na
crônica e mesmo na historiografia dedicada ao período: um negro que, antes da Abolição, havia se transformado em personalidade, em “notável cidadão“ , em unanimidade por toda admirada. Em “Orfeu de Carapinha“, a historiadora procura explorar as
tensões entre o homem e o mito para
entender a dinâmica da época. Elciene
não se satisfaz com a exaltação costumeira da figura de Luiz Gama, o negro abolicionista e republicano que enfrentou “seu destino de escravo revertendo–o em
luta contra a escravidão“. Abre-se para a busca das "dimensões ambíguas
e por vezes contraditórias de sua atuação“, procurando explorar ao máximo o fato mesmo de um negro ter penetrado
com êxito ( e de modo contestador )
aquele mundo branco e senhorial.
Luiz Gama se presta como poucos a essa operação.
Filho de um fidalgo português com uma quitandeira africana, nasceu como homem livre na cidade de
Salvador, em 1830. Aos dez anos, foi vendido como escravo pelo próprio pai e enviado a São Paulo, onde conseguiu simpatia e proteção de
alguns poderosos. Alfabetizou–se, tornou–se
funcionário público , vinculou–se
ao republicanismo paulista,
arriscou–se como poeta satírico e, acima de tudo, adquiriu na prática todo o conhecimento jurídico
necessário para advogar “gratuitamente
em favor de todas as causas de liberdade“, particularmente dos escravos.
Deixou de ser “um pobre negro esfarrapado e descalço“ para se tornar um “doutor“, infiltrando–se pelas brechas do
sistema. Mostrando surpreendente
habilidade para estabelecer relações com
os mais diversos setores da sociedade paulistana, irá se revelar um causídico incansável e
vitorioso.
A forma “passiva“, isto é, sem rupturas fortes e sem maior
mobilização popular, adquirida pela crise da monarquia, se
viabilizou e deu sentido à trajetória de Luiz Gama, complicou os sonhos “ americanistas “ de Rebouças e as ideias reformadoras de
Nabuco. Ambos tiveram de aceitar as
convenções imperiais, fato que
significará uma derrota para Rebouças,
que não se dava com a política, mas
será visto por Nabuco como a possibilidade mesma de uma vitória, ensejando sua conhecida opção pelo
abolicionismo pragmático.
De um modo ou de outro, esses fascinantes intelectuais do século 19 anteciparam muitos dilemas
nacionais e expuseram a céu aberto vários dos eixos com os quais construir, nas específicas condições dos trópicos de passado colonial, um país moderno, forte na economia, socialmente
justo e democrático. São, por isso
atualíssimos.
Fonte - Jornal de Resenhas
Especial - 14/08/1999 - pág 7
Marco Aurélio Nogueira
é professor de Política da Universidade
Estadual Paulista (UNESP)
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