terça-feira, 19 de setembro de 2017

Entendendo o Folclore e a Cultura Popular





A palavra folclore provém do neologismo inglês folk-lore  ( saber do povo  ) cunhado por William John Thoms, em 1846, para denominar um campo de estudos até então identificado como “antiguidades populares“ ou “literatura popular
Nesse sentido amplo de “saber do povo“, a ideia do folclore designa muito simplesmente as formas de conhecimento expressas nas criações culturais dos diversos grupos de uma sociedade. Difícil, portanto, dizer onde começa e onde termina o folclore, e muita tinta já correu na busca de definir os limites de uma ideia tão  extensa. É o frevo, o chorinho, o xote, o baião, a embolada, mas será também o samba, o funk, o rock? É o Natal, a Páscoa, O Divino, o Bumba-meu-boi, mas será também o desfile das escolas de samba e o festival dos Bumbás de Parintins? É o artesanato em barro, madeira, trançado, mas será também a arte individualizada de Louco, o artista baiano Boaventura da Silva Filho (1932 – 1992) ou de G.T.O, o artista mineiro Geraldo Teles de Oliveira  (1913 -1990 ).
A verdade é que, como sempre ocorre, a tentativa de definição dessa área de conhecimento pela postulação de uma natureza inerente a um objeto  , no caso “ O  FOLCLORE  , não leva a lugar nenhum exceto a uma infindável discussão acerca de suas fronteiras  ( isso sim, mas aquilo não; isso talvez, aquilo nunca, ou quem sabe algum dia se observadas determinadas condições) que insistem em se desfazer assim constituídas. A discussão interessante situa-se num outro plano.
É preciso compreender o folclore e a cultura popular não como fatos prontos, que existem na realidade do mundo, mas como um campo de conhecimentos e uma tradição de estudos. Isso quer dizer que essas noções não estão dadas na natureza das coisas. Elas são construídas historicamente, dentro de um processo civilizatório, de acordo com diferentes paradigmas conceituais  e, portanto, seu significado varia ao longo do tempo.
Para se ter uma ideia dessa variação do que em cada época foi considerado como “ folclore“, basta lembrar que aqui no Brasil, no começo do século XX, os estudos de folclore e da cultura popular incidiam basicamente sobre a poesia chamada literatura oral. Mais tarde veio o interesse pela música, e mais tarde ainda, lá para meados do século, o campo se ampliou com a abordagem dos folguedos populares. Nos dias de hoje, a tendência é uma ampliação ainda maior, ou melhor, um deslocamento do foco do interesse, por conta de uma visão antropológica e não tipificadora de cultura, para a qual importam mais os significados que as coisas têm para as pessoas que as vivenciam do que a construção de uma classificação de suas características, geralmente baseada em critérios externos e estanques.
As noções de folclore e de cultura popular, e com elas os fatos culturais que designam, são produtos históricos. Resultam de um longo processo, que atravessa a Idade Moderna ocidental, de afastamento das elites europeias de um universo cultural amplo do qual até então também participavam. O discurso sobre a cultura popular ganhou seus contornos atuais no momento em que se reconheceu a existência de uma distância entre o saber das elites e o saber do  "povo“. O propiciador dessa novidade foi o Romantismo, poderosa corrente de pensamento que se desenvolveu a partir da Europa na segunda metade do século XVIII. Valorizando a diferença e a particularidade, o Romantismo associou-se aos movimentos nacionalistas europeus em oposição ao ideal de uma a razão intelectual universal valorizado pelo Iluminismo.
Na visão romântica, o povo seria o elemento primitivo  , comunitário e autêntico, encontrado, sobretudo, no mundo rural. O folclore e a cultura popular abrigariam nostalgicamente a totalidade integrada da vida com o mundo, rompida no mundo moderno. Nessa perspectiva, folclore / cultura popular e cultura de elite opõem-se, ainda que de modo complementar. A questão pode tornar-se ainda mais complexa se introduzirmos nesse quadro de reflexão o grande demônio corruptor geralmente denominado cultura de massa, com relação ao qual ambos os níveis de cultura popular ou de elite – exibiriam uma aura de relativa pureza. Com essa observação podemos também imediatamente perceber como toda essa discussão está perpassada por valores morais geralmente pré-concebidos.
Na atualidade, o modelo interpretativo  “de duas camadas“  ( cultura-popular /folclore versus cultura de elite) está unanimemente superado, e mesmo estudiosos e pesquisadores que se veem filiados à tradição romântica, são unânimes em afirmar que tanto as culturas do “povo “ e as culturas das elites são variadas, como a fronteira entre elas é imprecisa e permeável. Por isso mesmo a atenção analítica deve se concentrar  não na oposição mas na interação existente entre níveis e circuitos culturais distintos. Mikhail Baktin, com seu livro  A Cultura Popular na Idade Média ( São Paulo: Ed. Hucitec, 1987), belo estudo sobre a obra de François Rabelais escrito em 1920, é o inspirador dessa mudança de ênfase, que efetua considerável transformação na visão conceitual do popular.
Nessa perspectiva analítica de forte apelo antropológico, é pouco rentável dividir a cultura em “ popular “  , “ de elite “  , “ de massas “  etc ... Trata-se antes, como queria o antropólogo Marcel Mauss, no “ Ensaio sobre a dádiva “ escrito em 1923, de perceber os fatos da cultura como processos sociais totais, ou seja, processos que abarcam em sua realização diferentes aspectos da realidade ( econômicos, políticos, jurídicos, morais estéticos, religiosos entre outro ) . Trata-se procurar compreender como esses diversos aspectos e níveis diferenciados de cultura se articulam em processos sociais concretos de forma muitas vezes surpreendentemente. Que o digam, por exemplo, os bailes Funk, e os desfiles das grandes escolas de samba.
 
A trajetória dos estudos de folclore no Brasil acompanha esse movimento mais amplo. Entre seus primeiros pioneiros estão autores como Sílvio Romero  ( 1851- 1945 ), Amadeu Amaral (1875-1929) e Mário de Andrade (1893-1945)  entre outros. Sílvio Romero celebrizou-se pelas coletas empreendidas na área da literatura oral e pelo desejo   , de origem positivista, de uma visão mais científica e racional da vida popular. Amadeu Amaral enfatizava a necessidade de uma coleta cuidadosa das tradições populares, e empenhava-se pelo desenvolvimento de uma atuação política em prol do folclore, visto como depositário da essência do “ ser nacional . Mário de Andrade procurou conhecer e compreender o folclore em estreito diálogo com as ciências humanas e sociais, então nascentes no país. Para ele, o folclore, expressão da nossa brasilidade, ocupava um lugar decisivo na formulação de um ideal de cultura nacional.
A década de 1950 transformou o patamar em que até então se encontravam esses estudiosos. Ela marcou o início de uma ampla movimentação em torno do assunto reunindo intelectuais como Cecília Meireles, Câmara Cascudo, Gilberto Freire, Artur Ramos, Manuel Diegues Júnior, Edison  Carneiro.
Institucionalmente, essa movimentação foi articula pela Comissão Nacional do Folclore, do Ministério do Exterior e vinculada à UNESCO ( organismo da Organização das Nações Unidas  ). A Comissão era liderada por Renato Almeida, diplomata e estudioso da música popular. No pós-guerra, o folclore passou a ser visto como favor de compreensão entre os povos, incentivando o respeito das diferenças e permitindo a construção de identidades diferenciadas entre nações que partilham de um mesmo contexto internacional. O Brasil de então orgulhava-se de ser o primeiro país a atender à recomendação de criação de uma comissão para tratar do assunto. O conjunto das iniciativas desenvolvidas era designado pelo nome de Movimento Folclórico. A Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro  ( CDFB ), criada em 1958 no então Ministério da Educação e Cultura, foi o apogeu dessa movimentação
A Campanha era um organismo federal destinado a “ defender o patrimônio folclórico do Brasil e a proteger as artes populares  ". Ela trazia uma proposta de atuação urgente: no folclore, acreditavam os folcloristas de então, se encontravam os elementos culturais autênticos da nação, porém o avanço da industrialização e a modernização da sociedade representavam uma séria ameaça. Por essa razão, a cultura folclórica devia ser  intensamente divulgada e preservada. A Campanha fomentou pesquisas em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, museológicos e bibliográficos. Agregou também intelectuais que participaram ativamente de debates conceituais, em diálogo com as ciências sociais que prosseguiam sua institucionalização no mesmo período. Muito embora nunca se tenha chegado a um acordo sobre a definição do que era ou não “ folclórico , ainda hoje  tendemos a associar a ideia mais rotineira de uma “ folclore brasileiro “ a esses eventos e manifestações registrados e apoiados de algum modo pela Campanha.
De lá pra cá, o país transformou-se econômica, política e culturalmente, e mudaram também os ideais de conhecimento. Os processos de modernização e transformação se aprofundaram, a mídia entrou decisivamente no cotidiano das populações e, ao contrário do que supunham alguns folcloristas, o folclore não acabou. Como já diziam outros folcloristas, o folclore nasce e cresce também nas pequenas cidades e grandes centros: é dinâmico, transforma-se o tempo todo  , incorporando novos elementos.
O campo dos estudos de folclore transformou-se também, acompanhando a evolução do conhecimento nas ciências humanas e sociais. A noção de cultura não é mais entendida como um conjunto aleatório de comportamentos  , mas sim como sistemas de significados permanentemente atribuídos pelos homens e mulheres ao mundo em que vivem. Uma peça de cerâmica é mais do que o material de que é feita, ou a técnica com que é trabalhada. É um elo de ligação entre homens e mulheres. Uma festa é mais do que sua data, suas danças, seus trajes e suas comidas típicas. Sua materialidade veicula visões do mundo, integra um conjunto tenso e dinâmico de relações sociais. Não há também fronteiras rígidas entre os diferentes níveis de cultura: cultura popular  , cultura erudita e cultura de massas comunicam-se permanentemente em todas as direções. O compositor erudito Heitor Villa-Lobos re-elaborou musicalmente cantigas de ninar tradicionais. Muito frequentemente, os enredos dos desfiles carnavalescos das escolas de samba elaboram, numa outra linguagem, temas eruditos; e a composição de sambas-enredo abarca tanto aspectos tradicionais como mercadológicos. Na condição de fatos sociais plenos, os fatos abrangidos pelas noções de folclore e a cultura popular indicam vivas dimensões culturais e revelam um fértil campo de estudo e investigação interdisciplinar

Fonte: Museu de Folclore Édison Carneiro
por Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Ver o Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro de Lélia Coelho Frota
Para aprofundamento ver Projeto e Missão: O Movimento Folclórico Brasileiro de Luis Rodolfo Vilhena

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