A INESQUECÍVEL
Biografia de Sérgio Cabral é relançada 20 anos após a morte da cantora, considerada a maior de todos os tempos.
A relação de amizade entre a cantora Elisete Cardoso e o pesquisador musical Sérgio Cabral, que viria a ser seu biógrafo, era de tanto carinho que até hoje, passados 20 anos de sua morte, Cabral se emociona ao reler as páginas que escreveu. Tendo como mote a data redonda – a cantora morreu no dia 7 de maio de 1990 , aos 69 anos, de câncer - Elisete Cardoso, Uma Vida ( Editora Lazuli ) foi relançado, com pequenas revisões e mais fotografias da “mãe de todas as cantoras brasileiras“, como escreveu Chico Buarque na contracapa do último LP que gravou.
“O relançamento é uma maneira de lembrarmos Elisete“, diz Sérgio, que escreveu o livro era 1994, depois dois anos de pesquisa. “A tendência é ela ficar na lembrança só dos interessados em música mesmo. Essa é a sina dos artistas. Hoje, se eu for falar ao público sobre MPB, dependendo da idade da plateia, tenho que explicar quem é ela“. Ele optou pela grafia com “s “ e “te “ porque esta respeita a língua portuguesa ( o registro foi como Elizette, mas ela ficou conhecida como Elizeth ).
O livro descreve não só Divina, aquela que foi considerada a maior cantora do Brasil de todos os tempos, precursora da bossa nova, artista prolífica, que gravou mais de 40 LPs em pouco mais de 50 anos de carreira. Fala da figura discreta, doce, maternal, carinhosa, queridíssima pelos colegas. A mulher que disse certa vez: “Não quero ser melhor nem pior . Quero ser apenas uma cantora brasileira . “
Para coletar informações, além de contar com a própria experiência, de anos de convivência, Cabral percorreu o Brasil procurando amigos que ela deixou espalhados .Gente que ela conheceu nas centenas de shows que fez, e com quem desenvolveu relações próximas. Ele ouviu também músicos que trabalharam com ela, Maurício Carrilho, Henrique Cazes e Gilson Peranzzetta. Conversou com amigos-irmãos, como Hermínio Bello de Carvalho, que cedeu fotos de seu acervo.
Do acervo pessoal de Cabral, jornalista que escreve sobre MPB desde os anos 50, e também do Elisete, doado ao Museu da Imagem e Som, saiu muito material.
Com Elis a relação era conturbada, de rivalidade, conta Cabral, mais por conta do temperamento da Pimentinha, igualmente saudada como “ a maior de todas “ . O livro conta que certa vez; anos depois da morte de Elis, Elisete foi visitar seu túmulo. Orou e cantou por cerca de uma hora, e ao sair foi abordada por um homem com um pedido de autógrafo da “maior cantora do Brasil“. Ela sorriu e respondeu, apontando para o túmulo: “Muito obrigada , mas o senhor está enganado . A maior cantora do Brasil está ali “.
Está lá também a descrição do câncer no estômago. Sentindo-se mal havia muito tempo, desconfiava que tinha uma úlcera. O tumor foi descoberto durante uma temporada de 40 dias no Japão, que incluía 15 apresentações. Mesmo depois de diagnosticada por especialistas, que aconselharam o cancelamento da turnê, Elisete cumpriu toda a agenda, ainda que, àquela altura, só se alimentasse de frutas. Mostrava-se alegre no palco.
Foi com alegria que ela viveu e trabalhou. Homenageada muitas vezes em vida, hoje, passados 20 anos sem ela, Elisete segue no imaginário popular e na lembrança dos amigos, diz Nana Caymmi. “Os fãs de Elisete estão vivos. Quem toca Pixinguinha, Ary Barroso, Jacob do Bandolim, Tom Jobim, está sempre com Elisete no meio. Não tem como esquecê-la, ele é Rebecca, a mulher inesquecível . “
Nana lembra da solidariedade da amiga da família, mesmo fragilizada, magrinha . “A última lembrança que tenho é da Elisete na clínica São Vicente, vindo me visitar depois do acidente do meu filho ( João Gilberto , de moto ). Ela me ajudou muito, cantou na boate People para arrecadar fundos para eu pagar o CTI.“
O show, em janeiro de 90, foi sua última apresentação. Em abril, a Hermínio, no hospital, na entrevista final. Elisete confidenciaria que sua técnica como cantora era "a vontade de cantar . “
Fonte - Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO pág D 8 Caderno 2
Sexta-feira , 07/05/2010 Música - Memória ( livro ELISETE CARDOSO , UMA VIDA - autor Sérgio Cabral
A RAINHA GINGA NÃO TEM SUCESSORA
Não há cantora que se aproxime da voz negra e rouca de Clementina de Jesus. Mas ele abriu caminhos na música brasileira, como demonstra uma nova biografia
NESTE ANO em que o samba, representado pelo maxixe Pelo Telefone, completa um século de seu lançamento ( o disco saiu em janeiro de 1917 ), outra data engorda a lista de efemérides relacionadas ao gênero: os trinta anos da morte de Clementina de Jesus. A cereja do bolo que marca a data é o livro Quelé , a Voz da Cor : Biografia de Clementina de Jesus, de Felipe de Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz. Tudo começou com um trabalho de conclusão de curso na faculdade, mas depois de seis anos de pesquisa virou uma obra que preenche um vazio na história da música brasileira de influência africana: a trajetória de uma negra pobre, que deu duro na vida e venceu num campo em que não escolheu jogar - foi nele colocada pelo acaso, e não fez feio.
Nascida na cidade fluminense de Valença, em 7 de fevereiro de 1901, neta de escravos, filha de um operário da construção civil com uma parteira vindos de Minas Gerais, Clementina cresceu no Rio de Janeiro, para onde mudou com a família ainda criança. Desde pequena Quelé, apelido que ganhou ainda na cidade natal, teve contato com as mais diversas formas de manifestação musical folclórica, religiosa e popular, das profanas rodas de samba ao ecumênico canto religioso, que ia do ponto de candomblé à ladainha católica, passando por manifestações intermediárias, como o jongo, que têm um pé na terra e outro no mistério. Morou em Jacarepaguá, na Zona Oeste, mudando-se depois para Oswaldo Cruz, terra de sambistas na Zona Norte do Rio. Dançou o pastoril - auto de Natal que lembra a visita dos reis magos ao menino Jesus - e o organizou procissões.
Conviveu com Heitor dos Prazeres, Donga, João da Baiana e Pixinguinha. Testemunhou a criação da Portela e frequentou rodas de samba nos quintais do subúrbio, Cidade Nova, Saúde, Gamboa e Praça Onze, a chamada Pequena África, ponto de encontro de sambistas e capoeiras. Conheceu a famosa baiana Tia Ciata, cuja casa era frequentada por pioneiros do batuque urbano carioca. Mãe solteira aos 20 anos, morou também no Morro da Mangueira, levada pelo segundo marido, Albino Pé Grande, com quem se casou em 1950. Integrou-se à verde e rosa, na qual desfilou na ala das baianas e na velha-guarda.
Em 1964, Clementina trabalhava como empregada doméstica no Grajaú e cantava nas horas vagas, quando , aos 63 anos, foi "achada " pelo poeta Hermínio Bello de Carvalho. Pelas mãos de Hermínio, exibiu-se como atração no famoso ZiCartola. Num desfio maior, Hermínio a apresentou acompanhada pelas cordas de César Faria, pai de Paulinho da Viola, no recital O menestrel, no Teatro Jovem, na Praia de Botafogo. Clementina bebeu uma garrafa de vermute para tomar coragem, entrou no palco e o sucesso foi imediato. Saiu aplaudidíssima. No ano seguinte, integrou o elenco musical Rosa de Ouro, ao lado de cobras criadas como Elton Medeiros, Aracy Cortes, Paulinho de Viola e Nelson Sargento, espetáculo que resultou dois álbuns. Aquele vozeirão indomável contrastava com a refinada delicadeza de Aracy, num contraponto que muito bem representa a riqueza da nossa música. Em pouco tempo foi escalada para representar o Brasil no Festival Mundial de Arte Negra, no Senegal, e num show em Cannes, na França. Em 1968, gravou com os mestres Pinxinguinha e João da Baiana o disco Gente da Antiga, com composições dos dois parceiros e velhos temas folclóricos que aprendera na roça. Nas décadas seguintes, lançou cinco álbuns-solo e participou de mais produções coletivas, sempre recuperando com sua voz de terreiro o canto ancestral de sua gente, ao qual mesclava novas composições de autores modernos. É antológica sua versão par Incompatibilidade de Gênios, de João Bosco e Aldir Blanc.
Voz cavernosa, grave e potente, quando entrava no palco, toda de branco, pele muito negra, Quelé parecia uma entidade flutuando em direção ao microfone, como ilustra a capa do LP Marinheiro Só ( 1973 ). Chamaram-na de Rainha Ginga, a valente angolana que enfrentou os portugueses no século XVI, agora renascida nos campos do café Brasil. "Clementina era uma negra banto . Aliás , o canto dela era o canto de uma negra banto", diz em depoimento no livro o compositor Elton Medeiros. Em 2000, antecipando-se ao centenário de seu nascimento, a EMI editou, com patrocínio da Petrobras, uma caixa com nove de seus álbuns.
A importância de Clementina foi reconhecida em 1983 pelo então vice-governador e secretário da Cultura fluminense, o antropólogo Darcy Ribeiro, que reuniu um time de primeira da música popular para homenageá-la no teatro Municipal, uma noite de gala para a qual alguns torceram o nariz. Para Darcy, Clementina era "a voz dos milhões de negros desfeitos no fazimento do Brasil " .
Quando Quelé surgiu nos palcos, o Brasil vinha da era dos vozeirões. Carlos Galhardo, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Angela Maria e Dalva de Oliveira ainda ocupavam as ondas do rádio, ofuscados pela bossa nova. Clementina era um bicho estranho aos dois universos. A partir dela, gravadoras, artistas e público passaram a receber com maior tolerância as vozes fora da curva, permitindo que compositores se arriscassem como intérpretes de suas canções. Clementina abriu caminho para que gente como os compositores Synval Silva, Cartola e Nelson Cavaquinho pudesse botar voz nos próprios sambas. A cantora morreu em 19 de julho de 1987, de derrame aos 86 anos. Ela foi pioneira, graças a visão de Hermínio Bello de Carvalho, um grande descobridor e incentivador de talentos de todos os matizes. Seu legado é significativo no contexto da contribuição dos negros para a música popular brasileira. A Rainha Ginga não deixou sucessora, mas sua saga, sociologia à parte, está bem contada neste livro que chega agora às livrarias.
Fonte - Revista BIBLIOTECA NACIONAL págs 92 e 93
22 de Fevereiro de 2017 - JULIO CESAR DE BARROS
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