Quando “Disparada“ apareceu na música popular brasileira, você não imagina o barulho que causou. A bossa-nova já havia esgotado o filão mulher-barquinho-areia, tendo como carro-chefe a TV Record, ganhara espaço uma MPB paulista pesadamente jazzificada, que era para a bossa nova o que o rococó foi para o barroco.
A reação ao uso abusivo de acordes dissonantes do samba-jaz paulista surgiu de várias frentes. Da própria bossa nova apareceu uma dissidência dita nacionalista, similar à reação da música erudita brasileira contra o serialismo em voga, tendo na linha frente Baden Powell , Carlos Lyra e Sérgio Ricardo. Mas foi apenas o rito de passagem para a jovem e brilhante geração que estava a caminho.
Chico Buarque ressuscitou as linhas de sambas clássicos de Ismael Silva. Sidnei Miller foi buscar nas cantigas de roda a linha com que bordava seus encantos; e Edu Lobo em Villa Lobos e Camargo Guarnieri a linha com que bordava suas cirandas e ponteios. Os baianos foram beber em Caymmi , Luiz Gonzaga, mas , especialmente , em Jackson do Pandeiro. E havia Geraldo Vandré, do proporcionalmente mais musical Estado brasileiro ,a Paraíba .
Talvez a rapaziada de hoje não se dê conta de sua importância e julgue Vandré apenas um compositor estranho, cantado nas missas da Comunidade Eclesial de Base ou nos encontros nostálgicos do velho “Partidão“.
Na época , foi um murro no queixo.
Vandré não era músico tão completo quanto Edu Lobo, outro que, como ele, trilhava as fronteiras do folclore. Utilizava o belo salário de fiscal da SUNAB para financiar o Quarteto Novo, que foi seu conjunto exclusivo por algum tempo. Veja só: uma pessoa física bancando um conjunto que tinha alguns dos futuros maiores músicos do planeta – o percussionista Airto Moreira , o multi-instrumentista Hermeto Pascoal e os violonistas Heraldo do Monte e Théo de Barros . E deixava todos loucos, com seu temperamento terrível.
Tinha a capacidade rara de, mesmo sendo letrista na maioria de suas parcerias, injetar no parceiro SEU estilo de música . Com Vandré, cada parceiro tinha seu momento único de Vandré, que nunca mais se repetiria.
Quando estourou sua primeira composição conhecida, uma marcha-rancho - “Olha que a vida é tão linda / e se perde em tristezas assim / segue seu rancho cantando / a sua esperança sem fim “ – parceria com Fernando Lona (músico da noite paulista, que morreu logo depois, de acidente de automóvel), imediatamente nosso grupo serenata incorporou a seu repertório.
Naqueles anos, aliás, houve um conjunto mágico de marchas rancho que nos acompanharam vida afora . Era a de Vandré , “ a Marcha da Quarta-feira de Cinzas “ , de Lira e Vinícius, e o “ Rancho das Flores “ , de Ari Barroso e Vinícius . Só alguns anos depois , o “ Rancho da Goiabada “ , de João Bosco e Aldir Blanc, mereceria figurar em tão augusta companhia .
Mas eu comecei falando de “ Disparada “ e foi ali que o circo pegou fogo. Foi no mais concorrido festival de música popular brasileira da história. Era o primeiro da era plena da televisão, que saíra dos grandes centros e começara a se espalhar por todo o país.
Chico Buarque já era namoradinho do Brasil e comparecia com “a Banda “ , música simples, mas que nasceu clássica. Excursionando pelo Nordeste com o conjunto da Rhodia, Vandré inscreveu “ Disparada “ , em parceria com Théo Barros .
Dizia-se música caipira paulista, fruto de pesquisas folclóricas. Que mané música caipira paulista, que nada! Era um autêntico Vandré e pronto. Tinha elementos de viola, na introdução no ritmo incorporava elementos nordestinos, mas, também, andinos. E havia a interpretação magistral de Jair Rodrigues e do Trio Maraiá. Jair era considerado injustamente intérprete menor, por sua espontaneidade que contrastava com os malabaristas vocais daquele fim de período. Mas quem ouviu “Disparada “ com ele não há de esquecer jamais.
Depois houve a politização da música de Vandré, que acabou por vitimá-lo. De longe, Chico e Vandré foram as duas maiores influências para a juventude que começava a se iniciar nas artes da composição.
O Brasil inteiro compunha , no embalo dos festivais. Eu mesmo, no festival de São João da Boa Vista de 1967 , inscrevi “ Serpentina “ , música que denunciava o uso do dispositivo intra-uterino para esterilizar mulheres do Nordeste , veja só. Cada interpretação resultava em duas cordas arrebentadas, de tanto que a gente martelava o violão para arrancar “ arrepios “ da plateia. E fiquei indignadíssimo quando “ Serpentina “ perdeu para “ Penúltima “ , música no estilo Chico . Registrei meu protesto em público , para espanto dos jurados, já que a vencedora era composição de minha autoria também.
Nesse clima louco, Vandré incorporou seu papel de condutor, de povos, como um Antônio Conselheiro da era eletrônica . Teve seu momento épico com “ Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores “, em que colocou milhares de pessoas no Maracanãzinho, cantando contra o regime militar, para, pouco depois, ser sepultado, primeiro pela ditadura, depois pelos novos tempos. Assim como outros grandes, o tronco Vandré resultou em vários galhos relevantes, especialmente na música regionalista acima da Bahia, naqueles Estados que circundam Pernambuco. Veio o Quinteto Violado , Geraldo Azevedo , Xangai , Vital Farias – melodista extraordinário (por onde andará?). Naqueles teatros velhos do Recife, toda semana há apresentações com cantores da região, a maioria filhos diretos de Vandré.
Mas, vendo-o agora, solitário e desconexo, a música que me vem à memória é “ Pequeno Concerto que virou Canção “, de um Vandré lírico, triste como a própria solidão na qual se meteu, e de onde provavelmente jamais sairá .
Fonte - Jornal - FOLHA DE SÃO APULO
LUÍS NASSIF
POEMA MAIOR
Mais além que de passagem
Nós pés de uma cordilheira
]Deixei meu riso guardado
Como se guarda a parreira
E alguém que eu vi sem roupagem
De qualquer jeito e maneira
Guardou meu sonhar contigo
Sem modos de brincadeira
Seu canto , alegre , sorriso
Pranto meu , mais que precisos
Abertos aos indecisos
Sobre o pão numa lareira
E a rosa que cultivava
Nas pedras da correnteza
A mim quando se me dava
Nas pedras da correnteza ,
Nunca se fez de rogada ;
Rolava mais que uma esteira
Seguro do seu feitio
No alto da bagaceira .
Um dia morte matreira
Promovida na carreira
De quem não tinha no verbo
O amor da terra estrangeira
Tentou passar-se por cima
Dos olhos de uma trincheira
Pensando que de onde vinha
Se sustentava madeira
Pra quem não tinha querido
Nem segunda e nem primeira.
Mal convencida do amor
Da rosa numa roseira
Ferida por sem valor
De sem tocá-la querê-la
A morte , tal, prometida
Chegou-se de mala esgueira .
Passou por cima da relva
Debaixo de uma amoreira
E anunciou-se o mais forte
Sobre todos numa feira .
Y yo que me puse pronto
Entre tantos de la feria
Me encontrei que muerto estaba
En eso de essa carreira
Me dejé com un sentido
Desesperado em la feria ,
Se me perdió la sonrisa
Se me perdió la tristeza .
Se puso piedra mi pecho ,
Se puso agua em mais venas ,
Se puso guardias de espaldas
Donde no habitan tetas .
Se puso mi corazón
En un cerro de sinson ,
De sillas puras cadenas,
En ellas no se seniaban
Ni gallos de la pradera ,
Ni retones de los rios ,
Ni la sangre enredadera .
Meus olhos não viram nada
De nada que então perdera .
Minhas palavras caladas
Não naquela fronteira .
Minha morte foi marcada ,
Minha vida foi parada ,
Morri naquela fronteira .
Até que foram buscar-me
Do que um dia havia escrito
Nos olhos de uma bandeira.
POR GERALDO VANDRÉ
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