terça-feira, 3 de março de 2020

O mundo encantado de um palhaço



Criador  de  uma  oficina  que é sucesso  entre anônimos  e  famoso, ele fala  sobre a  arte  da  palhaçaria  e  como  ela  pode  ajudar  mesmo  quem  nunca  pensou  em  subir  num  picadeiro. O  artista  conta  ainda  como encontrou, dez  anos  atrás,  sua  única  filha.

Marcio Libar tem o mesmo par de  sapatos há 20 anos.  Ao abrir a maleta de seu palhaço Cuti Cuti , a primeira coisa que ele tira de dentro são os calçados de couro com bico grande e arredondado, feitos por um velho sapateiro da Praça da Bandeira . Há pouco tempo , ele reencontrou o homem , chamado Ernesto , e com ele consertou parte do bico. O solado original, duro feito pedra e cheio de desníveis, foi mantido em sua imperfeição.

- Repare como é torto . Quando eu o calço , já entro no desequilíbrio , já sei onde escorregar , como cair. Ele me leva ao mundo encantado - conta, aos 48 anos , com a voz rouca e os dreads sobre os ombros .

Libar gosta de coisas tortas e imperfeitas, de pessoas que escorregam e caem . Como palhaço , aprendeu a não levar a vida tão a sério , "  já que ninguém sairá vivo dela . " Afirma ser medíocre e preguiçoso a maior parte do tempo .  Não dirige ,  não  fala inglês e pena para enfiar um prego na parede. Ao admitir fraquezas - teria saído com mais delicadeza da vida das pessoas, teria usado drogas por menos tempo -, ele encontra amor dentro de si mas também sabe que a confissão deixa a vontade as pessoas ao seu redor . Faz parte do seu show .

No palco de Libar , o palhaço Cuti  Cuti cedeu espaço a uma figura um tanto temível : o Messiê  Loyal . É com esse personagem , de fraque vermelho e cartola , um antigo  monsieur  dono  de circo , que Libar vem formando uma discreta legião de seguidores. São pessoas que participam do jogoficina criado por ele há três anos . Trata-se de um reality  game  em que todos são aprendizes de palhaço- e o objetivo é ser aceito ao Gran  Cirque  du Messiê  Loyal .

Anônimos e famosos se misturam a cada workshop , sempre com 13 pessoas . Taís Araújo, José Mayer , Stenio Garcia ,Leandra Leal ,Luana Piovani e Reinaldo Gianecchini são alguns dos globais que já participaram - e entraram para  Liga Extraordinária  dos  Idiotas , versão bem-humorada de uma sociedade secreta que já conta com mais de 800 membros . Eles respeitam os segredos do jogo  e não falam sobre o que acontece no Gran  Cirque

Libar não trata os famosos de modo especial . Em alguns casos , faz questão de fingir que não os conhece durante o trabalho. Ficou olhando para Gianechini , por exemplo , e no segundo dia soltou : " Você poderia ser modelo " . Para José Mayer , escolheu um codinome provocador : Antonio Fagundes. Tony Garrido era Carlinhos Brown . Mas a brincadeira é coisa séria . Muitos participantes derramam rios de lágrimas , especialmente no momento final , quando enfrentam o picadeiro.

- É nessa hora que eu mudo a vida das pessoas. Uso a arte do palhaço em toda a sua potência . Como as regras do jogo são minhas , consigo fazer com que as pessoas tirem as máscaras . O palhaço não representa : ele brinca , joga e aceita quem ele é . E o difícil nesse mundo é ser quem se é . 

ENCONTRO  COM  A  FILHA 

Muitas , o palhaço chora por dentro enquanto , por fora , faz os outros sorrirem . Um episódio do passado atormentou Libar durante anos . Todo dia 23 de maio , ele sabia que sua única filha fazia aniversário.  Fruto de uma relação meteórica, Giuliana cresceu sem saber quem era o pai. Não podia imaginar que ele e sua mãe se conheceram figurantes do  clipe "Eu queria ter uma bomba " , pouco antes de Cazuza  deixar o Barão  Vermelho . Apaixonaram-se  e ela engravidou aos 17 anos . A família quis o aborto , a menina disse não. O patriarca italiano , velho e bravo , chamou Libar para conversar. 

- Estávamos na Praia de Copacabana , em frente à Rua Belford Roxo. Nunca esquecerei  aquelas palavras : " Você não vai assumir sua filha ; você vai é sumir. Minha neta não precisa de um pai negro e pobre ". Chorei muito , me senti uma merda , incapaz de ser pai , de ser qualquer coisa . Só me restava ser palhaço- recorda.

O primeiro abraço de pai e filha veio apenas há dez anos , depois de ele fazer um mapa astral e decidir - com o entusiasmo que os astros lhe deram - procurar a jovem . Ajudado pelo irmão encontrou Giuliana na rede social Orkut . Emocionou-se ao ver suas fotos pela primeira vez : os mesmo olhos de ressaca , o mesmo sorriso , os cabelos de  Bob Marley .

- No primeiro  Dia  dos  Pais  , ele estava em turne na Europa , mas pegou um avião e veio ficar comigo . Depois ,voltou para Lisboa - recorda  Giuliana , de 28 anos , a quem Libar chama de filhote . Hoje ,  ela é o braço direito dele em todos os seus projetos.

FAZENDO  GRAÇA  EM  MÔNACO 

O único professor de interpretação que Libar teve foi Carlos  Wilson , o Damião , figura lendária  do Teatro  O  Tablado . Na primeira aula , no Centro de Artes  Calouste  Gulbenkhian , Damião apresentou-se à sua maneira : " Eu  sou  zonasulzérrimo e meu sotaque é o ipanemês " , disse , para uma plateia atônita . criado na Abolição , Libar não frequentava a  Zona  Sul até então . Estava apenas começando a nascer para o mundo . Anos depois , em 1986 ,  fundou com amigos uma das companhias  teatrais  mais longevas do Rio  - Teatro  de Anônimo , sediada na Fundição  Progresso .

Foi se entregando ao tal mundo encantado , até que a palhaçaria tomou conta de sua vida. Conheceu alguns dos maiores  palhaços  brasileiros  e estudou também com estrelas da palhaçaria  clássica , entre elas  o  italiano  Nani  Colombaioni , representante de uma tradicional família de palhaços e  artistas de  circo .No filme " I Clowns" , de Federico  Fellini , a família  Colombaioni concebeu a cena final , do funeral do palhaço. Libar e o ator  João  Carlos  Artigos aperfeiçoaram com Nani o número  " Um , two, trois " , uma comédia sem fala que foi selecionada para o festival  Internacional  de  Circo  de Monte  Carlo , em 2006. Competindo com  palhaços  do  mundo  inteiro , eles venceram dois dos quatro troféus em disputa : O  Nariz  de  Prata e um prêmio especial do  Cirque  du  Soleil .

- Quando a princesa  Stéphanie  de  Mônaco  subiu ao palco para entregar o troféu  , me lembrei da música  " Olhar 43 " , do RPM - recorda ,   antes de cantarolar  : " Stephanie de  Mônaco  aqui estou , inteiro ao seu dispor  !

Ele se lembrou também da pessoa mais importante de sua vida : o avô , Seu  Boliva  , que ajudou na sua criação após a morte do pai , quando  tinha 6 anos .  Seu Boliva apresentou aos netos o Centro do Rio , o carnaval , o Maracanã . Na Cinelândia , o velho dizia : " Ali  é  o  Teatro  Municipal . Tem ópera , tem balé , as pessoas vêm  ,muito bem vestidas . Ali é a  Biblioteca  Nacional . Você entra com a sua caderneta da escola , pede um livro , se senta e lê à vontade " , lembra Libar , com um voz muito diferente , as palavras saindo devagar . Sua mãe acha que ele se parece cada vez mais com o avô , morto em 1988 . Libar sonha com ele até hoje . 

Fonte  - Jornal  O  GLOBO   - pág 28  -  Encontros  de Domingo  MARCIO  LIBAR 
Domingo , 14.9.2014  - CAIO  BARRETO  BRISO   - RIO 







De  como  a  evolução  do  circo  transformou  o  teatro 

Estudo  registra  a  história  de  Benjamin  de  Oliveira,  o  palhaço negro.

Se o teatro é a arte da representação ou " o local aonde se vai para ver " , o circo  -teatro , por sua vez , não foge muito ao seu legado , na acepção da palavra e na imitação dos seus trejeitos e expressividades , na forma de entretenimento e da teatralidade , na formação do público e no encantamento da platéia . Um e outro fundem-se , na verdade , em função da dramaticidade e da comicidade , sendo o teatro de formação clássica , fundida nas grandes óperas , para uma sociedade de escol , enquanto o circo tem sua origem na população mais humilde , formada na itinerabilidade com que percorria os lugarejos  distantes , as feiras das cidades interioranas ou dos burgos de gentes simples .

Caminhos  controvertidos 

Ao contar a história do circo no Brasil , Ermínia  Silva percorre um dos caminhos mais controvertidos e polêmicos que os fatos e as ações podem lhe oferecer . Juntando elementos da  commedia  dell'arte , ela tece os substratos para estabelecer os paralelos dos espetáculos entre o palco e o picadeiro , datando-se desde o século 18 .  É sem dúvida , uma proposta ousada , de grande fôlego e arrojo , manifestada pela primeira vez como tese de doutoramento em história pela Universidade  Estadual  de  Campinas, agora publicada no livro  Circo-teatro : Benjamin de Oliveira e  a teatralidade circense no Brasil.

Com observância acurada , analisa o papel dos downs  europeus  , sua evolução pelo mundo , como já fizera , em outros tempos , Machado  de  Assis . Mapeia os conflitos artísticos entre uma dramaturgia e outra , e faz menção ao requerimento  irritadiço do consagrado ator  João  Caetano  ao marquês de Olinda , em 1862 , solicitando a proibição dos espetáculos  circenses nos mesmos dias das  récitas  o  teatro nacionalpor ser uma  " diversão  descomprometida e sem caráter  educativo " .

Essas e outras polêmicas vão tomar conta da trajetória do teatro e do circo brasileiros . E como demonstra  Ermínia  Silva ,o circo aproxima-se cada vez mais da  dramaturgia  teatral  , ao  passo que o teatro perde fôlego e a própria  teatralidade , circunscrita a um círculo de público cada vez mais fechado , elitista  e  burguês . Já o circo , no entanto , além de agregar a tecnologias  como a  orquestra de  músicos  à boca de cena ,a abo- lição da figura do ponto , e , mais para o final do século  19 ,  o cinema e o sistema radiofônico ,como o disco  e  o  rádio ,mantém,  ao mesmo tempo ,os ingredientes que lhe marcaram as  origens  e  a sobrevida : as  apresentações  equestres  , a  acrobaciaa ginástica   , a mágica  , o malabarismo , o palhaço de  cara  pintada  de  branco .

Diálogo  com  a história 

Menos  para fugir  das comparações óbvias , das representações  circenses teatralizadas  ou pantomímicas que tanto sucesso fizeram nos  palcos  e  picadeiros, e sim para estabelecer a linha divisória ,a fronteira ,limítrofe entre ,talvez , o picadeiro e o  palco, é que o livro de  Ermínia  Silva se propõe a ser um diálogo com  a história do  circo e um diálogo com a história do teatro  , sendo a autora , como se sabe , descendente de pioneiros  artistas  circenses , a quem haveria razões de sobra para a defesa de um detrimento do ataque de outro . Pelo contrário , é tudo o que ela não faz .

O  palhaço  negro 

De comunhão com a história do  teatro e do  circo-teatro , está a história  do pioneiro 
da teatralidade  circense entre nós . Trata-se do  palhaço ator  , compositor , dramaturgo , produtor  e diretor  Benjamin  de  Oliveira . Em vida era considerado o mais perfeito  artista  de  representação  popular , ao atuar e criar farsas  , peças  burlescas  e  pantomimas, como então chamavam-se as representações desenvolvidas a partir da adaptação  para  o  circo  Spinelli de textos  consagrados  da  dramaturgia ,como  O guarani  , de  Carlos  Gomes  e a  Viúva  Alegre  , de Henri  Meilhac .

O livro traça um dos retratos mais apaixonadamente nítidos sobre a história  do circo a partir da trajetória  de  Benjamin  de  Oliveira , o  palhaço  negro . Mesmo um cético  como  Arthur  de  Azevedo , cronista respeitado  da  Gazeta  de  Notícias  e mentor do Teatro  Municipal  do  Rio , assistia e se tronara  amigo do  grande  artista  circense.  Benjamin  de Oliveira teve uma carreira  inusitada : fugiu com o circo quando criança, pois não suportava ver o pai , um feroz  capitão do mato  , perseguir com crueldade
escravos  fugidos  . No  circo , comeu o pão que o diabo amassou . Sua estréia foi das mais traumáticas : vaias  e  pedradas foram as primeiras oferendas recebidas . Mas , persistente , venceu pelo talento , e , segundo os jornais da época , tronou-se não só  " o  querido  do  povo " , mas uma verdadeira  celebridade .

Arte  menor  ?

Ao expor , em sua pesquisa , a vida e a obra de Benjamin  de Oliveira , Ermínia  Silva utiliza como pano de fundo o  nascimento  do  circo , desde seu surgimento na Europa, passando pelos  Estados  Unidos , e os países da  América  Latina , como Argentina  e o Brasil . No Brasil , pelo que depreende , o circo encontrou  campo  fértil , por  sua tradição  nas  feiras  livres , nos  lugarejos  distantes , bem como na ocupação  de espaços onde a elite  cultural torcia o nariz para comparecer .

Mesmo em cidades como as do  Rio  de  Janeiro , considerada o celeiro da  " melhor cultura  , o circo tornou-se a opção das classes  pobres e mesmo  ricas , ocupando  os espaços  da  nobreza , como o  Teatro  Lírico , e o imperial São  Pedro de  Alcântara.

Guardadas as proporções , é possível dizer que a evolução  do  circo , ao passo  que transformou  plateias , atitudes  e movimentou  a economia , transformou também  o teatro , diga-se de passagem , na crise que o assolava desde os seus primórdios  .

Os críticos da época viam  o  circo ou o  crico-teatro como " arte  menor " , por  ser armado em qualquer lugar e ser aceito por um público variado , de origem suburbana e de camadas  pobres ; enquanto o teatro , que falava a língua  de  Sarah Bernhardte das importantes companhais estrangeiras , preocupava-se em estar sempre à altura dos acontecimentos memoráveis , mas sem apaixonar as grandes multidões .

O trabalho  de  Ermínia  Silva conta histórias  pitorescas ,sobre palcos e  picadeiros. Detalha , como poucos já o fizeram , momentos expressivos da arte de representar  debaixo de lonas  e  tablados . As polêmicas são , naturalmente , inevitáveis .

Entretenimento  barato 

O circo , ainda hoje , como no passado , assume papel preponderante no entretenimento  da  população , principalmente por ser mais barato e de certa forma mais  democrático : não distingue o público ; o agrega . Junto com  o  teatro , são formadores  de belos públicos, com suas diferentes características: representam manifestações  populares, modelos  artísticos e a  grandeza  da  história  cultural de um povo.

Editado pela  novata  Altana , Circo-teatro ... é uma ótima oportunidade para conhecermos a  arte  circense por dentro e por quem entende , de fato , o que ela representa. Segundo a autora , tem sido  a arte  mais  festejada  de  todos  os  tempos , no  Brasil e
no  mundo . A ela tem se associado  artistas  e  intelectuais  de todos os matizes .

Tida como  arte  popular dentro das generalizações comprometidas pela  força do termo, voltada para as " massas  mais  incultas  " da população ( e não sociedade ) ,em contraponto à  alta  cultura , das  artes  dramáticas , o circo  tem  marcado  a  vida  de muitas  gerações . Com certeza pensando nisso é que  Ermínia  Silva  resgatou  a  história  tão  emocionante  para  os  nossos  dias .

Fonte  -  Jornal do Brasil   -  pág  17   - IDÉIAS -ARTES CÊNICAS
Sábado , 5 de abril de 2008    -  Uelinton  Farias  Alves ( escritor  e  jornalista ) 
Livro- Circo-teatro:  Benjamin de Oliveira e a tetralidade circense no Brasil Ermínia Silva . Altana  . 436 páginas 


Enredo do GRES ACADEMIA DO SALGUEIRO - no carnaval 2020.

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