Uma pequena joia se guarda no fecho de “ Travessia marítima com Dom Quixote - Ensaios sobre homem e artistas “ , do escritor alemão Thomas Mann ( Zahar , tradução de Kristina Michachelles e Samuel Tristam ) . Além de romancista genial , Mann ( 1875 – 1955 ) foi , também , um com -plexo pensador .O ensaio sobre a travessia do Atlântico , que se inicia com um elogio da lentidão,ou do ritmo “ andante “ , e depois se embrenha pelo livro de Miguel Cervantes , é comovente . “ O mesmo vale para o que é grande , ou , para dizê-lo com outras palavras : o espaço pede tempo “ . Ele vê alguma coisa de sacrílego “ na tentativa de roubar ao espaço uma de suas dimensões , de privá-lo do tempo naturalmente vinculado a ele . “ Para Thomas Mann , a lentidão é matéria fun- damentada da criação .
Motivos para uma densa e difícil reflexão surgem em “ O artista e o literato “ , ensaio no qual Mann faz uma defesa do homem literário em sua “ pureza abstrata “ , descartando assim - penso um dos elementos cruciais da criação : a imperfeição , não como um defeito , mas como um atributo fundamental do humano.De qualquer forma ,é ainda hoje muito útil a distinção que Mann faz entre o literato e o artista . Enquanto o artista seria “ o homem do efeito e do sucesso “ – correspondendo a um lamentável padrão contemporâneo do êxito rápido - , o literato veria o sucesso “ como quase nada além de ornamento da injustiça “ – o que não deixa de ser também ,é verdade , uma visão parcial e temerária . A contraposição entre artista e literato , contudo , nos ajuda a pensar um dos mais graves problemas da cultura de hoje : a leviandade .
Perigosas são algumas das teses de Thomas Mann a respeito do homoerotismo , expostas em “ O casamento em transição “ , em que faz uma áspera condenação da homosselua-lidade , ao no- madismo e à inconstância “ . Chega a dizer : “ De fato , não existe amor menos fiel , menos comprometido , escapando para todos os lados , se não me engano “ . Em resumo : muitas res - trições a eles podem ser contrapostas ; ainda assim ,os ensaios de Mann – em uma época avessa à lentidão , pede desprezo pelo sucesso imediato , pede a celebração do tempo . Seja qual for a po- sição que tomemos em relação a suas teses , não podemos lhes negar a grandeza e a coragem .
Mas eu dizia que há uma jóia guardada no fecho do livro , refiro-me ao brevíssimo ensaio “ Elogio da transitoriedade “ ( tradução de Samuel Tristan ) , escondido entre as páginas 158 e 161 . Um ensaio absolutamente atual para um tempo em que se valorizam , acima tudo , a rapidez e a per- formance , e ainda – imitando o destino dos vampiros – a juventude eterna . “ Os senhores ficarão surpresos ao ouvir minha resposta à sua pergunta sobre aquilo em que acredito ou que es- timo estar acima de tudo : é a transitoriedade “ , inicia Mann , com o vigor que lhe é caracte- rístico . Não só na época de Mann , mas ainda hoj , na era das cirurgias plásticas , das vitaminas mágicas e da “ moda jovem “ , a transitoriedade é vista com grande desolação .Não , replico eu , ela é a alma do ser ´ , afirma Mann . A transitoriedade produz o tempo , “ e o tempo é , ao me-nos potencialmente , a maior e a mais útil das dádivas “ .
Sem as noções de começo e fim ,sem o desenrolar de uma linha que conduza do passado ao futuro acariciando o presente , não há tempo . “ A atemporalidade é o nada estático “ , ele nos alerta . Lembra Mann que os biólogos estimam a vida orgânica sobre a Terra em cerca de 550 milhões de anos , ele recorda . Ela pode perecer muito antes disso . A vida é apenas um acidente cósmico na vida de um planeta .Perde por isso seu valor ? Responde Mann : “ Ao contrário , penso eu ,a vida ganha enormemente em valor e alma e interesse , torna-se propriamente cativante “ . Entre as ca - cterísticas que distinguem o homem do resto da natureza está - provavelmente a mais preciosa - o que Mann chama de “ Algumas pessoas podem não dar a menor importância a sua passagem , como se fosse algo absolutamente banal . A maioria a abomina ,como uma grave ameaça. Contudo, só o uso ar -criativo do tempo possibilita a existência da arte , lembra -nos Mann . Por isso , é comum tistas ouvirem a perplexa pergunta : “ Mas quando você faz tudo isso ? “ A arte parece não caber no tempo e ,no entanto , não existe sem ele .
Um mundo atemporal seria um mundo sem fertilidade e sem transformação , pois seria um mundo paralisado . Nada mudaria , nada aconteceria - estaríamos enclausurados no inferno da repetição . Só a transitoriedade - só a existência do tempo – traz a possibilidade de criação e de transformação. “ Ao ser humano é dado santificar o tempo , - traz a pos-sibilidade de criação e de transformação . “ Ao ser humano é dado santificar o tempo , ver nele um campo fértil que clama por cultivo cons - tante “ . É o tempo ,mais que tudo , que confere dignidade à existência . Ele é a matéria que o artista tem para moldar sua obra .Ele é o elemento que se oferece à criação e à construção .Sem o tempo , nada somos .
Talvez o tempo não passe de uma noção humana , e por isso restrita e frágil demais . “ A astro - nomia ensinou-nos a considerar a Terra como uma estrela insignificante no gigantesco turbilhão dos cosmos,uma estrelazinha secundária a vagar na periferia da própria Via Láctea “ . Admite a Mann que olhar a Terra e seu Sol como pequenos vultos periféricos é , na perspectiva da ciência , abso- lutamente correto . Apesar disso , ele afirma crer no fundo da alma que “ cabe à Terra uma signi- ficação central na ordem do universo “ .
A fé de Mann na Humanidade não tem limites .Ele vê a nós , h omens ,como pequenos , mas bravos agentes do ser ,a trafegar pelos canais do tempo . Não tem receio algum de dizer : “ Um fracasso pelas mãos do homem equivaleria ao fracasso , a revogação de toda a criação “ . Admite o quanto há de onipotente em seu diagnóstico mas apesar disso nos faz um pedido que não devemos descartar : “ Sendo ou não assim - seria bom que o homem se portasse como se assim fosse “ .
Fonte - Jornal - O GLOBO pág 5
Sábado , 07/06/2014 Prosa JOSÉ CASTELLO