domingo, 27 de agosto de 2023

A crise " de repente " A ideia de " revolução " deixa o século com menos prestígio do que ao iniciá-lo



Até recentemente , foi grande o prestígio da “ revolução “ . A revolução não era só o momento da  grande transformação . Era mais – o  momento da redenção , quando a  sociedade purgava os  pe- pecados do passado e inaugurava uma era de virtudes.Era o recomeço ansiado por uns tanto quanto temido por outros  –  ansiado como em  certos tempos se ansiou  pelo  Messias e  temido como se temeu a  vinda do  Anti cristo .O conceito de “revolução”,em que a velha ordem é extinta em favor  de outra ,foi trazido ao mando pela Revolução Francesa ,no fim do século XVIII .Tal era pretensão dos revolucionários  franceses de estar inaugurando um  novo tempo que fizeram precisamente isso    - inauguraram um novo tempo .Extinguiram o  antigo calendário e começaram um novo .O ano em que proclamaram a República , 1792  passou a ser o ano 1 .

A partir da Comuna de Paris , oitenta anos depois , e da influência do  pensamento marxista , esta - beleceu-se que revolução de verdade era o que mexia com os fundamentos da sociedade .Trocando em miúdos , a que mexia com a propriedade. Vale dizer que  revoluções dignas desse nome , seriam só os socialistas,mas isso não impediu que ,neste século , movimentos de variados ideários ,ou mes- mo de  ideário algum  recorressem ao  prestígio da  palavra   “ revolução “ . No Brasil  ,  sucessivas quarteladas reivindicaram esse rótulo .Não importa .O que interessa aqui é que não só as revoluções socialistas,mas também alguns golpes de Estado mais tacanhos , tiveram em comum a pretensão de revogar o passado  e começar tudo de novo . Por isso mesmo , a “ revolução “ sai  deste século em pior forma do que nele entrou . Seus propósitos soam  hoje como  manifestações de  onipotência .

A ideia de “ revolução “  ,presente na  História dos últimos 200 anos ,confina com outra muito mais antiga –  do indivíduo.Sua história começa na  estrada de Damasco, no século ! Do nosso calendário – o mesmo que a  Revolução Francesa tentou em vão revogar  -  , com o  episódio vivido pelo sol- dado  Saulo , perseguidor de  cristãos . De repente ele é paralisado por uma  luz ofuscante , cai do cavalo e ouve uma voz do céu :  “  Saulo , por  que  me  persegues ?  “ Por algum tempo ele ficará cego , tal a  claridade que o arrebatou . Dá-se assim em  circunstâncias que não poderiam ser mais espetaculares, a  conversão de São Paulo , um dos pilares do cristianismo .

No fundo , as revoluções copiam as conversões .Chegam mesmo a tomar-lhes emprestados certos elementos religiosos certos elementos religiosos ,embora ,tirante as  islâmicas ,não sejam religiosas e frequentement até se revelem anti-, a começar religiosas da francesa .O rito e a retórica são tomados de empréstimo à religião .O rito é purificador , o que se concretiza muitas vezes , para não dizer sem- pre ,com o sangue da violência , e a retórica é a da  " nova aurora " . Além disso , as  revoluções co- piam as religiões na intenção de implantar  um novo código de  conduta moral ao rebanho. A  Revo - lução Francesa deblaterou contra a devassidão do  antigo Regime tanto quanto a  cubana contra os bórdeis dos tempos do ditador Batista . Paris e Havana ,de Sodoma e Gomorra , seriam convertidas em cidades santas .

Nem todas as conversões são  repentinas . Há também as que se  dão lentamente , ao cabo de um processo de pequenas , às vezes imperceptíveis , mutações .As que se parecem com as revoluções  são repentinas . As lentas correspondem aos  processos de transformação social de longa duração .  As conversões repentinas ganham em teatralidade . Quase dezenove séculos depois  São Paulo ,o poeta  francês Paul Claudel , até então católico relaxado, filiado à religião apenas pela inércia da tra-  dição familiar , assistia  a missa na  Catedral de Notre Dame , em Paris , de pé , junto ao  " segundo pilar à entrada do coro , à direita do lado da sacristia " , segundo descreveu , e ouvia o  Magnificat , quando se deu o fenômeno  que marcou sua vida . " E um  instante meu coração  foi  tocado , e eu  acreditei " . 

As  revoluções também ganham em  teatralidade , sobre os processos sociais lentos . Elas oferecem  cenários como a tomada do  Palácio do Inverno , em  São Petesburgo , enquanto os  processos so - ciais  lentos são quase sempre invisíveis . Em compensação perdem , tanto as revoluções quanto as  conversões que se  assemelham a elas ,  em credibilidade e eficãcia . Conversões em que as pessoas são como que fulminadas por um rio , sem aviso ,  assemelham-se a  Milagres . Ambas , as  conver-sões súbitas e as  revoluções ,  pretendem desencadear  intervenções fulminantes sobre o  fluxo do tempo , despencando sobre ele como  guilhotina e cortando-o em duas partes : um  " antes " e um " depois " . Seria  isso  possível ? Em nossa época escolada  , consciente da força das continuidades , reage-se . com  ceticismo . Vivemos  hoje  uma  crise  do  "  de repente " .  

Fonte - Revista  VEJA -  pág 146  - Ensaio

19 de agosto de 1998  - Roberto  Pompeu de  Toledo

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