terça-feira, 19 de novembro de 2024

Gênesis

 



No  princípio a tela estava  vazia .Tintas e pincéis  esparramados em volta . Um caos .Mas no coração do artista a obra  já morava em  forma do desejo .E nos seus olhos brilhou a luz  da  inspiração .E ele deu o  primeiro  toque na  tela .

Ela  encheu - se de  azul .Um  azul profundo que  se  diluía em  dois  tons .Um ,mas suave , na  parte superior .Outro , mais  forte , na  parte inferior . Outro ,mais  forte ,na  parte  inferior . Céus  e  mares . E foi o segundo toque  na  tela .

O  artista , inspirado , continuou sua obra . Em  seu coração  , o  sentimento mais  forte era  de confir-mação . Sim , era a obra  que  morava  em  seus  sonhos  desde  sempre . 

Num  gesto  circular , o  pincel  revolveu  o  azul  profundo  e  foi  aplicado sobre ele toques  de um  marrom  terroso , rústico , primitivo .Quase sem controle , a mão deslizava sobre a  tela , salpicando variados  o tons de verde ,vermelho ,azul ,amarelo num frenesi vital que se  multiplicava  e enchia a  tela  de brilho  e  luz . A  vida  explodia  em  mil formas multifacetadas . E foi  o  terceiro  toque .

O  olhar do artista dirigiu -se então ao alto da  tela .Lá brilhava o azul suave . A mão ,suspensa no ar, parecia temer  romper  o  equilíbrio de  formas  e  cores . Então , respeitosa  -    mente , um pequeno  ponto branco  surgiu , numa  das  extremidades . Logo, outros  menores  foram  aparecendo , juntos    ou separados , simétricos  ou  dispersos ,  iluminando o alto  da tela .Por fim ,o artista parou , perce-bendo que  faltava  ainda alguma coisa  . Quase  que  instintivamente  sua  mão tomou  o  pincel  e , num gesto  rápido ,fez  surgir  um grande círculo  vermelho .Olhou , observou , achou  forte demais . Novo toque sobre  o  vermelho ,agora com um  amarelo  suave . A tela encheu-se  de fogo .O artista  sorriu . Foi  o  quarto toque . 

O  artista estava  com o coração em  ebulição . Diante dele a  tela  pedia  mais vida . Seus limites se  ampliavam ao  infinito , esperando  pelo  toque  mágico do pincel  . E ele veio . Primeiro , um  rede-moinho nas águas ,que fervilharam  de vida marinha . Depois ,num voo entre as estrelas , desafiando    o sol , pássaros cruzaram a  tela  saídos do coração pulsante o  artista .. 

E a  vida multiplicou - se em  formas e cores  inimagináveis . E foi o quinto  toque .  

O  artista contemplou  sua  obra .Podia  até  dá-la  por  terminada .Mas em seu coração havia  o  sen-timento de  que faltava  ainda  alguma  coisa , o  toque genial , que daria sentido a  tudo o que ali es- tava . Aquela explosão de cores e formas pedia  algo que lhe desse  unidade , um  sentido maior . A  sinfonia  clamava por um  maestro .

Mas ele estava  cansado .Seus  olhos queimavam  suas  mãos tremiam Deixou por um instante a  tela , molhou o  rosto na  água , e seu  olhar , erguendo - se , deu com a  própria face no  espelho . Ela  ilu-minou - se com um  sorriso e ele  correu para a tela . 

Então , bem no centro , lentamente , quase  que com  pudor e medo , o  artista fez  surgir , em  suaves contornos , a sua própria imagem . Quando terminou , percebeu que a  figura  tinha  a mão estendida , como se buscasse algo ou alguém . Voltou a tela e completou -a .

Ele não estava só . Ao seu  lado , a companheira , mãos entrelaçadas , um  sorriso só iluminando  to-      da  a obra . Foi o sexto  toque .

O  artista  sentou-se diante  da  tela . Sua  mão pendia ao lado , o  pincel suspenso , o  olhar pleno  . O  coração  , mais que nunca , apaixonado e  orgulhoso . Era  bela  a  sua  criação . Faltava  a  assinatura .  

O artista aproximou-se do quadro , debruçou-se sobre  ele como  que buscando algum  detalhe que fal-tava . De seus olhos , uma  lágrima emocionada correu  e  caiu  sobre  a  tela . Escorreu  do  peito  do  homem para o da  mulher . O  borrão lentamente assumiu a  forma de um  coração . 

O  artista  entendeu . Era o toque final . o  quadro estava  assinado . 

No  coração  humano  ele deixou a  marca de  sua  inspiração , de  seus  sonhos e desejos . A      marca  de si  mesmo . E de lá , ela nunca  mais sairia ...

Fonte  - Revista O  Mensageiro  -  pág  45  - SOBRE TODAS  AS  COISAS                                            Data  -  Janeiro  /  Fevereiro  2018  -  Eduardo  Machado 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe seu comentário sobre a postagem.