No princípio a tela estava vazia .Tintas e pincéis esparramados em volta . Um caos .Mas no coração do artista a obra já morava em forma do desejo .E nos seus olhos brilhou a luz da inspiração .E ele deu o primeiro toque na tela .
Ela encheu - se de azul .Um azul profundo que se diluía em dois tons .Um ,mas suave , na parte superior .Outro , mais forte , na parte inferior . Outro ,mais forte ,na parte inferior . Céus e mares . E foi o segundo toque na tela .
O artista , inspirado , continuou sua obra . Em seu coração , o sentimento mais forte era de confir-mação . Sim , era a obra que morava em seus sonhos desde sempre .
Num gesto circular , o pincel revolveu o azul profundo e foi aplicado sobre ele toques de um marrom terroso , rústico , primitivo .Quase sem controle , a mão deslizava sobre a tela , salpicando variados o tons de verde ,vermelho ,azul ,amarelo num frenesi vital que se multiplicava e enchia a tela de brilho e luz . A vida explodia em mil formas multifacetadas . E foi o terceiro toque .
O olhar do artista dirigiu -se então ao alto da tela .Lá brilhava o azul suave . A mão ,suspensa no ar, parecia temer romper o equilíbrio de formas e cores . Então , respeitosa - mente , um pequeno ponto branco surgiu , numa das extremidades . Logo, outros menores foram aparecendo , juntos ou separados , simétricos ou dispersos , iluminando o alto da tela .Por fim ,o artista parou , perce-bendo que faltava ainda alguma coisa . Quase que instintivamente sua mão tomou o pincel e , num gesto rápido ,fez surgir um grande círculo vermelho .Olhou , observou , achou forte demais . Novo toque sobre o vermelho ,agora com um amarelo suave . A tela encheu-se de fogo .O artista sorriu . Foi o quarto toque .
O artista estava com o coração em ebulição . Diante dele a tela pedia mais vida . Seus limites se ampliavam ao infinito , esperando pelo toque mágico do pincel . E ele veio . Primeiro , um rede-moinho nas águas ,que fervilharam de vida marinha . Depois ,num voo entre as estrelas , desafiando o sol , pássaros cruzaram a tela saídos do coração pulsante o artista ..
E a vida multiplicou - se em formas e cores inimagináveis . E foi o quinto toque .
O artista contemplou sua obra .Podia até dá-la por terminada .Mas em seu coração havia o sen-timento de que faltava ainda alguma coisa , o toque genial , que daria sentido a tudo o que ali es- tava . Aquela explosão de cores e formas pedia algo que lhe desse unidade , um sentido maior . A sinfonia clamava por um maestro .
Mas ele estava cansado .Seus olhos queimavam suas mãos tremiam Deixou por um instante a tela , molhou o rosto na água , e seu olhar , erguendo - se , deu com a própria face no espelho . Ela ilu-minou - se com um sorriso e ele correu para a tela .
Então , bem no centro , lentamente , quase que com pudor e medo , o artista fez surgir , em suaves contornos , a sua própria imagem . Quando terminou , percebeu que a figura tinha a mão estendida , como se buscasse algo ou alguém . Voltou a tela e completou -a .
Ele não estava só . Ao seu lado , a companheira , mãos entrelaçadas , um sorriso só iluminando to- da a obra . Foi o sexto toque .
O artista sentou-se diante da tela . Sua mão pendia ao lado , o pincel suspenso , o olhar pleno . O coração , mais que nunca , apaixonado e orgulhoso . Era bela a sua criação . Faltava a assinatura .
O artista aproximou-se do quadro , debruçou-se sobre ele como que buscando algum detalhe que fal-tava . De seus olhos , uma lágrima emocionada correu e caiu sobre a tela . Escorreu do peito do homem para o da mulher . O borrão lentamente assumiu a forma de um coração .
O artista entendeu . Era o toque final . o quadro estava assinado .
No coração humano ele deixou a marca de sua inspiração , de seus sonhos e desejos . A marca de si mesmo . E de lá , ela nunca mais sairia ...
Fonte - Revista O Mensageiro - pág 45 - SOBRE TODAS AS COISAS Data - Janeiro / Fevereiro 2018 - Eduardo Machado
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