Por que O Brasil não produz um similar nacional ?
Por que um negro americano pode chegar a general aos 42 anos, ao topo da hierarquia militar aos 52 e se tornar um forte candidato à presidência da República aos 58 e no Brasil isso é impossível ?
Respostas fáceis:
1- Porque sociedade brasileira é mas racista que a americana. ( Falso, houve uma época em que a americana era mais racista que a brasileira) .
2- Porque o Exército brasileiro é racista. ( Falso , porque , ao contrário do que sucedeu no Exército americano até 1948, o negro brasileiro nunca foi segregado ).
Um fenômeno como o de Colin Powell é impossível no Brasil por causa das barreiras da educação e treinamento existentes no caminho dos jovens de famílias pobres. Aqui vai uma comparação de sua biografia com um hipotético translado para as condições brasileiras.
Colin Powell é filho de um zelador de edifício e de uma costureira. Ambos jamaicanos. Seu pai nasceu num barraco. Ele, no Harlem ( num pedaço mais para a Velha Lapa, do que para Vigário Geral, no Rio ) . Quando tinha 6 anos, mudaram-se para o Bronx , na área onde Paul Newman filmou Forte Apache em 1980. Na época em que Colin Powell esteve no lugar, ele poderia ser comparado aos bairros de classe média como o Brooklin paulista. Era um garoto bem -comportado, coroinha de igreja episcopal, carregador de caminhões e faxineiro da Pepsi–Cola. (“Deve-se lavar o chão esfregando a vassoura de um lado para o outro, se você esfregar para a frente e para trás acabará arruinando as costas“, ensina ).
Era mau aluno, a candidato certo à evasão. Ficou na escola porque os professores o seguraram. Além disso, morria de medo dos pais.
No Brasil, o medo o seguraria na escola.
Quando terminou o secundário, Colin Powell não tinha notas para se candidatar a uma boa Universidade Pública nem dinheiro para tentar uma boa escola particular. Conseguiu um lugar no City College de Nova York ( Rua 141 ), onde a anuidade custava US$ 10, pois o propósito da escola é "dar uma educação qualificada aos filhos dos trabalhadores“. (Formou três prefeitos de Nova York e oito Prêmios Nobel) . Diplomou-se em Geologia com notas baixas. No Brasil estaria fora do circuito universitário por falta de saber o vestibular das boas Universidades Públicas e de dinheiro para as más da rede privada. Hoje ele avisa: “Enquanto eu tiver o bom senso de lembrar de onde vim , defenderei a educação pública primária , secundária e superior “ .
Colin Powell não gostava de Geologia nem de Matemática. Encantou-se com a liturgia da igreja episcopal e viu no centro de formação de reservista do Exército um projeto de vida disciplinada e hierárquica. Matriculou-se no Curso Preparatório de Oficiais da Reserva, tornou-se comandante do corpo de alunos e aos 21 anos era tenente na 3ª Divisão Blindada, baseada na Alemanha.
No Brasil não há passagem do CPOR para uma careira militar plena. Só chega a coronel, quem cursou a Academia Militar. Por mais que gostasse de botas bem engraxadas e de desfiles, teria sido um geólogo infeliz.
Sua passagem pelo Vietnã foi banal. Feriu-se duas vezes, um porque pisou numa a de bambu que lhe furou o pé e noutra porque fraturou o tornozelo num desastre de helicóptero durante o qual resgatou os tripulantes ( inclusive um general ). Tomou impulso quando fez concurso e foi aprovado na seleção de oficiais mandados para cursos universitários de paisanos. Acabou estudando processamento de dados. Matricularam–no num curso de seis meses, mas sabia tão pouco que seus chefes concordaram em mantê-lo por dois anos.
No Brasil não existe estímulo semelhante com seleção por concurso. Há casos de oficiais em Universidades, mas decorrem de atos administrativos.
O major Colin Powell conheceu o poder porque aos 34, se inscreveu num programa chamado White House Fellows. É um estágio de um ano na presidência da República, só para profissionais jovens e bem–sucedidos. No seu ano foram escolhidos 17. Pistolão ? Nem pensar. Na sua banca de entrevistadores estava o economista Milton Friedman . Foi trabalhar no Departamento do Orçamento, “porque é por onde passa a jugular dos outros“ e lá conheceu seu primeiro protetor, o ex- diplomata Frank Carlucci ( serviu no Rio de Janeiro em 1968 e tinha duas preocupações os excessos da ditadura militar e a falta de urbanização das favelas cariocas ).
Nem todos os garotos do Bronx foram para a Universidade ( da turma da rua de Powell, nenhum ) e nenhum dos cadetes do City College chegou a General ( o melhor morreu no Vietnã ), mas as oportunidades oferecidas a Powell pela sociedade em que nasceu lhe permitiram chegar aonde chegou.
Seria incorreto supor que ele é uma exceção. Tem uma biografia excepcional, é certo, mas da família que saiu da Jamaica no início do século, noves fora Colin, os Powell produziram dois embaixadores, uma enfermeira, um arquiteto, dois juízes, um milionário e uma professora.
O negro do Harlem comeu o pão que o racismo amassou
Criado num bairro multirracial de Nova York, Colin Powell carregou o peso de sua cor nos anos em que serviu em quartéis do Sul dos Estados Unidos. “Eu podia comprar numa loja, mas não podia comer no restaurante. Podia andar na rua, mas não podia olhar uma branca“. Aos 25 anos, tenente , recém –casado e designado para o Vietnã , entrou com a mulher numa estrada da Virgínia onde não havia postos de gasolina com banheiros para negros ( se houvesse , seria unissex ). Tiveram que sair da estrada e buscar alívio no mato.
Estava no Exército cuja história escondia os 5 mil negros que lutaram nas tropas de George Washington e os 220 mil da Guerra da Secessão ( 35 mil mortos ). Hoje ele tem em casa uma réplica das dragonas do 5 ° Regimento de Massachusetts ( o do filme Glória ) massacrado numa missão impossível. Seu Exército ( bem como Hollywood esquecera –se dos quatro regimentos de negros que foram matar índios no Oeste antes do avanço das tropas brancas.
Sua consciência negra desenvolveu-se na medida de sua ascensão social e profissional. Informa que venceu jogando as regras do jogo: “Às vezes eu me magoava, ficava aborrecido, mas quase sempre eu me sentia desafiado. Vou lhes mostrar coisa“.
Mostrou , e o fez à sua maneira.
Dois exemplos. Reconhece que o ex-presidente Ronald Regan, a quem deve muito, não entende direito o que é ser negro nos Estados Unidos, mas quando um jornalista quis discutir esse assunto com ele, puxou um retrato do ex–chefe com uma dedicatória afetuosa. ( “ Se você acha que deve ser assim Collin, então isso deve ser o certo “ ) e rebateu : “ Você acha que agora eu vou virar o rosto para ele e chamá-lo de racista ? “
O ex–secretário de Defesa Caspar Weinberger, a quem deve muito mais , chegou a supor que o elogiava dizendo que “ eu não o vejo como um negro “ . Powell responde : “ Toda vez que uma pessoa diz que não me vê como um negro , o que ela está dizendo é que , apesar de eu ser negro , ela pode aguentar isso“.
A proeminência adquirida por Colin Powell redesenhou os limites da discussão em torno do negro americano ( e de todos os negros em sociedades multirraciais ) . Uma coisa é ele ter conseguido chegar lá, outra é acreditar que essa proeminência esteja perto de significar o sono do racismo. Powell sabe disso e continua jogando seu jogo pelas regras do manual. É um mestre da arte, como quando conta um acidente de automóvel ocorrido no dia 27 de junho de 1987 numa estrada da Alemanha.
Havia dois tenentes e um soldado num jipe quando ele derrapou. Foram todos cuspidos, mas o carro rolou por cima da barriga de um dos oficiais. Levados para o hospital mais próximo, o médico alemão examinou os três. Dois tinham ferimentos leves. Ao terceiro, que era negro, não deu remédio:
- Nesse aí não há o que fazer.
Um dos colegas do desenganado entendia alemão e pulou da maca:
- O senhor não pode deixá-lo assim. Ligue imediatamente para o hospital americano.
Ligaram e foram todos para o hospital do Exército, em Nuremberg. O tenente estava realmente mal, passou por diversas operações que lhe reconstituíram a bacia quebrada e foi salvo. Chama-se Mike Powell. Nos estados Unidos é o filho do general Colin Powell. Para o médico alemão era um negro moribundo.
Em suas memórias, Colin Powell contou a cena do hospital em oito linhas , sem nenhum comentário , sem o nome do médico alemão, nem mesmo o do hospital em cuja geladeira seu filho seria guardado. Ele sabe que a partida não terminou.
Fonte - Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO pág A 19
Domingo , 01/10/ 1995 - ELIO GASPARI
Colin Powell, uma história do século 21
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