A contribuição de pesquisadores estrangeiros sobre a escravidão não deve ser desprezada. Entre eles, figuram nomes de peso como Paul Lovejoy, John Thorton, Joseph Miller, Stuart Schwartz e Mary Karash, especialista americana responsável por mostrar uma face ainda mais terrível da escravidão brasileira: que ela foi basicamente uma exportação de crianças e adolescentes.
Se as mulheres eram a minoria nos navios negreiros, elas eram a maioria absoluta dos alforriados. “Isso se dava porque elas conseguiam atuar com mais eficiência na política e no mercado“, explica Manolo. “Como domésticas, eram mais próximas do senhor, eventualmente tendo filhos com ele. Ao mesmo tempo, monopolizavam o pequeno comércio da cidade e , assim conseguiam juntar seu próprio dinheiro “.
Quem acredita que ser escravo é o posto de receber qualquer pagamento por seu trabalho vai estranhar que , desde o século 17, seja possível encontrar registros de grande quantidade de ex -escravos que possuíam seus próprios escravos.
“Muitos se alforriam, compram seus próprios escravos e voltam para a África“ , afirma o historiador , que atualmente debruça sobre 15 mil cartas de alforria, tentando compreender a complexa questão dos libertos e sua ascensão social dentro de uma sociedade escravocrata. “Tenho trabalho para uns cinco anos“, festeja.
Ascensão - Embora tenha sido dos últimos a abolir a escravatura, o Brasil foi o país que mais alforriou escravos em toda a América e contou com a maior participação da população de cor entre as diversas camadas sociais. É uma das contradições do modelo escravagista brasileiro mais difíceis de entender, reconhece, Manolo. “ Você traz do cativeiro certos valores políticos e joga no mundo dos livres. Cria , além de uma mestiçagem epidérmica, uma mestiçagem política“ , comenta. O resultado é uma sociedade altamente hierarquizada e prepotente.
Por causa dessa contradição , ele acha que marxismo não é capaz de explicar a escravidão, aliás, o problema do marxismo não é só com a escravidão, é com a história. Num país como o Brasil, que é tão complexo justamente por causa de coisas como o tráfico e a miscigenação , a gama de questões que se coloca a todo momento ultrapassa a capacidade explicativa de quem se fixa em determinismos históricos“, declara.
Nos grandes centros de referência historiográfica brasileira, como a UFF, a UFRJ, a USP e a UNICAMP, a influência da história cultural tem sido avassaladora. “Nos últimos 20 anos, ela substituiu o conceito de modo de produção. Agora tudo é a representação. Eu vejo as teses de hoje. O pesquisador pode estar fazendo a história do pé do Jamelão em Caicó. Ele sempre vai citar o Chartier e o Bordieu. Chega ser engraçado“ , critica.
Mais leve e accessível, a história cultural também é responsável pelo interesse cada vez maior do grande público por livros de história do Brasil. Alguns deles se tornaram best-sellers, transformando-se num filão que vem despertando interesse cada vez maior do mercado editorial nacional.
Enquanto a história econômica desce ladeira abaixo, cresce cada vez mais a atração pela história política, principalmente por pesquisadores da UFRJ e da UNICAMP. “Para a escola econômica , é uma guerra perdida. Nunca mais vamos voltar aos anos 70. Graças a Deus. Leio aquelas coisas que a gente fazia e morro de rir “ , diz.
Freyre - Com a sedução da história cultural, aumenta cada dia o cacife de um dos seus pioneiros : Gilberto Freyre. Para Manolo, Freyre não foi historiador no sentido exato do termo , embora tenha se voltado, muito antes da escola francesa dos Annales, para o estudo do cotidiano. “ Ele foi um precursor ao transformar tudo em objeto de reflexão, de modinha a receita de bolo“, reconhece. “Ele era , antes de tudo, um escritor. Por isso, escreveu com tanta liberdade . E essa liberdade fez com tivesse vários insights fundamentais para se entender este país“. Se as conclusões de Casa-Grande & senzala podem ser aplicadas no resto do Brasil, Manolo tem dúvidas . Mas aí já são outros 500.
O único mito que o historiador mantém de pé, nessa revisão da escravidão, é o de que ela foi a grande culpada por todos os males deste país. “Só lamento que, mesmo os que vivem repetindo isso, nem sempre levam a questão a sério“, critica. Para ele, o problema é que o Brasil é um atentado à química social. “Você exclui um sujeito e miscigena com ele. Isso não tem lógica“.
Sua hipótese é que o país viveu , e ainda vive , um processo muito específico de ascensão social , que faz com que a cor seja matizada conforme a camada social. Ao contrário do que acontece nos Estados Unidos, em que uma pessoa com 1/16 de sangue negro é considerada negra, no Brasil a cor da pele é relativa. “É um fenômeno interessante, quando o escravo vai ascendendo, ele vai perdendo a cor. O racismo brasileiro é um racismo de posição. Essa é a grande especificidade da escravidão brasileira. Aqui tudo depende da posição social . sempre foi assim. Isso explica muito deste país “ , comenta.
O historiador só lamenta que essa nova história da escravidão não se reflita nos livros didáticos. Segundo ele , há um gap entre a pesquisa de pós-graduação e o que chega aos bancos escolares. “Nos anos 60, o livro didático era baseado na historiografia do século 19. Hoje , no que era feito nos anos 60, o livro didático , reclama . O resultado seria uma visão esquematizada da história. “Isso prejudica as crianças negras . Nenhuma vai querer se identificar com a imagem de um escravo maltrapilho que apanha o tempo todo“, imagina. Os próprios historiadores são responsáveis por esse problema, segundo ele. “A culpa é nossa, porque o historiador acha que o livro didático é arte menor , que o importante é publicar tese de doutorado . Com isso , estamos deixando nas mãos de pessoas amadoras e despreparadas a formação de nosso filhos“.
Fonte - JORNAL DO BRASIL IDÉIAS pág 2
21/07/2001 contin/da 1ª página CRISTIANE COSTA
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