Histórias da história
Estas a gente não aprende na escola
João Cândido
O “ALMIRANTE NEGRO"
Quase um século após a Revolta da Chibata, seu líder é anistiado por decreto da Presidência da República
“Há muito tempo nas águas da
Guanabara/ o dragão do mar
Reapareceu / na figura de um
Bravo marinheiro / a quem a
História não esqueceu". (**)
Assim canta o samba Mestre-Sala dos mares, de João Bosco e Aldir Blanc. De fato, a história não esqueceu João Cândido Felisberto, nascido em 24 de junho de 1880 em Rio Pardo, hoje Encruzilhada do Sul , Rio Grande do Sul. Era filho de ex-escravos e tinha sete irmãos. Menino, entrou como grumete para o Arsenal da Guerra da província, sendo transferido aos 14 anos, para Marinha de Guerra do Rio de Janeiro. Suas qualidades rapidamente o fizeram protegido do almirante Alexandrino de Alencar, além de alimentar um natural espírito de liderança. João Cândido fez viagens ao exterior, sempre gozando de prestígio dos oficiais e colegas. Na Inglaterra, teve contato com marinheiros que participaram de revoltas em favor de melhorar as condições de trabalho , entre 1903 e 1906.
Tudo mudou em 22 de novembro de 1910 , data em que a capital acordou na mira dos canhões da Marinha. Apavorada a população carioca cerrou as portas e fugiu. A armada brasileira tinha se rebelado, assumindo o principal controle de três encouraçados e um cruzador. A razão ? Marinheiros - majoritariamente mulatos, negros e nordestinos - pediam o fim do castigo físico aplicado com a chibata. O terrível instrumento remetia a escravidão. Além disso, lutavam contra os baixos soldos, má alimentação e maus-tratos. O estopim foram as 250 chibatadas aplicadas a um marinheiro da nau capitânia da Armada, o Minas Gerais. A imprensa se postou ao lado dos marinheiros. O pobre homem havia mesmo desmaiado de dor durante o castigo, quando todos sabiam que a chibata tinha sido abolida pela República.
Uma semana depois, João Cândido deu início ao levante , sendo designado pela imprensa como Almirante Negro. Num ultimato dirigido ao presidente recém-eleito, Hermes da Fonseca, os marinheiros declaravam: “ Nós , marinheiros , cidadãos brasileiros e republicanos , não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira“ . Hermes da Fonseca preferiu pôr logo um fim ao movimento. Proibiu a chibata e anistiou os rebeldes, mas não os perdoou. Muitos foram excluídos e acusados de “ não desejáveis à disciplina de bordo “ .
Em 9 de dezembro, novo levante , desta vez na Ilha das Cobras. Durante o motim, marinheiros mataram companheiros e um comandante. A rebelião foi massacrada em poucas horas . As conseqüências ? Prisões , exílios e fuzilamentos. João Cândido foi expulso da Marinha , acusado de ter incitado o movimento. Em abril de 1911, com o diagnóstico de louco e indigente, foi internado no Hospital dos Alienados. Banido da Marinha, passou anos trabalhando entre os estivadores e pescadores do Cais do Porto. Perdeu a mulher em 1928 e, dois anos depois , foi novamente preso por subversão. A partir de 1933 , participou da Ação Integralista Brasileira, movimento de inspiração fascista, deixando depoimento arquivado no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro sobre sua amizade com o líder Plínio Salgado .Faleceu em 1969, pobre e esquecido .
No dia 24 de julho de 2008, quase um século depois , a Presidência da República sancionou a lei que anistiou post-mortem João Cândido Felisberto e outros 600 marinheiros que participaram da Revolta da Chibata. Polêmica , a anistia foi recebida com euforia por setores políticos e com silêncio pelo comando da Marinha . Alguns setores qualificaram-na como “ irrelevante “ , outros disseram ser ela o “elogio da insubordinação e indisciplina“.
Mais uma vez , só a história poderá fazer seu julgamento. E os historiadores ainda têm muito a pesquisar e descobrir sobre esses episódios. Documentos referentes aos motins de 1910 agora vêm a luz, revelando os meandros das Forças Armadas, o cotidiano dos navios de guerra , o rosto dos marinheiros e o da jovem República - esta , alheia às necessidades de cidadãos simples e anônimos como João Cândido.
(**) A letra original foi modificada pelos autores para ser aprovada pela censura da época.
Fonte - Revista NA POLTRONA págs 46 e 47
Empresa ITAPEMIRIM setembro / 2008
Mary Del Priore é historiadora e escritora
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