“O Saci-Pererê :
Resultado de um Inquérito, relançado em
edição fac-similar, traz de volta, 81 anos depois, a curiosa pesquisa de
Monteiro Lobato sobre essa entidade que perambula pelas matas.
Desde 1918, quando foi aprisionado uma peneira de letras
impressas entre os parágrafos de um livro, o saci andava solto pelas terras brasílicas sem que ninguém
conseguisse capturá-lo. Livro não
assinado e excluído por Monteiro Lobato das Obras Completas que organizou e
lançou pela Brasiliense em 1946. O
Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito
permaneceu fora da bibliografia do autor e, pior, longe do alcance de seus
leitores e pesquisadores. Agora, a edição fac-similar patrocinada pelo
próprio Projeto Memória (Fundação Banco do Brasil e Odebrecht) vem, 81 anos
depois, trazer de volta essa
interessante pesquisa sobre a curiosa entidade que perambula pelas matas
fazendo travessuras.
O arraigado hábito das elites de valorizar tudo, o que vinha do estrangeiro - leia-se, Paris - em detrimento das
nossas tradições, há muito preocupava
Lobato. Colaborador de O Estado de São Paulo desse seus polêmicos artigos Uma
Velha Praga, e Urupês de 1914, ele
vinha denunciando no jornal e na Revista do Brasil o crescente desenraizamento
cultural do País. Antecipava em muitos
anos tendências tidas como “modernistas“ pela crítica consagradora e
eficiente propaganda do movimento de 22.
Dublê de fazendeiro e jornalista, enquanto residia nos grotões do Buquira,
Vale o Paraíba, Lobato tentava
sintonizar a rica cultura rural,
ignorada nos centros urbanos. Já com
reputação consolidada como escritor publicista, congregava em torno de si gente da região empenhada em conhecer mais
de perto personagens do lendário local,
como o saci.
Em janeiro de 1917,
Monteiro Lobato relatou a Godofredo Rangel, seu mais assíduo correspondente, as frequentes consultas que lhe faziam sobre o “molecote de uma perna
só“, como se ele, Lobato, tivesse uma criação de sacis na sua
propriedade. Confessando que jamais
vira algum, chegando mesmo a duvidar de
sua existência, pedia a Rangel “algumas luzes“ sobre o assunto, indagando a respeito de sua ocorrência em
Minas. Daí a resolver implementar uma
sondagem em nível nacional foi um pulo -
de duas pernas - pois na carta seguinte
ele já dizia ao amigo: “Abri no
Estadinho um concurso de coisas sobre o saci-pererê e convido-te a meter o
bedelho - você e outros sacizantes que
haja por aí“.
Nascia assim, sob o título Mitologia Brasílica, uma investigação antropológica
pioneira, considerada por alguns
estudiosos como o primeiro manifesto cultural brasileiro da época moderna. Com o objetivo de estabelecer os contornos
estéticos, lendários e comportamentais
do “insigne perneta", no dia 28 de janeiro de 1917, por meio das páginas da edição vespertina do
jornal O Estado de São Paulo, Lobato
fez uma convocação aos leitores. “O
Estadinho inaugura hoje uma série de estudos em que todos são chamados a
colaborar “. Explicava tratar-se de um
inquérito. “Sobre o futuro presidente
da República ? Não . Sobre o Saci".
Convencido de que,
para entender o espírito de um povo,
era preciso descobrir suas lendas,
costumes e crendices, Lobato aplicou
uma técnica de coleta de dados inédita.
Ao mesmo tempo , inovou ao dar voz a
vastos setores da sociedade ,
contrariando a prática vigente de só ouvir a opinião de nomes consagrados. Para completar, ainda combatia o “macaqueamento“ , ou
seja, a mentalidade de imitavista de
certos segmentos sociais determinados em plagiar modelos europeus, dos quais tornavam-se nada mais do que
cópias fajutas.
A acolhida da sondagem foi surpreendente, com cartas enviadas de Minas, do Rio e interior paulista. Embora estilizado de diferentes
maneiras, na maioria delas o mito
conservava a mesma origem - relatos de
ex-escravos – além de feições africanas. A ela , seguiu-se um concurso para artistas plásticos desenvolver
trabalhos inspirados “satirozinho pitoresco“.
A repercussão excelente levou-o a idealizar um livro com uma
seleção de respostas entremeadas com reproduções de algumas das obras inscritas
no certame. Nele, Lobato compareceria com abertura, comentários e conclusão - uma apologia do Jeca.
Impresso na gráfica do Estado, com anúncios estrelados pelo “diabinho de
carapuça“ na pena de Voltolino, Resultado de um Inquérito, financiado pelo próprio Lobato, foi lançado em 1918, na fase mais sangrenta da 1ª Guerra
Mundial. Em seu epílogo, no tom nacionalista e irreverente que
caracterizaria o discurso lobatiano,
vibra a intenção de despertar consciências adormecidas. Assim
como o Jeca, símbolo de um
heroísmo silencioso que morre, mas não
adere , o saci, tachado pejorativamente de produto de
regionalismos, era revelador da alma de
nossa terra.
“Valeu a pena chamá-lo à cidade ?
Compreende ela o que no fundo isso significa ?“ indagava Lobato. Uma pergunta que , como todas as usas
inquietações, permanece atual e oportuna
,demandando uma reflexão dos interessados na questão da brasilidade.
Fonte - O
ESTADO DE SÃO
PAULO pág D 5
CULTURA - LITERATURA
Domingo , 14/02/99
Marcia Mascarenhas Camargos
é jornalista doutoranda em História Social / USP e co -autora, com Vladimir Sacchetta e
Carmen Lucia de Azevedo, de “Monteiro
Lobato: Furacão na Botocúndia“ ( SENAC
– São Paulo )
Perdeu traços
rudes para servir à
indústria cultural
Teve também de despir–se da magia e ousadia para circular pelo mundo branco e urbanizado
Os eventos que recentemente assinalaram o cinquentenário da
morte de Monteiro Lobato talvez não tenham resultado certos aspectos
antropológicos das contribuições deste intelectual para a cultura
brasileira. Afortunadamente, reeditou-se o seu Saci–Pererê: Resultado de um Inquérito, livro publicado em 1918 e do qual Lobato
reservou para si a parte introdutória ,
a conclusão e um epílogo. O restante da
obra reúne mais de uma centena de riquíssimos depoimentos - ademais de outras tantas ilustrações - datados de 1917 e remetidos por leitores
paulistas, mineiros e fluminenses ao
jornal Estado, tudo isso dando vida à
intrigante figura do saci.
Neste livro , Lobato
concede a palavra aos informantes, mas
não se furta à interpretação, tão
rigorosa quanto crítica , e densamente
contextualizada, do material
recolhido, traduzindo-o à luz do saber
da época , em graúdos desdobramentos
analíticos. Aliás, o roteiro que ele mesmo fez publicar nas
páginas do referendo jornal,
solicitando aos leitores que enviassem à redação depoimentos sobre o Saci, nasceu da sua percepção de que a cultura
brasileira vinha sendo descaracterizada pelos estrangeirismos então em
voga.
E acordo com Lobato,
o Saci sintetizava a mais típica e autêntica das nossas criações populares, “filho da imaginação coletiva , uma resultante psíquica do nosso povo , digno de estudo como todas as suas outras
manifestações originais". Reveladora
do seu pioneirismo antropológico, essa
passagem evoca o preceito, tão caro a
Franz Boas, segundo o qual não há temas indignos para a pesquisa científica.
Ademais, realizando este inquérito , Lobato foi igualmente pioneiro no uso do
questionário para a coleta de dados ,
com o que logrou sondar a memória de
inúmeros informantes.
Antecipando-se em alguma medida àqueles que, a exemplo de Gramsci, destacaram a
importância do estudo da cultura popular para a compreensão da dinâmica das
transformações sociais, o criador do
Sítio do Pica-Pau–Amarelo argumentava
que “a fonte da água pura é uma só, e
a mesma, na Grécia , em França
, na Rússia e no Brasil: o povo".
O Saci que povoa as páginas do Inquérito é uma criatura
turbulenta, protagonista de aventuras
em que predominam a malícia , a zombaria e a astúcia. Preto, perneta, feiticeiro , ladrão, hematófago e demoníaco, perambula
em geral à noite e habita espaços marginais ( limites, porteiras de fazendas , margens , cantos de
cozinhas esfumaçadas ). O cavalo – símbolo
e instrumento de poder - é o seu alvo
preferido, objeto das suas muitas ações
malfazejas.
Tal como estampado na capa do Inquérito - um adulto, exibindo um par de cornos, dentes pontiagudos e porrete - , este Saci não se assemelha ao Saci–Menino, cativante e buliçoso, que aparece mais tarde na mídia , já
domesticado e infantilizado pelo próprio Lobato, devidamente despojado de suas feições e condutas ameaçadoras.
A progressiva passagem da condição liminar , que o imaginário das classes rurais lhe
atribuía , para a centralidade
custou-lhe os traços mais rudes e agressivos e só assim o saci, porque preto, pôde integrar-se aos
valorizados espaços do mundo urbano. Na
cidade de São Paulo , por exemplo , um cinema e um ônibus urbano levam seu
nome. As bancas dos jornais costumavam
anunciar o novo número da revista em quadrinhos
A Turma do Pererê, enquanto o
seriado da TV O Sítio do Pica-Pau–Amarelo divulgava a sua imagem pelo
País. Artistas de teatro recebiam o
Prêmio Saci , instituído pelo Estado
para distinguir aqueles que representam
, que “fazem arte“. Por
fim , um Saci alado e aureolado podia
ser visto numa pintura no teto da Igreja de São Benedito, em Serra Negra , SP, convivendo sem constrangimento com
santos e anjos barrocos.
Para que pudesse circular com tal desenvoltura no mundo
branco e urbanizado, foi preciso despir
o Saci das feições e condutas agressivas
com que, a despeito das expectativas
iniciais do próprio Lobato, fora
pormenorizadamente caracterizado em depoimentos compilados pelo Inquérito. Perdendo os poderes mágicos, a agressividade e a ousadia,
converteu-se numa figura simplesmente cômica inofensiva, bem de acordo com o perfil traçado para os
subalternos incluindo–se aí, e
sobretudo, os pretos.
Mas , sendo tão forte
o nosso ideal de branqueamento,
alteraram ainda mais o fenótipo do Saci: numa ilustração de propaganda infantil paulistana, ele aparece com um largo sorriso estampado
em sua face inteiramente branca, a
mesma cor de seu barrete, outrora
provocadoramente encarnado. Agora assim, o Saci é nosso.
Renato da Silva Queiroz é professor titular do Departamento
de Antropologia
Da Universidade de São
Paulo
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