terça-feira, 22 de novembro de 2016

Verdades e mentiras sobre o travesso de uma perna só



“O Saci-Pererê  : Resultado de um Inquérito, relançado em edição fac-similar, traz de volta, 81 anos depois, a curiosa pesquisa  de  Monteiro Lobato  sobre  essa entidade que perambula pelas matas.

Desde 1918, quando foi aprisionado uma peneira de letras impressas entre os parágrafos de um livro, o saci andava solto pelas terras brasílicas sem que ninguém conseguisse capturá-lo. Livro não assinado e excluído por Monteiro Lobato das Obras Completas que organizou e lançou pela Brasiliense em 1946. O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito permaneceu fora da bibliografia do autor e, pior, longe do alcance de seus leitores e pesquisadores. Agora, a edição fac-similar patrocinada pelo próprio Projeto Memória (Fundação Banco do Brasil e Odebrecht) vem, 81 anos depois, trazer de volta essa interessante pesquisa sobre a curiosa entidade que perambula pelas matas fazendo travessuras.
O arraigado hábito das elites de valorizar tudo, o que vinha do estrangeiro - leia-se, Paris  - em detrimento das nossas tradições, há muito preocupava Lobato. Colaborador de O Estado de  São Paulo desse seus polêmicos artigos Uma Velha Praga, e Urupês de 1914, ele vinha denunciando no jornal e na Revista do Brasil o crescente desenraizamento cultural do País. Antecipava em muitos anos tendências tidas como “modernistas“ pela crítica consagradora e eficiente propaganda do movimento de 22.
Dublê de fazendeiro e jornalista, enquanto residia nos grotões do Buquira, Vale o Paraíba, Lobato tentava sintonizar a rica cultura rural, ignorada nos centros urbanos. Já com reputação consolidada como escritor publicista, congregava em torno de si gente da região empenhada em conhecer mais de perto personagens do lendário local, como o saci.
Em janeiro de 1917, Monteiro Lobato relatou a Godofredo Rangel, seu mais assíduo correspondente, as frequentes consultas que lhe faziam sobre o “molecote de uma perna só“, como se ele, Lobato, tivesse uma criação de sacis na sua propriedade. Confessando que jamais vira algum, chegando mesmo a duvidar de sua existência, pedia a Rangel  “algumas luzes“ sobre o assunto, indagando a respeito de sua ocorrência em Minas. Daí a resolver implementar uma sondagem em nível nacional foi um pulo  - de duas pernas  - pois na carta seguinte ele já dizia ao amigo: “Abri no Estadinho um concurso de coisas sobre o saci-pererê e convido-te a meter o bedelho  - você e outros sacizantes que haja por aí“.
Nascia assim, sob o título Mitologia Brasílica, uma investigação antropológica pioneira, considerada por alguns estudiosos como o primeiro manifesto cultural brasileiro da época moderna. Com o objetivo de estabelecer os contornos estéticos, lendários e comportamentais do “insigne perneta", no dia 28 de janeiro de 1917, por meio das páginas da edição vespertina do jornal O Estado de São Paulo, Lobato fez uma convocação aos leitores. “O Estadinho inaugura hoje uma série de estudos em que todos são chamados a colaborar “. Explicava tratar-se de um inquérito. “Sobre o futuro presidente da República ? Não . Sobre o Saci".
Convencido de que, para entender o espírito de um povo, era preciso descobrir suas lendas, costumes e crendices, Lobato aplicou uma técnica de coleta de dados inédita. Ao mesmo tempo  , inovou ao dar voz a vastos setores da sociedade  , contrariando a prática vigente de só ouvir a opinião de nomes consagrados. Para completar, ainda combatia o “macaqueamento“ , ou seja, a mentalidade de imitavista de certos segmentos sociais determinados em plagiar modelos europeus, dos quais tornavam-se nada mais do que cópias fajutas.
A acolhida da sondagem foi surpreendente, com cartas enviadas de Minas, do Rio e interior paulista. Embora estilizado de diferentes maneiras, na maioria delas o mito conservava a mesma origem  - relatos de ex-escravosalém de feições africanas. A ela , seguiu-se um concurso para artistas plásticos desenvolver trabalhos inspirados “satirozinho pitoresco“.
A repercussão excelente levou-o a idealizar um livro com uma seleção de respostas entremeadas com reproduções de algumas das obras inscritas no certame. Nele, Lobato compareceria com abertura, comentários e conclusão  - uma apologia do Jeca.
Impresso na gráfica do Estado, com anúncios estrelados pelo “diabinho de carapuça“  na pena de Voltolino, Resultado de um Inquérito, financiado pelo próprio Lobato, foi lançado em 1918, na fase mais sangrenta da 1ª Guerra Mundial. Em seu epílogo, no tom nacionalista e irreverente que caracterizaria o discurso lobatiano, vibra a intenção de despertar consciências adormecidas. Assim  como o Jeca, símbolo de um heroísmo silencioso que morre, mas não adere  , o saci, tachado pejorativamente de produto de regionalismos, era revelador da alma de nossa terra.
Valeu a pena chamá-lo à cidade  ?  Compreende ela o que no fundo isso significa  ?“ indagava Lobato. Uma pergunta que , como todas as usas inquietações, permanece atual e oportuna ,demandando uma reflexão dos interessados na questão da brasilidade.

Fonte   -  O  ESTADO  DE  SÃO  PAULO  pág   D 5
CULTURA  -  LITERATURA   Domingo , 14/02/99
Marcia Mascarenhas Camargos  é jornalista doutoranda em História Social / USP  e co -autora, com Vladimir Sacchetta e Carmen Lucia de Azevedo, de “Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia“ ( SENAC  – São Paulo )

Perdeu traços  rudes  para servir à indústria  cultural

Teve também de despir–se da magia e ousadia para circular pelo  mundo  branco e urbanizado

Os eventos que recentemente assinalaram o cinquentenário da morte de Monteiro Lobato talvez não tenham resultado certos aspectos antropológicos das contribuições deste intelectual para a cultura brasileira. Afortunadamente, reeditou-se o seu Saci–Pererê: Resultado de um Inquérito, livro publicado em 1918 e do qual Lobato reservou para si a parte introdutória  , a conclusão e um epílogo. O restante da obra reúne mais de uma centena de riquíssimos depoimentos  - ademais de outras tantas ilustrações  - datados de 1917 e remetidos por leitores paulistas, mineiros e fluminenses ao jornal Estado, tudo isso dando vida à intrigante figura  do saci.
Neste livro  , Lobato concede a palavra aos informantes, mas não se furta à interpretação, tão rigorosa quanto crítica  , e densamente contextualizada, do material recolhido, traduzindo-o à luz do saber da época  , em graúdos desdobramentos analíticos. Aliás, o roteiro que ele mesmo fez publicar nas páginas do referendo jornal, solicitando aos leitores que enviassem à redação depoimentos sobre o Saci, nasceu da sua percepção de que a cultura brasileira vinha sendo descaracterizada pelos estrangeirismos então em voga.
E acordo com Lobato, o Saci sintetizava a mais típica e autêntica das nossas criações populares, “filho da imaginação coletiva  , uma resultante psíquica do nosso povo  , digno de estudo como todas as suas outras manifestações originais". Reveladora do seu pioneirismo antropológico, essa passagem evoca o preceito, tão caro a Franz Boas, segundo o qual não há temas indignos para a pesquisa científica. Ademais, realizando este inquérito , Lobato foi igualmente pioneiro no uso do questionário para a coleta de dados  , com o que logrou sondar a memória  de inúmeros  informantes.
Antecipando-se em alguma medida àqueles que, a exemplo de Gramsci, destacaram a importância do estudo da cultura popular para a compreensão da dinâmica das transformações sociais, o criador do Sítio do Pica-Pau–Amarelo  argumentava que “a fonte da água pura é uma só, e a mesma, na Grécia  , em França  , na Rússia e no Brasil: o povo".
O Saci que povoa as páginas do Inquérito é uma criatura turbulenta, protagonista de aventuras em que predominam a malícia , a zombaria e a astúcia. Preto, perneta, feiticeiro  , ladrão, hematófago e demoníaco, perambula em geral à noite e habita espaços marginais ( limites, porteiras de fazendas , margens , cantos de cozinhas esfumaçadas ). O cavalo – símbolo e instrumento de poder  - é o seu alvo preferido, objeto das suas muitas ações malfazejas.
Tal como estampado na capa do Inquérito  - um adulto, exibindo um par de cornos,  dentes pontiagudos e porrete - , este Saci não se assemelha ao Saci–Menino, cativante e buliçoso, que aparece mais tarde na mídia , já domesticado e infantilizado pelo próprio Lobato, devidamente despojado de suas feições e condutas ameaçadoras.
A progressiva passagem da condição liminar  , que o imaginário das classes rurais lhe atribuía  , para a centralidade custou-lhe os traços mais rudes e agressivos e só assim o saci, porque preto, pôde integrar-se aos valorizados espaços do mundo urbano. Na cidade de São Paulo  , por exemplo  , um cinema e um ônibus urbano levam seu nome. As bancas dos jornais costumavam anunciar o novo número da revista em quadrinhos  A Turma do Pererê, enquanto o seriado da TV O Sítio do Pica-Pau–Amarelo divulgava a sua imagem pelo País. Artistas de teatro recebiam o Prêmio Saci  , instituído pelo Estado para distinguir aqueles que representam  , que “fazem arte“. Por fim  , um Saci alado e aureolado podia ser visto numa pintura no teto da Igreja de São Benedito, em Serra Negra  , SP, convivendo sem constrangimento com santos e anjos barrocos.
Para que pudesse circular com tal desenvoltura no mundo branco e urbanizado, foi preciso despir o Saci  das feições e condutas agressivas com que, a despeito das expectativas iniciais do próprio Lobato, fora pormenorizadamente caracterizado em depoimentos compilados pelo Inquérito. Perdendo os poderes  mágicos, a agressividade e a ousadia, converteu-se numa figura simplesmente cômica inofensiva, bem de acordo com o perfil traçado para os subalternos incluindo–se aí, e sobretudo, os pretos.
Mas  , sendo tão forte o nosso ideal de branqueamento, alteraram ainda mais o fenótipo do Saci: numa ilustração de propaganda infantil paulistana, ele aparece com um largo sorriso estampado em sua face inteiramente branca, a mesma cor de seu barrete, outrora provocadoramente encarnado. Agora assim, o Saci é nosso.

Renato da Silva Queiroz é professor titular do Departamento de Antropologia
Da  Universidade  de  São Paulo



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