Uma vez entrou na loja uma senhorinha e pediu para comprar ‘laise', um tecido bordado muito chique. O funcionário colocou sobre o balcão uma peça de 10 jardas de
tecido. “Quanto a senhora quer ? “ “
Vinte e cinco centímetros “, respondeu a dama. “Impossível, só
vendemos em grandes metragens“,
desculpou-se o vendedor. Ainda bem que
o ‘ seu ‘ Habib estava por perto.
Quem conta é Demétrio: “ Meu pai mandou o rapaz cortar os 25 centímetros, e quando a mulher agradeceu, disse que ele é que lhe ficava devedor, pois ela lhe tinha dado uma bela ideia ! ‘Foi assim que nasceu o varejo na Rua
Alfândega. As lojas Gabriel Habib e Filhos
, de tecidos, armarinho, utilidades e brinquedos, começaram a vender também no varejo, e logo foram seguidas por todas as outras. E a clientela da rua cresceu, fazendo transbordar todo o comércio para as
ruas adjacentes.
Foi aí que nasceu também a venda a prestação – essa mania
que a gente pensa que é invenção brasileira, na verdade foi implantada pelos mascates que agora podiam comprar em
menor quantidade e vender por aqui mesmo. Quem aí que tem mais de 50 anos e que não ouviu a expressão ‘ turco da prestação ‘ ? Pois é...
Figuraças
Hoje a região tem mais de 1250 lojas. Associadas da SAARA mesmo são 300
lojas, e Demétrio sonha em aumentar o
número de sócios. “Aqui nós damos tudo: segurança, limpeza, banheiros públicos, publicidade em revistas e na nossa rádio,
TV aos sábados, ambulância para socorro
urgente “ - diz . Além das nacionalidades citadas, há também muitos argentinos e brasileiros, especialmente do nordeste.
“ Aqui não se fala em guerra “ , diz Demétrio. “ Nossa
guerra é para botar o cliente para dentro da loja . Procuramos trabalhar juntos unidos e em
paz . Este é o espírito da SAARA “ .
Quando os pioneiros vieram para o Rio de Janeiro , as
batalhas no oriente eram quase sempre de motivação religiosa, entre diversas seitas islâmicas, os otomanos, os judeus, os cristãos. Aqui, os imigrantes encontraram uma atmosfera de
liberdade, e decidiram: “religião é
nas sinagogas, nas mesquitas, nas, igrejas, não no nosso local de trabalho “ . Hoje as
guerras têm outros contornos, mas eles
não se envolvem: “Não entramos no
mérito, apenas não falamos sobre isso“. E completa: ‘Não somos mais
inteligentes do que eles ? Ou
melhor , não somos mais humanos do que
eles “ ?
Demétrio é uma das figuras unanimemente respeitadas na SAARA. Tem diplomas , troféus
e comendas de grande importância , dos quais destaca a Medalha ao Mérito
Dom João VI , de 1998 , a Honra ao Mérito do Clube Sírio
-Libanês , de 1997, e a comenda de Cavalheiro da Ordem do Cedro
do Líbano. Carinho especial ele
demonstra por um troféu criado pelo Banco do Brasil especialmente para ele, em
2003, com um texto bonito que começa
com frases que são um verdadeiro retrato
de Demétrio “Ímpeto de Guerreiro , Calma de Pai , Olhar de Irmão “ .
Demétrio tem dois filhos homens e uma filha tiete: Lilian , fã apaixonada do pai . Tem 9
netos e 3 bisnetos . , que têm suas fotos espalhadas no escritório
do patriarca . “ Nós viemos para cá para
progredir , para criar nossos filhos
dando a eles um leque de possibilidades .
Muitos dos filhos e netos dos imigrantes
- a maioria - se formou em
faculdades, têm seus próprios
escritórios, ou trabalham em grandes
empresas, mas alguns deles, mesmo formados, estão aqui cuidando das lojas de seus pais
“ .
Outra figuraça da SAARA
é Henrique Nigri, da segunda
geração de imigrantes judeus. Ele conta
que depois de duas guerras mundiais, os
americanos encantavam o mundo com o seu progresso, seus filmes, sua música. Muita gente quis tentar a
vida na América. “ Mas a América era
muito grande, eram três, e os judeus iam de barco do oriente para a
França, e chegando lá os comandantes
dos navios perguntavam qual América queriam, então muitos foram para o México
, a Argentina e outros para o Brasil.
A vantagem dos árabes e judeus , segundo Nigri , é que tinham sido colonizados pela
França , e sabendo francês foi mais
fácil aprender português. Henrique
Nigri, o patriarca dono das lojas HN,
é autor de um livro importante sobre esses anos, "História da SAARA “ , cuja venda ele faz reverter ao Lar das
Crianças Israelita Religiosa Rosa Waisman, na Tijuca – que aceita acrianças de qualquer religião.
Segundo o fio da História, Nigri lembra depois dos conflitos religiosos entrou na briga o
petróleo. “Os árabes eram pobres até
que se descobriu o seu petróleo. As grandes potências, vendo esse produto fantástico, perceberam que para botar a mão nele
era preciso fomentar as brigas religiosas e os conflitos, para dividir e assim dominar “.
É uma boa teoria...
Mas ele não se estende sobre o assunto,
e com bom humor responde à pergunta “ por que existe essa paz aqui na SAARA
“ ?
“No Oriente Médio ,
os países , a Síria , o Líbano
, eram ditaduras. Aqui árabes e
judeus, encontram um país livre, sem condições, sem problemas religiosos, aceitando todas
as religiões. Eles não conheciam
democracia , vieram a conhecer aqui“ .
Nigri completa : “Aqueles primeiros imigrantes pensaram então que esse país
maravilhoso nos deu essa rua, essa
facilidade para trabalhar. Se
começassem a brigar, iriam matar a
galinha dos ovos de ouro.
Mais um
decano da paz na SAARA , Ênio Bittencourt é presidente da sociedade há 25
anos . Conhece tudo e todo mundo. Mineiro, casado com uma filha de sírios há mais de 50a anos, tempo em que começou a sua loja, a GMB Sports. Aos 79 anos, apresenta corpo atlético para a idade, e uma disposição invejável.
"Já fiz ponte de safena,
várias, também várias mamárias , então o que eu tinha de passar , já passei " , brinca .
É Ênio
quem , todos os anos , serve de cicerone da imprensa para as
matérias que jornais e TV fazem sempre ,
na época de Natal. Na sua loja, a GMB Sports, as simpáticas vendedoras já sorriem ao ver a máquina fotográfica, como quem diz " lá vêm os jornalistas de novo " . É realmente uma atração tradicional de fim
de ano. Esta é a época de maior
movimento aqui, mas em todas as datas
festejadas neste Rio a SAARA fica lotada de gente. " Afinal , é o maior shopping center a
céu aberto da cidade " , afirma orgulhoso o presidente Ênio.
Ênio está
na sua loja da Rua da Alfândega a partir das 6 horas da manhã, até as 18 h, e aos sábados até 3h ou 4h da tarde. Tem quatro filhas, todas
formadas, mas só uma trabalha com
ele.
" A maioria dos filhos de meus amigos não trabalham aqui , estão formados e trabalham fora " -
diz . Quando se pergunta se não tem medo de tudo isso acabar por causa da
ausência das novas gerações, Ênio sorri: "Não tem perigo de acabar . Cada vez chega mais gente, atraídos pela convivência pacífica entre
nós. Todos somos amigos , tomam cafezinho juntos , almoçam juntos , fazem o seu dia-a-dia pela sobrevivência
" .
As coisas
evoluíram muito desde que d. Darcy Vargas, a prestigiada filha do presidente Getúlio Vargas, era cliente assídua da Rua da Alfândega. Ela vinha à loja do seu Habib comprar
tecidos , botões e linha para mandar
fazer os uniformes dos jovens da Casa do Pequeno jornaleiro. A Casa acolhia meninos entre dez e 15 anos
e lhes dava ensino e a oportunidade de trabalhar na entrega de jornais. Depois da virada para o varejo, há mais de 50 anos, todos no Rio sabem: na SAARA
se encontra tudo.
A
concorrência é grande, e muitos
lojistas adotaram já há muito tempo a figura de animador, que foi, digamos assim, imortalizada pela
personagem Darkson, da novela Avenida
Brasil. Uma personagem
extrovertida, sorridente, sempre com uma piada na ponta da
língua. É claro, com um vozeirão capaz de atrair
consumidores a quarteirões de distância.
Nesta
categoria se inclui o Iramar, negro forte e bonitão, dinâmico e sedutor, que há 9 anos trabalha na SAARA. Expor vantagens e promoções é sua
especialidade . Atrair clientes - é
outra. " Não saio daqui, não " , diz. " É um trabalho
divertido, tem suas vantagens', completa com olhar maroto.
É esta a
praia que está atraindo também o Fabiano, negro de fina estampa, voz
forte, sorriso contagiante. " Estou aqui há seis meses, já trabalhei assim mesmo em Nova
Iguaçu, mas aqui estou gostando mais
" , diz e não perde a deixa:
" Aqui é que tem gente bonita que nem a senhora ! " Ganhei o meu
dia, pensa a repórter. Todos devem se sentir também, com toda
essa atenção.
Não é de
hoje que a região vive lotada. Mas houve tempo em que era frequentada por
políticos e famosos, geralmente ,
depois de circular pelas ruas de lojas e
almoçar nos seus restaurantes , eles
procuravam um lugar já tradicional: o
Café Bunda de Fora. O nome certo do barzinho que só vendia café já se perdeu
na História, mas ficou o apelido, dado pelo humor carioca, sempre presente. É que o bar só tinha
praticamente o balcão, era tão pequeno
que os clientes ficavam com suas xícaras na mão entre o balcão e a rua, literalmente com as respectivas partes
traseiras "de fora ".
Mais figuraças
Com
uma população predominantemente síria e libanesa, os restaurantes de comida árabe foram abrindo e se multiplicando por
aqui, desde o início desta história. Um exemplo é o Cedro do Líbano, na rua Senhor dos Passos , curiosamente uma propriedade de
espanhóis.
O
restaurante hoje é dirigido por Lícia Fernandes Dominguez . filha do patriarca Manuel Fernandez , natural de San Pedro de la Corunã , na região de Ponte Vedra , na Galícia. É uma daquelas magnificas paisagens do Caminho de Santiago de
Compostela. O avô de Lícia, Leonardo Fernandez, veio aos 23 anos para o Rio de Janeiro, em busca de oportunidades, depois dos tempos difíceis da Segunda
Guerra . Montou um botequim ( naquela época , um bar que servia café ) na esquina de
Senhor dos Passos com Tomé de Souza .
Leonardo
havia deixado família na Espanha . O mais
velho , o pai de Lícia , veio aos 13
anos . " Espanhol não põe os filhos
para trabalhar com a família , ao
contrário dos árabes . Os filhos iam
trabalhar com amigos deles . de qualquer
maneira , o trabalho aos 12, 13 anos
era uma tradição , pois se acreditava,
que dava experiência e firmeza de caráter aos jovens " - diz Lícia .
Ela dirige
o Cedro do Líbano há 7 anos . É
engenheira , e como tal trabalhou por 20
anos . Durante esse tempo ,' o seu ' Manuel teve como sócio o ' seu '
Abel , português , até o seu falecimento, há 11 anos. Agora, Lícia, que estudou
porque seu pai achava que " restaurante não é coisa para mulher
", dirige tudo juntamente com
outro sócio, Severino Cendon
Correa. Lícia tem um filho com 27
anos, o engenheiro Daniel, e uma filha, Manuela, 23, designer gráfica.
Todos os
dias, o restaurante fica lotado. E um dos clientes assíduos é Said Mussalem, das Casas Pedro - a que mais filiais ( 10 ) na SAARA e outros bairros do Rio. Filho de Pedro Mussalem, libanês , de d . Olga , síria, é carioca, nascido aqui um ano
depois que seus pais chegaram , em
1945 . Aqui todos os filhos mais velhos
começavam a trabalhar aos 13 anos .
Todas as famílias moravam nos sobrados de suas lojas .
Para
Said , trabalhador cedo , na época , era bom para os jovens ; " Agora , não se dá mais valor aos
relacionamentos , aos mais próximos , porque tudo agora é computador ' ! -
reclama . Ele tem três filhos : uma
engenheira , e os dois homens trabalhando
com ele nas lojas . " Mas são
formados , um em economia e outro em
administração de empresas " . Uma das coisas mais importantes , para estes filhos e netos de outras terras
que progrediram no Brasil , é a educação
de seus filhos e netos.
Negócios da
China
Das 1250
lojas na SAARA, segundo o presidente da
sociedade, Ênio Bittencourt , cerca de 10% pertencem hoje a chineses . Há
também alguns coreanos. " Eles tem
atacadões que vendem tudo,
principalmente na Rua Gonçalves Ledo ,
entre a Buenos Aires e a Luís de Camões " .
Os chineses
Julia ( Ju Li ) e Chong optaram pelo varejo. Julia é a dona da bem decorada Bella Casa, na Rua da Alfândega. As utilidades para o
lar com novidades e produtos da China que enchem os olhos de quem entra na
loja . Julia veio para o Rio, fez faculdade de economia, mas a atração
que exerce o dia na loja foi maior, e
ela aplica tudo o que aprendeu dirigindo sua própria loja.
Encontramos
Chong na sua loja Xin Xin Presentes, na
rua Senhor dos Passos. Aqui
,praticamente tudo é Made in China.
Roupas , acessórios , cintos , bolsas ,
objetos - lindos ! - de decoração , além de um painel com uma infinidade
de chaveirinhos da sorte, todo tipo de miudezas e curiosidades
pode-se encontrar na Xin Xin.
Chong
comprou o ponto de um árabe, e
transformou em sucursal da China. Ele é
oriundo da província de Zheijing, e veio para o Rio há 19 anos, trazido por um tio que já trabalhava no
comércio no Brasil. Ele tem 39, e está aqui neste endereço há 3 anos. Veio em busca de uma vida melhor, quando a China passava por
dificuldades. Agora, está adaptado, tem 3 filhos brasileiros, fala uma língua já bem parecida com o
português. "Agora a China está
melhor, mas já perdi contato lá "
, diz . Por algum motivo não declarado.
Chong preferiu não tirar fotos.
Todas essas
histórias de gente humilde e trabalhadora que encontrou liberdade e dignidade
nesse pedacinho do centro do Rio de Janeiro estão contadas em detalhes no livro
História da SAARA, de Henrique
Nigri. Elas também são contadas
mensalmente na revista SAARA. Informa,
de Demétrio Habib e sua esposa Maria Emília. E diariamente nas lojas e ruas desta região que já é um patrimônio
carioca.
O Mascate: símbolo de uma tradição
Sua estátua
fica na Rua Buenos Aires com Regente Feijó. Com a navegação européia em seu climax, no início do século, sírios e libaneses tiveram oportunidade de
comprar passagens baratas e com isso viajar
. No Rio de Janeiro , iam direto
para o Hotel Boueri , na Praça da República.
Após uma
semana de adaptação, eram orientados
por parentes ou conhecidos que já estava aqui, para que procurassem um bom marceneiro que lhes fabricasse uma mala
gigante, verdadeiro armarinho
ambulante. As caixas, de dois metros de altura por 1,20 m de
largura , eram sustentadas por duas
tiras fortes de couro , que o " mascate " colocava nos ombros .
Um bom
mascate andava a pé de 8 a 10 quilômetros
por dia , percorrendo vários
bairros. Nos baús, havia de tudo: rendas , laise , tecidos importados , perfumes ,
jóias , chapéus, luvas,
calçados etc. A cada três metros, o mascate tocava a sua matraca anunciando a
visita. Já naquela época havia o
pagamento parcelado, tendo como garantia do crédito apenas a palavra empenhada.
Muitas
fortunas tiveram sua origem nessas caixas, que hoje são o orgulho de velhos sírios e libaneses. Muitos hoje vivendo em palacetes, guardam suas velhas caixas e a elas
agradecem o apto diário de suas fábricas e as filas de clientes em suas
lojas .
Fonte -
Revista SAARA
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