Com 'Leonardo – O Primeiro Cientista‘, o britânico
Michael White procura redimensionar o talento científico do
autor de ‘Mona Lisa‘, no momento em que se comemoram
550 anos de seu nascimento.
O
enigmático sorriso da Mona Lisa ainda é o principal atalho para se
chegar ao nome de Leonardo da Vinci, pintor e escultor que
personificou como poucos o termo “homem renascentista “ ao
reunir habilidades raras em diversas artes e ofícios. “Mas o
que o tornou artista único foi ter trabalhado em áreas distintas do
conhecimento, unificando-as com um talento que podia se expressar
de modo igual como artista, experimentador, engenheiro e
projetista“, afirma o britânico Michael White, autor de
Leonardo – O primeiro Cientista (Record, 364 páginas, R$ 38),
livro lançado justamente quando se completam 550
anos do nascimento e Leonardo da Vinci ( 1452-1519 ) .
Com
a obra, White busca recuperar a importância dos excepcionais
talentos científicos do italiano, que ficaram em segundo plano por
conta de sua notabilidade artística. O principal motivo do
esquecimento foi exatamente o desaparecimento de boa parte de seus
manuscritos – segundo ele, estima-se que, das 13 mil páginas
originais deixadas por Leonardo conhece-se hoje o paradeiro de pouco mais que a
metade, cerca de 7 mil.
Leonardo
fez importantes descobertas em seus estudos de ótica, mecânica,
astronomia, anatomia e geologia: criou um tipo de plástico,
desenvolveu um predecessor sofisticado para a máquina fotográfica (
a câmera escura ), escreveu sobre lentes de contato e a força
motriz do vapor, explicou os motivos de o céu ser azul e
desenvolveu técnicas visuais para a representação do corpo que só
seriam realmente visíveis no futuro distante, a partir da
tomografia computadorizada.
“Enquanto
as pessoas em sua época confinavam-se em determinada área,
Leonardo exibia um grande dom para diversas disciplinas,
acreditando que o mais sábio era acumular conhecimento“, explica
White em entrevista, por e-mail, ao Estado, de Perth, na
Austrália, onde mora. Tal interesse moldava sua rotina na qual,
ao buscar as grandes questões universais, unia arte e ciência.
O
escritor destaca que, com o conhecimento de anatomia, Leonardo
soube representar melhor as figuras humanas e animais. Ele utilizou
também sua compreensão de ótica para melhorar o emprego da sombra, contraste e perspectiva, além de se basear em seus estudos como
geógrafo e geólogo para conferir exatidão e realismo às suas
paisagens.
O
interesse por Leonardo da Vinci surgiu quando White fazia pesquisas
sobre a vida do físico Isaac Newton, que resultaram no livro O
Último Feiticeiro, também editado pela Record. “Durante o
trabalho, notei que havia um farto material sobre os trabalhos
científicos de Leonardo, que ficaram perdidos durante 200 anos e
só foram redescobertos na época de Newton, no século 17“.
White
impressionou-se com o espírito irriquieto do italiano, um homem ao
mesmo tempo inquiridor e desconfiado. “Como pintar era uma
atividade que realizava com relativa facilidade, ele investigou outras áreas do
intelecto, especialmente as científicas, e não media esforços
para comprovar sua tese“. Uma de suas mais curiosas persistências
eram as sessões de dissecação de cadáveres, com a qual Leonardo
buscava desvendar a precisão anatômica. Era uma
prática suja, noturna, socialmente marginal – mesmo assim, ele
confessou em seus escritos ter dissecado mais de dez corpos.
Em
seu livro, White declara que Leonardo era fascinado pelo
funcionamento do olho e de sua interação com o cérebro para
produzir a visão. “Ele foi, provavelmente, o primeiro
anatomista da história a observar como os nervos óticos saem da
parte posterior do olho e fazem conexão com o cérebro“,
escreveu. Leonardo também realizou muitas dissecações de crânios
de animais, interessando-se especialmente pelos cérebros de bois, buscando pistas sobre o funcionamento do sistema nervoso.
Anatomia
– Não satisfeito, ele gastou ainda um tempo considerável
estudando o sistema reprodutivo tanto do homem como da mulher,
desenhando diagramas precisos que mostram a função dos ovários,
além de produzir extensas descrições de como sêmen é produzido. “Além de suas belas pinturas, o principal legado de Leonardo é
a coleção de desenhos anatômicas, dos quais nos restaram hoje cerca de
1.500“, comenta White, lembrando ainda das esplêndidas,
representações do coração, fígado, rim, baço e estômago,
além da descrição precisa dos sistemas endócrino e circulatório.
A
paixão pelo funcionamento do corpo humano contrastava com a forma
pouco lisonjeira com que Leonardo tratava pessoas – se considerava
o organismo do homem como a máxima criação divina, também
exibia uma mínima compaixão pela sociedade, que considerava
formada por “enchedores de latrinas“. White levanta uma série
de hipóteses sobre esse rancor, a partir da origem de Leonardo.
Apesar
de amado pelo avô Antônio, que se preocupou em anotar em um
caderno os dados exatos sobre seu nascimento ( às 22h30 de um sábado, 15 de abril de 1452 ), ele era filho ilegítimo, fruto de um
relacionamento de seu pai com uma camponesa. Na época, a
ilegitimidade era condenada com o ostracismo, o que teve um forte
impacto sobre seus sentimentos. White destaca ainda, a partir das
anotações existentes, que Leonardo era vegetariano, pacifista e
homossexual.
A
infância passada no campo, porém, a despeito do isolamento,
trouxe influências positivas, como o contato com a natureza, com
a qual desenvolveu sua percepção para o vento, o solo e a luz
solar. Leonardo – que nasceu em Anchiano, aldeia vizinha da
cidade de Vinci - era também obcecado pela água e seus efeitos, a
ponto de, já adulto, escrever o Livro das Chuvas, em que faz um
estudo minucioso da erosão e da forma como as nuvens são formadas.
O interesse pela água ajudou-o também em pesquisas geológicas,
em que concluiu acertadamente que muitas criaturas fossilizadas
tinham sido expostas pelo rebaixamento dos oceanos.
Da
atenta observação dos pássaros, Leonardo desenvolveu teorias
sobre o voo humano, projetando inclusive uma figura que foi chamada
de “parafuso aéreo“ ou “helicóptero de Leonardo“: uma
estrutura com uma espiral de tecido acima dela, que gira para criar
o empuxo vertical. “Os princípios aerodinâmicos são bem fundados“, declara White, lembrando ainda que o italiano
desenhou projetos de paraquedas e sistemas de segurança para o uso
em sua máquina voadora.
O
escritor conclui que as investigações de Leonardo claramente
reforçaram suas habilidades como artista. A partir das pesquisas
anatômicas, por exemplo, ele chegou a formular regras sobre a
melhor maneira de desenhar e pintar seres humanos em diferentes
posturas, acreditando que o artista necessita compreender os
músculos do rosto e a forma como estes se relacionam com as inúmeras
expressões produzidas pelos homens.
White
é firme em apresentar Leonardo da Vinci como um cientista, apesar
das contestações vindas do meio intelectual - argumenta-se, por
exemplo, que o italiano detinha poucos conhecimentos matemáticos,
apesar de utilizar conceitos como ângulos, raios e proporção. O
escritor rebate dizendo que Leonardo compensava com seu gênio como
artista.
"As acusações vêm desde os tempos vitorianos, quando Leonardo não
era entendido nem como artista", diz. "Como não era um
cientista 'convencional', ele foi ridicularizado e essa atitude infelizmente persiste em
algumas pessoas. White prega uma interpretação mais ampla do
significado da palavra "ciência" para justificar sua
classificação. "Para mim, ciência é exploração,
questionamento, aplicação da imaginação, análise. E assim,
sem dúvida, Leonardo foi um praticamente da ciência , porque
satisfaz a todos esses critérios".
TRECHO
Durante
35 anos de investigação científica, Leonardo aprendeu mais sobre
ciência e seu emprego para ele como artista que qualquer pessoa da
sua época. Grande parte disso encontrou aplicação em pinturas e
desenhos de maneiras sutis. Ele certamente não fazia alarde de seu
conhecimento e nunca atraiu o foco de sua arte para longe de sua
representação. Nunca perdeu de vista o fato de que a ciência
estava lá para ajudá-lo como artista, e não para permitir que
ela sobrepujasse o espírito ou a substância de seu trabalho. "Amor a qualquer coisa é o produto do conhecimento" observou
ele, "o amor sendo mais fervente em proporção enquanto o
conhecimento é mais certo, e isto sem dúvida nasce de um
conhecimento integral de todas as partes que compõem o todo".
As
pesquisas de Leonardo, o cientista, trabalhando dentro dos campos
da ótica, anatomia, geologia e hidrologia, ajudaram Leonardo, o artista; mas outros que o sucederam também ganharam insigths
com o seu trabalho. O Tratado della Pintura é há muito um texto
padrão para todos os jovens artistas. Em seus últimos quadros,
Rembrandt demonstrou como ele havia ganhado muito das ideias de
Leonardo sobre a luz e a sombra, e o impressionismo foi estruturado
alterando-se a importância relativa sobre a tela das partes que
recebem mais luz, as que recebem menos luz e os reflexos difusos.
Fonte
- Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO - CULTURA pág D 14
Domingo
, 14 de abril de 2002 - (caderno 2 ) Estudo UBIRATAN
BRASIL
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