O som que vem do Beco
Colunista convidado
“ O Beco das Garrafas era o Bottle’s Club , o Little Club e Baccarat . Nos dias mais cheios , as pessoas sentavam pelo chão para ouvir o som da rapaziada . Eram todos jovens .”
‘Uma noite dessas , ouvindo um solo de Paulo Moura , viajei pelos momentos mais inspirados da música brasileira . Se você vier comigo, vamos passear por Pixinguinha , Villa Lobos , Garoto , vamos virar uma esquina e esbarrar em Tom , Baden, Moacir Santos , vamos em busca da felicidade pelos bares de Copacabana até a noite baixar todas as portas, apagar todas luzes , fechar todas as cortinas e deixar os homens sérios dormindo em casa, enquanto as mulheres alegres saem para a rua. Vamos esperar bater
a meia-noite, até que não haja vivalma em nenhuma esquina . Aí sim, vamos penetrar nos porões onde a vida explode sem medo e nos perder na fumaça dos cigarros,nos em-bebedar no perfume do do uísque , nos afogar nas taças de champanhe.
O solo de Paulo Moura me leva para o início da década de 60, quando, ainda bem menino, ficava ouvindo a conversa dos tios e tias. Mas tinha um assunto que sempre me atraía . Se vocês me derem licença , vou tentar lembrar .Naquela época ,só existia uma farmácia Santa Joana . Ficava na Miguel Lemos com Avenida de Nossa Senhora de Copacabana, esquina barra-pesada, semente da juventude transviada .A Santa Joana era de um primo de minha mãe . E o gerente da noite era um dos meus tios . Personagem inesquecível. Ele contava da amizade com músicos maravilhosos ,seus fregueses na madrugada,que improvisavam como ninguém e,trocando o dia pela noite,tocavam até o sol raiar .
Esses músicos passaram a fazer parte da minha vida. Eu comprava LPs e ficava enlou-quecido com aqueles improvisos espetaculares . Não perdia um show de qualquer um deles nos teatros ,bares e clubes da cidade . Eram trios, quartetosquintetos,solistas.
O mais impressionante é que cada um tinha o seu estilo e eles se tornaram tão impor- tantes quanto os músicos americanos de jazz, com discos lançados e músicas de rádio .
E hoje, com uma frase meio blues , meio Norte da África. Paulo Moura nos conduz mais uma vez à turma que se reunia pra tocar no Beco das Garrafas, na altura do Posto 2 , ali na Rua Duvivier . O Beco das Garrafas era o Bottle’s Club , o Little Club e o Bacacarat . Os três eram mínimos , muito pequenos mesmo. Nos dias mais, as pessoas sentavam pelo chão para ouvir o som da rapaziada. Eram todos jovens. Estavam tocando exa-tamente o que queriam tocar.Novas harmonias, novas melodias , divisões inusitadas, batidas dife -rentes .Experiências que começavam a formar os fundamentos da bossa-nova . Eles eram brancos, negros, Zona Sul , suburbanos , paulistas e acreanos , fazendo o caldeirão ferver. Cada um botando uma pitadinha da sua cultura pra engrossar o caldo.
O solo de Paulo Moura está me dizenbdo que o poder da arte também está na cabeça dos espectador. É ali que se processa o mistério. A generosidade dos solistas impro-visando melodias que nunca mais serão ouvidas precisa de testemunhas que se emo-cionem e digam para o músico : " Você tnão está maluco . Eu estou aqui , eu estou te ouvindo ".
Volota à minha lembrança o som do Beco ,todos aqueles músicos , a farmácia noite
e dia . E me pergunto : esses caras trocaram o sol da bossa-nova pela luz enfumaçada de um beco. Por quê ?
Fonte REVISTA O GLOBO - 30 de agosto de 2009
Bernardo Vilhena é compositor de hits como " Menina veneno " e diretor do Copa fest , no Copacabana Palace , em homenagem ao Beco das Garrafas
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