Quando D. João VI chegou ao Rio, em 1808, espantou-se ao ouvir a música de um compositor negro brasileiro, José Maurício Nunes Garcia, afirmando que não imaginava encontrar um músico desses em uma "simples dependência de Portugal". Nascido na Rua da Vala - hoje Uruguaiana - José Maurício em criança ouvia ao longe o jongo o vissungo cantados pelos negros, vendidos ali no mercado de escravos do Valongo. Ele próprio neto de escravos, não se voltou para a sua cultura de origem, mas seguiu um dos caminhos possíveis naquela época para alguém de sua condição social receber uma educação formal: ordenar-se padre. Sua música era sacra, criada para as cerimônias religiosas. D.João admirou o compositor brasileiro desde o início , o que não impediu que José Maurício passasse por todo o tipo de constrangimentos entre os músicos, os empregados do palácio e os membros do Senado. "Como pode um músico com defeito físico visível ser mestre da Real Capela ? " , vociferavam os intolerantes, referindo-se à sua cor.
José Maurício , apesar de tudo , se impôs , e sua música quase mozartiana foi dando vida às cerimônias religiosas. Sua música e a de outros compositores era ouvida tanto nas igrejas quanto nos salões da Corte , e ainda na ópera , no recém-criado Real Teatro de São João , hoje transformado no João Caetano. A música celestial que vinha das igrejas, inspirada em cânones europeus, era na verdade escrita muitas vezes executada por negros, cujos ancestrais trouxeram variados ritmos da África . Do lado de fora , outros negros cantavam e dançavam a umbigada e o jongo , que posteriormente foram dar origem ao samba. Outra dança de origem africana contagiava o povo: negros e mulatos , ao lado de muitos brancos , cultivavam o lundu, que de uma dança de terreiro irou uma canção.
Descrita como uma música que tinha o poder de enfeitiçar o ouvinte , a modinha era repleta de suspiros de amor , expressando conquistas realizadas ou desejos jamais concretizados . Já o lundu , mais ritmado e com palavras satíricas e maliciosas, considerado indecente pelos europeus, podia também cantar ao amor, mas muitas vezes servia à crítica - da bagunça que era o entorno da Sé Velha, onde tudo se vendia, à criminalidade que era bastante grave nas ruas cariocas de então.
De lá pra cá muita coisa mudou. A modinha , que antes era considerada ousada , hoje soa singela , inocente . Ainda assim , a simplicidade de suas melodias sentimentais , de grande força expressiva , continuou cativando , fazendo com que o gênero fosse cultivado no século XX por Villa-Lobos e outros compositores da música de concerto, e também por medalhões da música popular brasileira , como Chico Buarque , Tom Jobim e Dorival Caymmi . Quanto ao lundu , atualmente ele nos soa apenas ritmado, gostoso de ouvir, mas sem a conotação lasciva, daquela época. E a música de José Maurício , que já foi tão presente no Rio de Janeiro , parece hoje estar condenada a um meio-esquecimento.
Possivelmente , hoje em dia o funk ocupa o lugar da música ousada , com forte apelo erótico, para não dizer pornográfico, carregando com cores mais intensas o espaço outrora pela modinha e pelo lundu . Mas nem todos os aspectos dessas hoje singelas canções ficou ultrapassado . Ao falar da violência nas ruas , da desordem urbana e do dinheiro acima de tudo, será que estavam descrevendo e criticando o nosso cotidiano , 200 anos depois ?
Revista O GLOBO - pág 40 - Colunista convidado
12 de abril de 2006 - MARCELO FAGERLANDE - é cravista e professor
UFRJ
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