Pesquisadores mapeiam o renovado carnaval de rua carioca e sua afirmação através da mídia
Embalado pelo hino Água na boca , de Agildo Mendes , o Cacique de Ramos tomou a avenida Rio Branco , com 2 a 3 mil integrantes fantasiados de índio. O então líder da folia carioca , Bafo da Onça , do Catumbi , subiu a calçada e abriu passagem. Ali, no verão de 1963, nascia um fenômeno que revitalizaria o carnaval brasileiro, formaria gerações de músicos e ajudaria a levar o samba a uma inédita lua de mel com a indústria da cultura.
Essa e outras histórias de um dos mais populares blocos carnavalescos do Rio são contadas em Cacique de Ramos: uma história que deu samba, do antropólogo Carlos Alberto Messeder Pereira e Blocos: uma história informal do carnaval de rua, do jornalista João Pimentel .
O livro de Messeder Pereira é um mergulho nos subúrbios do Rio que revela as estratégias de afirmação de uma cena cultural , o flerte com a mídia e o mundo da política , a institucionalização e a sua constante renovação. Pena que o trabalho, iniciado em 1983, quando o autor foi chamado pela Fundação Nacional Pró- Memória para um levantamento de pontos culturais do Rio, tenha levado tanto tempo para ser lançado. Tudo bem. Hoje , o papel do Cacique de Ramos ganha em perspectiva histórica .
Seduzido pela descontração das rodas de samba na lendária quadra da Rua Uranos, Messeder Pereira fez uma ampla pesquisa etnográfica, de observação participante, mapeando desde a criação do bloco, nos idos de 1961, até a consolidação do rótulo “pagode“ via mídia. Para o pesquisador, um rico material: pelo Cacique de Ramos , transitaram artistas como Jorge Aragão , Almir Guineto , Beto Sem Braço , Arlindo Cruz , Dicró , Jovelina Pérola Negra e Zeca Pagodinho, sem falar nas madrinhas, Elza Soares e Beth Carvalho , e na extensão fonográfica do bloco , o grupo Fundo de Quintal.
Messeder Pereira faz curiosa genealogia do Cacique, amparado por dezenas de entrevistas com artistas e integrantes do bloco. Desde seu batismo , devido à profusão de nomes indígenas entre os fundadores – Ubiraci , Ubirany , Ubirajara , Aimoré , entre outros -, até o sincretismo de suas batucadas , herdeiras de terreiros de umbanda e candomblé, o Cacique se mostra francamente original e antropofágico, trocando arlequins e colombinas europeizados por índios ( mesmo estilizados ) .
“Quem eram e quem são esses índios urbanos ? No discurso de seus dirigentes , a defesa dos povos indígenas do Brasil – explorados , oprimidos , expulsos de sua terra e lutando por sua sobrevivência física e cultural , reivindicando , como eles ( negros em sua maioria ) , seu território. Na fantasia e nas alegorias, o cruzamento entre a imagem do índio norte-americano ( o apache ) e a do maravilhosos selvagem coberto de plumas , desenhos e cores , veiculadas pela indústria cultural. Na tradição de muitos de seus membros e fundadores , o caboclo – personagem altivo, orgulhoso, indomável ,senhor das matas - , incorporação da figura do índio no universo religioso afro-brasileiro. É tudo isso que o Cacique de Ramos representa e a partir daí que se pode pensar sua enorme força de expansão. E mais: é desse entrecruzamento e da presença simultânea de todos esses elementos díspares mas eficazmente integrados que ele ganha uma riqueza marcadamente urbana e sedutora “, assinala Messeder Pereira .
O autor mostra o bloco nasce despretensioso e assim permanece , num momento em que as escolas de samba tinham se institucionalizado e o carnaval de rua se achava esvaziado. No caminho, aproveita para desmitificar o chamado samba de raiz, mostrando o hibridismo do ritmo de suas origens, no casamento entre a modinha portuguesa e o lundu.
Com a lacuna deixada por artistas exilados nos anos 70, o samba vai ganhar espaço na mídia. Nesse período , á consagrado e hors concours nos desfiles de blocos de embalo , o Cacique se torna uma usina de talentos. Em 1979 , Beth Carvalho estoura com Vou festejar , de três caciqueanos , Jorge Aragão , Neoci e Dida . Em 1980 , o artista plástico Vergara leva para a bienal de Veneza imagens captadas em dez anos de desfiles e as famosas fantasias de índio feitas de napa , caraterísticas do Cacique .
Essa invasão na mídia , alvo de reportagens de jornais de elite e revistas de grande circulação , levou a incursões da indústria , muitas vezes desastradas , ao mundo do samba. As rodas de samba , ou pagodes ( festas informais em torno de mesas de bar ou em casas de sambistas ) , em que músicos desfiavam seus partidos altos , viraram moda . Logo , a expressão pagode seria usada erroneamente para definir um novo tipo de samba, caracterizado pela introdução de instrumentos inusitados, como o banjo e o tantã, que vai substituir o barulhento surdo.
No início dos anos 80 , os pagodes proliferavam até em outras capitais. "O Cacique era, na verdade , o coração de uma enorme rede de pagodes e de pagodeiros , de casas de samba , enfim , um verdadeiro espaço cultural no sentido mais pleno da expressão. Por essa época , o pagode estava no auge da moda . Havia um sem-número de pagodes espalhados pelos subúrbios, chegando até a Zona Sul , os ecos na imprensa e no rádio eram grandes , a indústria do disco se interessava pelo assunto " , lembra Messeder Pereira . Índio queria apito . E estava apitando para valer na mídia .
Fonte - Jornal do Brasil - capa - Idéias & Livros
Sábado 01 de Março de 2003 . MARCELO KISCHINHEVSKY - Editor Assistente de Economia do JB e Doutourando em Comunicação e Cultura pela UFRJ
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe seu comentário sobre a postagem.