Final do festival da TV Record de 1967 rende mais do que 90 minutos
Filme de abertura da etapa paulista do É Tudo Verdade, o documentário "Uma noite em 67", de Renato Terra e Ricardo Calil, é uma das atrações na versão carioca do festival. Embarcando na onda dos documentários sobre música que proliferam na produção brasileira, com dois cineastas estreantes mergulham na noite de 21 de outubro de 1967 , que , segundo a tese do filme , marcou a música brasileira para sempre.
Aquela foi a noite da etapa final do III Festival da Música Popular Brasileira promovido pela TV Record , em São Paulo. Melhor festival da era dos festivais, o concurso da Record vinha de uma edição histórica. No ano anterior, o país havia se dividido entre " A banda " , de Chico Buarque , e " Disparada " , de Theo e Geraldo Vandré, o que aumentava a expectativa quanto ao festival de 67. O que seria apresentado daquela vez ? Haveria outro sucesso popular tão grande quanto " A banda " ? Haveria a revelação de um compositor tão consistente quanto Chico Buarque ? Haveria uma disputa tão acirrada quanto a de 1966 ? Outras emissoras de televisão organizavam seus festivais também: a Tv Excelsior, que foi pioneira com o festival de " Arrastão", em 65 ; a TV Rio, que lançara o Festival Internacional da Canção em 66; e a TV Tupi que lançaria o Festival Universitário , em 68 . Mas nenhuma fazia festival melhor que os da Record.
O motivo era simples. Para competir com as novelas... Bem, aqui é preciso ser feita uma correção . Em depoimento para o filme , Nelson Mota diz que , naquele tempo , as novelas de televisão ainda não existiam , e que a Record tinha o monopólio de audiência com seus musicais . Não era bem assim. Na verdade , a primeira novela diária da televisão brasileira - " 25499 Ocupado " , interpretada por Tarcísio Meira e Glória Menezes na Excelsior - é de 1963 . Em 1964 , a Tupi levou ao ar " O direito de nascer", um estouro de audiência . A própria Record vinha tentando produzir o gênero desde 1965 , quando exibiu " Renúncia " , com Francisco Cuoco e Irina Grecco . Excelsior e Tupi já dominavam a audiência com os capítulos diários de suas produções, e a Record, depois de ter fracassado com a experiência, resolveu competir com as novelas apresentando algo diferente , os shows musicais. " O fino da bossa " , " Jovem Guarda " e " Bossaudade " estrearam em 1965 . Como deram certo, a estação acabou criando uma linha de shows musicais com uma atração diferente por dia. Voltando ao começo do parágrafo: para competir com as novelas, a Record contratou com exclusividade o maior elenco de cantores e compositores que uma estação já teve em toda a História da TV no país. Quando criou seu próprio festival para combater a Excelsior , de 1966 , a Record sabia que, com seu elenco exclusivo, não ia ter para mais ninguém. Ela podia perder nas novelas , mas ganhava de goleada nos musicais.
O filme se limita a contar o que aconteceu na noite final . Mas o festival durava o mês inteiro - a cada sábado era apresentado um programa ; eram 36 canções concorrentes ; em cada uma das três eliminatórias , eram mostradas 12 músicas ( quatro selecionadas para final ) . Mas nem as 12 finalistas aparecem no filme. Ele se limita a discutir as cinco primeiras colocadas ( " Ponteio " , de Edu Lobo e Capinam ; " Domingo no parque " , de Gilberto Gil ; " Roda viva " ; de Chico Buarque ; " Alegria alegria " , de Caetano Veloso ; e " Maria , carnaval e cinzas " , de Luiz Carlos Paraná e a grande vedete da noite ," Beto bom de bola " , eliminada porque seu cantor e compositor , Sérgio Ricardo , acuado pela do público, interrompeu a apresentação quebrando seu violão e jogando-o na pateia .
Ao optar por este recorte no que já era um recorte - apenas uma noite num festival de quatro noites - . " Uma noite em 67 " limita o seu campo de ação. Aquele foi o festival em que " Eu e a brisa " , a obra-prima de Johnny Alf , foi eliminada . Foi ainda o festival que lançou Gal Costa ( até então , uma desconhecida Maria da Graça ) , cantando " Dadá - Maria " , de Renato Teixeira . Foi também o festival que apresentou uma rara Nana Caymmi compositora ( " Bom dia " ) . Foi o festival que lançou Martinho da Vila ( " Menina- moça "). Foi , enfim , o festival que marcou de vez a era dos compositores-cantores. Depois do sucesso de Chico Buarque no ano anterior , Edu Lobo , Gil , Caetano , Sidney Miller , Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo nem pensaram em outros intérpretes para " defender " suas músicas . Nunca antes na História dos festivais tantos compositores cantaram suas próprias composições.
O filme investe em outro evento marcante - certamente o mais importante mesmo - daquele festival: o nascimento do Tropicalismo. Foram as roupas estranhas de Caetano e Gil , o acompanhamento de guitarras , os arranjos ousados que fizeram de " Alegria alegria " e " Domingo no parque " as grandes atrações daquela final e o assunto dominante de " Uma noite em 67 " .
O filme ignora " Gabriela " , de Maranhão, uma das favoritas para ganhar e que acabou em sexto lugar . Volta e meia , Elis Regina e Nara Leão aparecem nas imagens de arquivo da Record, embora o documentário nunca conte o que elas estavam fazendo ali. Elis defendia: "O Cantador" de Dori Caymmi e Nelson Motta ( em seu depoimento , Mota conta que tinha uma música em competição, mas nem assim o filme se preocupa em dizer qual era) que lhe deu o prêmio de melhor intérprete. Nara era a cointérprete de " A estrada e o violeiro " , de Sidney Miller, que acabou ficando com o prêmio de melhor letra.
Entre os acertos de " Uma noite de 67 " está a opção por mostrar na íntegra cenas de arquivo - com ótima qualidade de som e imagem - das quais a TV costuma exibir apenas trechos. São deliciosas as entrevistas de bastidores por Randal Juliano ( fumando sem parar e chamando Caetano Veloso ) e Cidinha Campos ( querendo saber de Marília Medalha se ela estava usando cílios postiços ) , embora tudo isso esteja disponível no "you Tube . Talvez o problema de " Uma noite em 67 " seja o de que foi uma noite tão rica que não cabe num filme só .
Jornal - O GLOBO - Segundo Caderno pág 10
Quarta-feira , 14 de abril de 2010 - ARTUR XEXÉO
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