Não pode ficar sem registro a comemoração dos 40 anos de vida artística de Ruth de Souza , comemorados em exposição de fotos na bela loja Modern Times em Ipanema . Quarenta anos de continuada vida artística em país de enorme vazio cultural como o Brasil , são em si , marco relevante ; maximé se de atriz negra num cinema, teatro e televisão em esmagadora maioria filhos da cultura e da estética brancas , seguindo o modelo da sociedade global .
Ruth de Souza não é apenas uma atriz negra batalhadora . É uma grande atriz , matéria bem mais complexa . Consegue condensar no tipo físico , maneira de ser em cena , falar , olhar , portar-se ,as densidades e dores dos oprimidos . Se na órbita pessoal é tímida , discreta , ser de nenhuma bulha , em cena alardeia os megatons de eletricidade , magnetismo e comoção inexplicáveis , matéria secreta d’alma e sensibilidade inerente a todo grande criador .
O artista de alta qualidade possui o dom misterioso ( carisma ) de chegar aos demais sem qualquer explicação mas , também , depois , de todas as explicações . Não é necessário saber por que Picasso é grande . Basta ver-lhe um quadro . É imediato . Mas se depois de todas as análises o espectador desejar , também encontrará o artista maior . Não há explicações para os primeiros acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven . Basta ouvi-los . É a certeza de estar diante de um monumento, se quisermos explicações musicais a posterior também as haverá .
Ruth de Souza possui essa marca divinatória , o carisma . É imediata mas resiste aos embates da mediatez . Diante de seu rosto sabemos estar perante as pulsações pungentes e pingentes do drama de viver. Nele se escondem emoções da sensualidade guardada , das discriminações de todo jaez , dos gritos dos oprimidos . O rosto é expressionista e doloroso : consegue , porém , as iluminações da comédia , embora vocacionado para o sofrimento .
A voz contrasta com o rosto intenso. É de melopéias; é suave , possui timbre de pessoa equilibrada e doçuras de carícia . Voz para palavras de consolação, traz calmas ancestrais , de quem sofreu antes; traduz não o conformismo porém a compreensão . O
corpo de Ruth de Souza em cena sempre foi coadjuvante do tipo criado . Desde o corpo sensual da jovem negra e linda do filme Sinhá Moça ( 1951) até o corpo cansado da mulher do povo , abrigo de suas dores da formidável Carolina de Jesus por ela criada em TV ( 1983 ) .
Tudo , portanto , em Ruth de Souza conspira para a trama da arte dramática . Não lhe faltam os elementos naturais aos quais a atriz empresta como contribuições suas , ao carisma dos elementos a consciência profissional e o nível cultural .
Ruth de Souza há 40 anos é respeitada como atriz de enormes recursos e neste país de muita badalação mas pouca repercussão adequada , é dos atores brasileiros que mais firmaram no exterior a convite . Sua carreira vive idênticas dificuldades , à de inúmeros grandes atores de países periféricos : atingem cedo um nível de qualificação que não encontra eco ( encontra oco...) nem trabalhos compatíveis dentro do país, fadando-se a escolher entre os serviços menos ruins . Nada obstante a dificuldade , Ruth continua representando a mulher brasileira em suas mil configurações de sofrimento e dependências . Cada trabalho seu possui seriedade , elaboração e aprofundamento .
A televisão registra alguns desempenhos inesquecíveis de Ruth de Souza . Seria interessante que as críticas de cinema e a de teatro igualmente apontassem a sua contribuição , nos últimos 40 anos . É farta . É nobre .
A primeira telenovela da Rede Globo . " Passo dos Ventos " contou com a sua participação . Depois , ao que me recordo apareceu forte em " A Cabana do Pai Tomás " , adaptação de Hedy Maria Belíssimo desempenho teve em " O Grito" , de Jorge Andrade , das maiores telenovelas até hoje encenadas .
Em " O Bem Amado " apareceu como a sofrida mulher do pescador Zelão das Asas ( Milton Gonçalves ) personagem paupérrimo cujo sonho era voar , alegoria do desejo de ascensão e subida do povo sofrido e triste do Brasil . A mulher do Zelão das Asas ( personagem que só existiu na novela , não vindo , depois , para a série que encantou o Brasil ) , era o ser crente e suave que recolhia os sonhos do marido , sabia de sua ingenuidade e fingia aceitá-la por saber , de vivência e bondade , que sonho não se destrói , sobretudo quando é o que resta para alguém . A encarnação dramática de tal desiderato emotivo exige atriz de porte e densidade .
Em televisão Ruth fez ainda : " Sétimo Sentido " e " Duas Vidas " , de Janete Clair ; " Olhai os Lírios do Campo " ( adaptação de Geraldo Vietri da obra homônima de Érico Veríssimo e recentemente " Corpo a Corpo " de Gilberto Braga ) .
Seu trabalho talvez mais importante , porém , deu-se em horário de pouco prestígio cultural , o das cinco e meia da tarde , na série Caso Verdade , num dos melhores episódios feitos até hoje . Ruth de Souza encarnou a saga de uma curiosa mulher do povo e das letras , morta na pobreza e anonimato há alguns anos . Carolina de Jesus , vitoriosa autora de " Quarto de Despejo " e outros livros .Trabalho maior , glorificador , intenso , para qual chamo a atenção da própria Rede Globo que, bem poderia exibi-lo como Especial , série de cinco episódios , às dez da noite , como homenagem à grande atriz de seu elenco e no lugar de algum enlatado . Garanto , daqui , ser bem melhor e dar mais audiências que as séries como aquela recente , contando histórias de Hollywood .
A Ruth de Souza , atriz de importância proporcional ao seu silêncio e discrição , o abraço comovido do fã e cronista encarregado deste canto de jornal .
1. Filme Sinhá Moça , 1953 ,
Vera Cruz , Direção : Tom Payne
2. Com Sérgio Cardoso , em A Cabana de Pai Tomás , Novela de Hedy Maia , 1969
3. Com Jânio Quadros
Foto de Alexandre Cavalcanti , sem data
4. O Cabeleira 1962, Filme de Hélio Souto
5. Ao lado do Reginaldo Faria e o menino Antonio Carlos Pereira ,
Assalto ao Trem Pagador , 1962
Direção : Roberto Farias
6. Ravina , filme da Vera Cruz , 1958
Direção de Rubem Biáfora
7. Foto de divulgação ,
Mário Franco , MM Estúdio
Fonte - Revista Jornal das Exposições - págs 20 a 22
MAIO DE 2005- Artur da Távola
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