No final de 1885, no subsolo de um café, em Paris 35 pessoas, deslumbradas, apreciam uma série de imagens em movimento de extremo realismo. Os programadores daquela sessão, os irmãos Lumiére, jamais poderiam antever o afluxo de multidões ao café e a transformação da invenção em arte, Mélliès , em que se vê , em estado latente , o feérico e o fantástico, a visão mágica do universo e os processos técnicos do Cinema , com sua ficção surrealista, revelará o fascínio da sétima arte. Arte que , segundo o escritor italiano Ricciotto Canudo, consistia em sugerir emoções e não relatar fatos. (No escurinho do cinema, o espectador sonha, devaneia).
Aqueles primeiros cinéfilos, no entanto, lidavam como o real, já que via documentários. O que explicaria esse encantamento, o interesse, inusitado, pelo cotidiano daquele espectadores ? O que atraía multidões não era a saída dos operários fábrica, a chegada do tem à gare, mas a imagem do real ; por mais prosaico que fosse. O Cinema consegue revelar “ a beleza secreta , a beleza ideal dos movimentos e ritos do cotidiano”.
Se a imagem fotográfica é concreta, palpável, a cinematográfica não é. No entanto, a presença de stars/figuras que, ilusoriamente , se movem , é o que nos atrai .
“ Cinema é sonho “ ,diria Michel Dard. “O filme (…) ascende ( …) a um céu de sonho, infinito das estrelas, povoado por adoráveis e demoníacas presenças, que assim se escapa daquela terra-a-terra do qual, segundo todas as aparências, deveria ser o servo e o espelho“. A técnica e o sonho – no caso do cinema – andam, de nascença, a par. Em nenhum momento de sua gênese e do seu desenvolvimento pode-se confinar o cinematográfico ao campo exclusivo do sonho ou da ciência“.
O cinema , quando surge , é elogiado "em função de sua filiação técnica e industrial, bem como pela sua sintonia com as novas condições da experiência sensorial, testemunhada pelo dinamismo de sua imagem. É uma arte moderna, sem vínculos com o passado:
Alguns estetas, de atrasada percepção, desdenham do cinematográfico. Esses estetas são, quase sempre, velhos críticos anquilosados cuja vida se passou a notar defeitos nos que sabem agir e viver. Nenhum desses homens, graves cidadãos, compreende a superioridade do aliviante progresso da arte. O cinematógrafo é bem moderno e bem de agora.
Segundo Ismael Xavier,
A nova arte das imagens, fruto de uma nova técnica, (...) assumiria uma posição de extrema importância, pois em nenhum lugar estaria melhor concretizado o ideal de um presente sem memória, que olha exclusivamente para o futuro.
Se é a mais importante, não é essa a única justificativa / preocupação para se fecharem cinemas. A exibição de fitas imorais suscita outra denúncia, formulada pelo diretor de Estatística e Arquivo ao de Obras e Viação:
Levo ao vosso conhecimento que o Sr Prefeito recomendou que nenhuma licença de cinematógrafo público seja concedida ou renovada sem que o interessado requeira e assine um termo, nesta diretoria, no qual se comprometa a não exibir fitas imorais, sob pena de lhe ser cassada a respectiva licença pela Agência da Prefeitura, sem direito à restituição do imposto e do depósito (...).
Um cinema não é aberto - o Rio Negro - que ficaria na rua Visconde do Rio Branco, 40-42 , em 1910. Os empresários chegam a encomendar o mobiliário, ornamentos e tapeçaria e equipamentos: à Fundição Americana, grades de balaústres de metal, cancela para fechar a entrada que daria acesso ao recinto destinado ao canto, uma grade de ferro batido com anoetes, para fechar o recinto do aparelho da orquestra, um guichê de metal polido e pés de ferro para os fauteulis de 1ª classe. À casa Auler, uma jardineira grande com espelho bisauté , sofás estofados, assentos de palha, aparelhos para imitação de ruídos, canuds para os cantores, lavatório, chaise-longue, espelho grande e cadeiras estofadas para a toilette das senhoras. Os tapetes são encomendados a Vidal, Baptista & Cia .
Mas enquanto a Avenida resite, chegando a programar o Kinemacolor, o Rio Negro, que seria uma das mais requintadas salas de cinema da capital , fica no papel .
FOOTING MÚSICA E CINEMA NA AVENIDA CENTRAL
Em pleno boom das cantantes, numa fase áurea do cinema brasileiro, a avenida Central
(Rio Branco), com seus cinemas, é o palco do footing da sociedade burguesa fluminense . Um cronista observa o fenômeno, em 1912:
Dá-se na avenida Rio Branco uma anomalia interessante: a preferência por uma das suas calçadas. Enquanto na do lado em que estão os cinemas, o trânsito é diminuto e fácil, na do lado oposto, mal se pode andar. Poder-se-ia alegar o fato de ser uma sombra e outra de sol. Mas à noite e em dias de festas?
À noite, dos cinemas só tem gente à porta desses estabelecimentos, ao passo que na outra o movimento é sempre constante. Ainda mais, a população modesta, a gente descalça e mal vestida, procura sempre o lado dos cinemas; a parte elegante e chic, só vai pelo outro lado e quando se dirige ao oposto é para ir... aos cinemas.
Na esquina com a rua Sete de Setembro fica o cinema Odeon, aberto em agosto de 1909.
À esquina da rua Sete de setembro ficava o Cinema Odeon onde à noite, moças estrangeiras vestidas de branco tocavam violino. No Pavilhão Internacional , de Pascoal Segreto , defronte da Galeria Cruzeiro, às sessões de Animatógrafo, às primeiras horas da noite, sucediam as exibições de filmes obscenos, iguais aos que mostravam em bordeis em Paris, de um realismo torpe. A sala enchia-se de deputados, senadores, comerciantes, dos homens mais sérios e de mulheres da vida...
O cinema é o delírio atual
Cinematógrafos... É o delírio atual. Toda a cidade quer ver os cinematógrafos. O carioca é bem o homem das manias, o bicho insaciável e logo saciado das terras novas. Toma um prazer ou um divertimento e exagera-o, esgota-o, aborrece-o e
abandona-o. Um empresário hábil que conhecesse as variações do público ganharia aqui em poucos anos uma fortuna de Creso. O carioca é variável como o tempo. A questão era descobrir um barômetro, porque, além do maxixe e do vissi d'art, não há nada neste país que tenha resistido a cinco de anos de vida.
Cinematógrafos ... Agora os cinematógrafos. Em todas as praças há cinematógrafos - anúncios, ajuntando milhares e milhares de pessoas. Na avenida Central, com entrada paga há dois, três, e a concorrência é tão grande que a polícia dirige a entrada e fica a gente esperando um tempo infinito na calçada.
É o Rio modernizado, civilizado, como se diz, então.
As salas de espera são outros cinemas: ou pela requintada decoração, que pode ser assinada por Raul Pederneiras ou por Borsoi, pela tração de um conjunto musical de damas vienenses ou por um de chorões. Ou pelos tipos exóticos que nela desfilam sua fatuidade.
O cinema é arte moderna, como sublinha o cronista:
Se o Pavilhão Internacional, outra sala da Avenida , exibe filmes eróticos, outros mostram fitas mais atraentes, como as versões de operetas, de vaudevilles. Na documentação da vida urbana, como o corso e as touradas, toma-se ficção.
Os cartões-postais :
Ainda a respeito de corsos e filmagens, um articulista advertia: "Já viram no cinematógrafo Pathé uma fita denominada Os cartões postais"? E o jornalista relembra o enredo: um cavalheiro casado encontra uma jovem desconhecida e os dois passam para um fotógrafo de praia. Dias depois o mesmo cavalheiro sai com a esposa e esta entra em uma papelaria para adquirir cartões- postais e vê no dito cartão o marido com a outra...
Fonte - Livro - NA SALA DE ESPERA DO CINEMA ODEON - págs
15,16,17,18,19,20 e 21 - COLEÇÃO MEMÓRIA URBANA - 1991
ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO - Projeto e texto
Fernando Fereira Campos
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