terça-feira, 15 de outubro de 2019

O gênio que soube captar a alma brasileira




Compositor  fez  de  tudo, da  sinfonia  à  música  de  câmara, dos  solos de  piano à  ópera.  

Poucos compositores captaram tão bem musicalmente a essência de sua nacionalidade quanto Heitor Villa-Lobos  em  Alma  Brasileira. Essa peça para piano, composta em 1926, em que ele recorre à linguagem dos seresteiros cariocas para retratar a personalidade ora sensual, ora melancólica, ora matreira de seu povo, é a quinta na série monumental dos 14 choros, escritos entre 1924 e 1929, quando o músico estava em Paris.

Como as Bachianas  Brasileiras, eles formam uma imensa síntese da arte de Villa-Lobos na diversidade da escrita, que vai desde o piano- solo – o nº 5 – à arrojada combinação de duas orquestras e banda n° 13, cuja partitura desapareceu.

Ou no gosto pelas combinações insólitas, como a de três trombas e trombone n° 6 característica do compositor, que escreve Bachiana n° 6 para duo de flauta e fagote ). A síntese também ao demonstrar a maneira muito pessoal como Villa-Lobos assimila o porte estrangeiro , fundindo-o nas diversas correntes com que construiu seu idioma . 

É famosa a frase de Villa-Lobos , ao chegar a Paris no segundo semestre de 1923 , de que não ia à França para estudar ou aperfeiçoar-se , e sim para exibir o que já havia feito

É inevitável , por trás dessa orgulhosa bravata, a absorção experimentalismo da década de 20, uma das mais ricas da história da música europeia . Um artista de antenas sensíveis, como ele , estava perto às inovações não só do veterano Ravel como do irreverente Grupo dos Seis ou de migrados como Prokófiev ou Stravinski .

Mas a fonte muito variada de influências em que bebe é metabolizada de maneira admirável integrando-se com a naturalidade a uma linguagem em que convivem as mais diversas manifestações musicais brasileiras: o sentimentalismo dos chorões urbanos , a ingenuidade do folclore caipira,  o primitivismo dos cânticos indígenas (a canção pareci Nozani-Na), por exemplo, que ele usa no virtuosístico Choro nº 3 ) , a violência expressiva que corresponde à exuberância descontrolada da natureza tropical , e que lhe sugere páginas caudalosas como poema sinfônico Erosão . 

Quartetos  densos  - Mas o músico capaz de dominar as grandes masas sinfônicas , extraindo dela rutilantes efeitos de orquestração – como no Choro n° 10 ‘ Raspa  Coração ‘ ou na  Bachiana  Brasileira  nº 7 - , era também um mestre no mais denso e subjetivo dos gêneros , o quarteto de cordas .

Não é exagero dizer que os 17 quartetos que pontuam esparsamente a sua produção , estendendo-se de 1915 a 1957 , constituem - ao lado dos de Schönberg , de Bartók , de Shostakóvitch  - uma das mais importantes criações desse gênero no século 20. Neles também vemos um microcosmo do que é o universo imenso da obra de Villa-Lobos , com seu catálogo de mais de 300 peças .

Ora , declaradamente nacionalistas , de espontânea , fervilhante brasilidade ( o n.º 5 ) , ora de um universalismo que lhe permite fundir a transparência de Ravel com os ritmos incisivos de Stravinski ( o n.º 9 ) , eles são de uma extraordinária capacidade de invenção , de renovação - é o caso do n.º 14 , todo construído sobre movimentos melódicos e rítmicos que germinam a partir do intervalo de quarta .

Posse  da  técnica - Essa notável série de quartetos é a melhor demonstração de que , com a idade , não declinou o gênio do compositor pois , dentre eles , os mais admiráveis são justamente os últimos , desde o n.º 12 , de 1950 , praticamente atonal , até o suntuoso n.º 17 , de 1957 , "ápice da longa evolução de um autor que mantinha a plena posse da técnica e o amadurecimento de seus processos de composição " , como diz Arnaldo Estrela em Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos ( 1970 )Considerada em seu conjunto , a produção de nosso maior músico do século 20  é necessariamente desigual.  

A facilidade com que ele escrevia , a rapidez com que era obrigado a trabalhar, a generosidade de uma inspiração que o levou a praticar todos os gêneros , da sinfonia à música de câmara , dos solos de piano à ópera , resulta em páginas que nem sempre têm o mesmo nível de acabamento ou de originalidade .

Nisso , Villa não está sozinho : fazem-lhe companhia, neste século , alguns grandes gênios muito prolíficos e igualmente irregulares, Darius Milhaud , Dmitri  Shostakóvitch , Bohuslav Martinu .

Exuberância  - Mas onde se manifesta o gênio de Villa  Lobos - o contraditório em seus desníveis de qualidade , às vezes com uma pontinha de exibicionismo, sempre com fertilidade de invenção - , ele é de uma exuberância tão grande quanto a da floresta tropical que lhe inspirou algumas de suas composições mais empolgantes .

E nesse corpo de grandes criações , não poderíamos deixar de destacar a que de forma mais singular sintetizou o nacional e o universal , a experiência individual do brasileiro e a tendência universal do cidadão do mundo: as Bachianas  Brasileiras . São suas peças mais conhecidas e mais amadas . A melodia de uma delas pelo menos - a ária  da n.º 5 - está presente na memória de todo brasileiro que goste de música , imortalizada pela gravação que o próprio fez nos EUA, com Bidu Sayão, e pelo uso mágico que Gláuber Rocha lhe deu numa das cenas de Deus  e  o  Diabo  na  Terra  do Sol.

Bach - Em Johann Sebastian Bach  ,"Villa-Lobos via um manancial folclórico universal , um intermediário entre todos os povos " . Visando a homenageá-lo , partiu da forma da suíte barroca , praticada por Bach , justapondo a melodias , ritmos e um agenciamento harmônico proveniente do folclore de várias regiões do Brasil . As danças setecentistas - giga , passepied , passacalha - são substituídas pelos ritmos sincopados das nossas : miudinho , martelo , ciranda sertaneja .  

E Villa faz ligação direta , atravessando os séculos , entre as formas do século 18 alemão e as do século 20 caipira e brasileirinho , mostrando , na Bachiana n.º 7  ,de 1942 , que o prelúdio pode corresponder a um ponteio , a giga a uma quadrilha  do interior ; e que a tocata e a fuga têm a mesma estrutura dialogada do nosso desafio .

As Bachianas oferecem -nos também a prova de que Villa -Lobos possui a grande qualidade sem a qual o compositor não resiste ao tempo : ele é um grande melodista . São essenciais o sabor harmônico , o rigor contrapontístico , o virtuosismo do orquestrador . É importantíssimo o senso arquitetônico , que lhe permite edificar , com absoluto equilíbrio , uma obra de grande porte como as quatro suítes do descobrimento do Brasil , extraídas da trilha sonora escrita para o filme de Humberto  Mauro , de 1937 .

No  ouvido  e  no coração 

Mas nada disso atingiria tão profundamente o coração do público se Villa não fosse capaz de escrever melodias que grudam no ouvido , que se ouve uma vez e nunca mais se esquece . Como a da  Ária  na  Bachiana n.º 5 , que baila em nossa memória embalada pela voz de Bidu .  Como o tema mágico do Prelúdio  na  Bachiana n.º 4 .
Ou como a melodia de  Alma  Brasileira  , o choro em que ele soube , como ninguém , capturar o essencial de nossa alma .

CRONOLOGIA 

5/3/ 1887 - Nasce no  bairro  de  Laranjeiras  , no  Rio 
       1899 - Morre seu pai , Raul
       1900 - Escreve sua primeira peça para violão
       1903 - Vai morar com a tia e começa a frequentar os chorões
       1905 - Faz sua primeira viagem ao Nordeste , onde recolhe temas folclóricos 
       1907 - Viaja ao Sul
       1908 - Escreve Cânticos  Sertanejos  e viaja para o Oeste do País 
       1910 - É contratado como violoncelista de uma companhia de operetas 
       1915 - Primeira audição pública de suas obras , em Friburgo 
       1917 - Conhece o compositor francês Darius  Milhaud . Compõe os bailados              
                   Amazonas  e  Uirapuru 
       1918 - Compõe Prole do Bebê n º 1 . É apresentado ao pianista Arthur Rubinstein
       1923 - Compõe o Noneto . Primeira viagem à Europa . 
       1924 - Escreve os Choros n º 2 e os Choros n.º 7 . Primeiro concerto em Paris . 
                   Retorna  ao  Rio .
       1926 - Viaja a Buenos Aires ,onde realiza três concertos .Escreve os   Choros n.º 
                    4 , 5 e 6, e a Cirandas .
       1927 - Segunda viagem a Paris. Crítica entusiástica sobre as estréia dos Choros 
                   n.º 8 e 10 , na Salle  Gaveau 
       1929 - Compõe os Choros nº 9 e os 12 Estudos  para  Violão 
       1930 - De volta ao Brasil , apresenta um plano de educação musical em São Paulo 
       1931 - Primeira grande concentração orfeônica , reunindo 12 mil vozes . Criada no          
                   Rio na Superintendência de Educação Musical e  Artística ( Sume ) .              
                   Escreve as  Bachianas  Brasileiras nº 4 e 5  
       1932-  Nomeado supervisor da educação musical no Brasil. Compõe  a  Guia  
                   Prática .

       1936 - Desfaz o casamento com Lucília e passa a morar com Mindinha . Compõe  
                   o Ciclo  Brasileiro , para piano 
       1940 - Concentração orfeônica no estádio do Vasco  da Gama , reunindo 40 mil 
                   alunos 
       1942 - Compõe  as   Bachianas nº 7 
       1943 - Doutor  Honoris  Causa  pela Universidade de Nova  York 
       1945 - Compõe as   Bachianas nº 9 e a  Sinfonia  nº  6 
       1948 - É operado de um tumor maligno 
       1949 - Faz turnês  pela  Europa  e pelos  Estados  Unidos 
       1951 - Compõe  o Quarteto  de  Cordas  nº 13 , o Concerto  para  Violão  e  
                   Orquestra  e a   Sinfonia  n º 9 
       1957 - Seus 70 anos são saudados em editorial do jornal  The  New  York Times .
                   Compõe  o  Quarteto  de  Cordas nº 17 
12/07/1959 - Rege seu último concerto , em  Nova  York  . 
17/11/1959 - Morre em sua casa , no Rio .  

Fonte  :  Villa-Lobos  - Uma  introdução , de Luiz Paulo  Horta 

Fonte  -  Jornal O  ESTADO  DE   SÃO  PAULO  -  pág D 7  - O  NACIONALISTA 
              UNIVERSAL  - CADERNO  2  /  CULTURA 
               Domingo ,16 de abril  de 2000 - LAURO  MACHADO  COELHO (especial)


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