Compositor fez de tudo, da sinfonia à música de câmara, dos solos de piano à ópera.
Poucos compositores captaram tão bem musicalmente a essência de sua nacionalidade quanto Heitor Villa-Lobos em Alma Brasileira. Essa peça para piano, composta em 1926, em que ele recorre à linguagem dos seresteiros cariocas para retratar a personalidade ora sensual, ora melancólica, ora matreira de seu povo, é a quinta na série monumental dos 14 choros, escritos entre 1924 e 1929, quando o músico estava em Paris.
Como as Bachianas Brasileiras, eles formam uma imensa síntese da arte de Villa-Lobos na diversidade da escrita, que vai desde o piano- solo – o nº 5 – à arrojada combinação de duas orquestras e banda n° 13, cuja partitura desapareceu.
Ou no gosto pelas combinações insólitas, como a de três trombas e trombone n° 6 característica do compositor, que escreve Bachiana n° 6 para duo de flauta e fagote ). A síntese também ao demonstrar a maneira muito pessoal como Villa-Lobos assimila o porte estrangeiro , fundindo-o nas diversas correntes com que construiu seu idioma .
É famosa a frase de Villa-Lobos , ao chegar a Paris no segundo semestre de 1923 , de que não ia à França para estudar ou aperfeiçoar-se , e sim para exibir o que já havia feito .
É inevitável , por trás dessa orgulhosa bravata, a absorção experimentalismo da década de 20, uma das mais ricas da história da música europeia . Um artista de antenas sensíveis, como ele , estava perto às inovações não só do veterano Ravel como do irreverente Grupo dos Seis ou de migrados como Prokófiev ou Stravinski .
Mas a fonte muito variada de influências em que bebe é metabolizada de maneira admirável integrando-se com a naturalidade a uma linguagem em que convivem as mais diversas manifestações musicais brasileiras: o sentimentalismo dos chorões urbanos , a ingenuidade do folclore caipira, o primitivismo dos cânticos indígenas (a canção pareci Nozani-Na), por exemplo, que ele usa no virtuosístico Choro nº 3 ) , a violência expressiva que corresponde à exuberância descontrolada da natureza tropical , e que lhe sugere páginas caudalosas como poema sinfônico Erosão .
Quartetos densos - Mas o músico capaz de dominar as grandes masas sinfônicas , extraindo dela rutilantes efeitos de orquestração – como no Choro n° 10 ‘ Raspa Coração ‘ ou na Bachiana Brasileira nº 7 - , era também um mestre no mais denso e subjetivo dos gêneros , o quarteto de cordas .
Não é exagero dizer que os 17 quartetos que pontuam esparsamente a sua produção , estendendo-se de 1915 a 1957 , constituem - ao lado dos de Schönberg , de Bartók , de Shostakóvitch - uma das mais importantes criações desse gênero no século 20. Neles também vemos um microcosmo do que é o universo imenso da obra de Villa-Lobos , com seu catálogo de mais de 300 peças .
Ora , declaradamente nacionalistas , de espontânea , fervilhante brasilidade ( o n.º 5 ) , ora de um universalismo que lhe permite fundir a transparência de Ravel com os ritmos incisivos de Stravinski ( o n.º 9 ) , eles são de uma extraordinária capacidade de invenção , de renovação - é o caso do n.º 14 , todo construído sobre movimentos melódicos e rítmicos que germinam a partir do intervalo de quarta .
Posse da técnica - Essa notável série de quartetos é a melhor demonstração de que , com a idade , não declinou o gênio do compositor pois , dentre eles , os mais admiráveis são justamente os últimos , desde o n.º 12 , de 1950 , praticamente atonal , até o suntuoso n.º 17 , de 1957 , "ápice da longa evolução de um autor que mantinha a plena posse da técnica e o amadurecimento de seus processos de composição " , como diz Arnaldo Estrela em Os Quartetos de Cordas de Villa-Lobos ( 1970 ) . Considerada em seu conjunto , a produção de nosso maior músico do século 20 é necessariamente desigual.
A facilidade com que ele escrevia , a rapidez com que era obrigado a trabalhar, a generosidade de uma inspiração que o levou a praticar todos os gêneros , da sinfonia à música de câmara , dos solos de piano à ópera , resulta em páginas que nem sempre têm o mesmo nível de acabamento ou de originalidade .
Nisso , Villa não está sozinho : fazem-lhe companhia, neste século , alguns grandes gênios muito prolíficos e igualmente irregulares, Darius Milhaud , Dmitri Shostakóvitch , Bohuslav Martinu .
Exuberância - Mas onde se manifesta o gênio de Villa Lobos - o contraditório em seus desníveis de qualidade , às vezes com uma pontinha de exibicionismo, sempre com fertilidade de invenção - , ele é de uma exuberância tão grande quanto a da floresta tropical que lhe inspirou algumas de suas composições mais empolgantes .
E nesse corpo de grandes criações , não poderíamos deixar de destacar a que de forma mais singular sintetizou o nacional e o universal , a experiência individual do brasileiro e a tendência universal do cidadão do mundo: as Bachianas Brasileiras . São suas peças mais conhecidas e mais amadas . A melodia de uma delas pelo menos - a ária da n.º 5 - está presente na memória de todo brasileiro que goste de música , imortalizada pela gravação que o próprio fez nos EUA, com Bidu Sayão, e pelo uso mágico que Gláuber Rocha lhe deu numa das cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Bach - Em Johann Sebastian Bach ,"Villa-Lobos via um manancial folclórico universal , um intermediário entre todos os povos " . Visando a homenageá-lo , partiu da forma da suíte barroca , praticada por Bach , justapondo a melodias , ritmos e um agenciamento harmônico proveniente do folclore de várias regiões do Brasil . As danças setecentistas - giga , passepied , passacalha - são substituídas pelos ritmos sincopados das nossas : miudinho , martelo , ciranda sertaneja .
E Villa faz ligação direta , atravessando os séculos , entre as formas do século 18 alemão e as do século 20 caipira e brasileirinho , mostrando , na Bachiana n.º 7 ,de 1942 , que o prelúdio pode corresponder a um ponteio , a giga a uma quadrilha do interior ; e que a tocata e a fuga têm a mesma estrutura dialogada do nosso desafio .
As Bachianas oferecem -nos também a prova de que Villa -Lobos possui a grande qualidade sem a qual o compositor não resiste ao tempo : ele é um grande melodista . São essenciais o sabor harmônico , o rigor contrapontístico , o virtuosismo do orquestrador . É importantíssimo o senso arquitetônico , que lhe permite edificar , com absoluto equilíbrio , uma obra de grande porte como as quatro suítes do descobrimento do Brasil , extraídas da trilha sonora escrita para o filme de Humberto Mauro , de 1937 .
No ouvido e no coração
Mas nada disso atingiria tão profundamente o coração do público se Villa não fosse capaz de escrever melodias que grudam no ouvido , que se ouve uma vez e nunca mais se esquece . Como a da Ária na Bachiana n.º 5 , que baila em nossa memória embalada pela voz de Bidu . Como o tema mágico do Prelúdio na Bachiana n.º 4 .
Ou como a melodia de Alma Brasileira , o choro em que ele soube , como ninguém , capturar o essencial de nossa alma .
CRONOLOGIA
5/3/ 1887 - Nasce no bairro de Laranjeiras , no Rio
1899 - Morre seu pai , Raul
1900 - Escreve sua primeira peça para violão
1903 - Vai morar com a tia e começa a frequentar os chorões
1905 - Faz sua primeira viagem ao Nordeste , onde recolhe temas folclóricos
1907 - Viaja ao Sul
1908 - Escreve Cânticos Sertanejos e viaja para o Oeste do País
1910 - É contratado como violoncelista de uma companhia de operetas
1915 - Primeira audição pública de suas obras , em Friburgo
1917 - Conhece o compositor francês Darius Milhaud . Compõe os bailados
Amazonas e Uirapuru
1918 - Compõe Prole do Bebê n º 1 . É apresentado ao pianista Arthur Rubinstein
1923 - Compõe o Noneto . Primeira viagem à Europa .
1924 - Escreve os Choros n º 2 e os Choros n.º 7 . Primeiro concerto em Paris .
Retorna ao Rio .
1926 - Viaja a Buenos Aires ,onde realiza três concertos .Escreve os Choros n.º
4 , 5 e 6, e a Cirandas .
1927 - Segunda viagem a Paris. Crítica entusiástica sobre as estréia dos Choros
n.º 8 e 10 , na Salle Gaveau
1929 - Compõe os Choros nº 9 e os 12 Estudos para Violão
1930 - De volta ao Brasil , apresenta um plano de educação musical em São Paulo
1931 - Primeira grande concentração orfeônica , reunindo 12 mil vozes . Criada no
Rio na Superintendência de Educação Musical e Artística ( Sume ) .
Escreve as Bachianas Brasileiras nº 4 e 5
1932- Nomeado supervisor da educação musical no Brasil. Compõe a Guia
Prática .
1936 - Desfaz o casamento com Lucília e passa a morar com Mindinha . Compõe
o Ciclo Brasileiro , para piano
1940 - Concentração orfeônica no estádio do Vasco da Gama , reunindo 40 mil
alunos
1942 - Compõe as Bachianas nº 7
1943 - Doutor Honoris Causa pela Universidade de Nova York
1945 - Compõe as Bachianas nº 9 e a Sinfonia nº 6
1948 - É operado de um tumor maligno
1949 - Faz turnês pela Europa e pelos Estados Unidos
1951 - Compõe o Quarteto de Cordas nº 13 , o Concerto para Violão e
Orquestra e a Sinfonia n º 9
1957 - Seus 70 anos são saudados em editorial do jornal The New York Times .
Compõe o Quarteto de Cordas nº 17
12/07/1959 - Rege seu último concerto , em Nova York .
17/11/1959 - Morre em sua casa , no Rio .
Fonte : Villa-Lobos - Uma introdução , de Luiz Paulo Horta
Fonte - Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO - pág D 7 - O NACIONALISTA
UNIVERSAL - CADERNO 2 / CULTURA
Domingo ,16 de abril de 2000 - LAURO MACHADO COELHO (especial)
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