Na trilha da cultura nacional
“ Se o operário soubesse reconhecer o valor que tem seu dia . Por certo que valeria duas vezes mais o seu salário . Mas como não quer reconhecer é ele escravo sem ser de qualquer usuário “.
Nelson Sargento – Cartola – Alfredo Português
Existe uma crítica recorrente na Universidade acerca dos rumos e objetivos dos cursos de graduação . É procedente a afirmação de que a formação oferecida aos alunos da USP é muitas vezes técnica em demasia , em detrimento de uma formação abrangente visando à constituição de seres críticos.
A essas alturas o leitor já deve estar se perguntando qual a relação entre o primeiro parágrafo e a epígrafe ,ou mesmo o que um texto desses está fazendo na página de cultura .Pretendo passar nessa coluna um momento de descontração para o leitor d’ O Visconde , mas também provocar instantes de reflexão acerca da relação entre a perda de elementos da cultura brasileira e os rumos de nossa educação.
Na medida em que a preocupação com o futuro profissional aumenta , o interesse pelo resgate da cultura nacional diminui. As pessoas tornam-se alienadas em seus objetos de estudo e não mais frequentam eventos culturais como exposições,peças de teatro e, é claro , apresentações de música nacional de qualidade . Dessa forma , os ouvidos do público ficam à mercê do senso comum,que geralmente é constituído por aquilo que agrada a todos e ao mesmo tempo não satisfaz ninguém ,a mediocridade .
É por essas e por outras que resolvi escrever esta coluna.Nesta e nas próximas edi -ções d’ O Visconde dar algumas dicas sobre onde, como e quando encontrar a boa música brasileira e também contar histórias sobre canções ,cd’s e artistas do samba e suas derivações .Entretanto, gostaria de deixar claro que o que está escrito na coluna expressa minha opinião sobre a música , a cultura ( por vezes outros assuntos também poderão ser abordados ) , mas não existe uma verdade absoluta sobre uma questão tão subjetiva e pessoal que é o gosto musical .
Como elemento formador da cultura nacional , o samba tem influências que muitas vezes não imaginamos , desde expressões da cultura popular até valores arraigados de nossa sociedade . Surgido de elementos da cultura africana , no subúrbio do Rio de Janeiro , o samba tem como pressuposto fundante ir sempre na contramão daquilo que é consenso .O tema central do gênero é a tristeza , sentimento profundo que serve de motivação para a maioria dos compositores .Ora , uma categoria musical que se vale da tristeza como fonte principal de inspiração só pode ser amargurada ,ferida,emoci- onante ,irônica e, portanto , genial.
Quem não conhece a expressão " Amélia ",apropriada recentemente pelo mercado digital. A expressão foi cunhada por Ataulfo Alves ( 1909-1969) e Mário Lago na célebre obra-prima " Ai que saudades da Amélia " , que conta a história de um lamento por parte de um homem que perdeu a mulher amada . Amélia possuía uma característica única que ja- mais se reeditaria em outra moça , a de abdicar de anseios e necessidades naturais de mulher em nome de seu amado . O tema da saudade é a expressão da tristeza nesta música , que chega a ser irônica , tamanho surrealismo da historia e a cafagestagem do homem . Amélia virou sinônimo de mulher submissa.
Outro termo popularizado pelo samba é o "caguete " , expressão usada para identi-o delator pela malandragem ,principal tema da música do compositor e cantor cari-oca Bezerra da Silva .
A crítica social contida em sua obra é dada sob uma ótica que raramente é encontrada em outas manifestações críticas.Ela se dá a partir do ponto de vista do oprimido e, por vezes,do contraventor. O hip-hop paulistano sofreu influências do samba de Bezerra da Silva , sendo ambos manifestações de contestação ácida ao sistema ,centrada em temas como violência policial ,absurdos do sistema carcerário e manipulação da popu-lação por parte de políticos corruptos . Para citar uma música de Bezerra que aborda a figura do delator de seus amigos , a bem -humorada " Defunto Caguete " é ideal . Ela trata de um homem que,ao ir a um enterro , cisma que o defunto , com seu dedo dela-tava os companheiros que " faziam a cabeça " .
Nas próximas colunas, outros autores e suas influências sobre a cultura popular vão ser apresentados , como por exemplo , Cartola , Noel Rosa , Pixinguinha , Geraldo Pereira ,Moreira da Silova , Adoniran Barbosa, Jackson do Pandeiro, Jamelão , sendo realizadas também relações entre suas composições . Figuras mais familiares , como Chico Buarque e Dorival Caymmi , com certeza também vão aparecer , e até o Lobão pode dar as caras na coluna.
Para quem quiser sair do texto e ouvir um pouco de música , existem bares na Vila Madalena e em Moema ,como o Vila Viroo na Rua Fidalga,que têm rodas de samba qualidade . Outra bela pedida é ver os Demônios da Garoa , que se apre -sentavam toda quinta no Brahma ,na Ipiranga com a São João , um dos lugares mais simpáticos da cidade.
Quando o leitor já estiver familiarizado com esses ambientes , podia tentar ver um show do Bezerra , que se apresentava periodicamentes nos SESCs de São Paulo e até mesmo o Samba da Vela , provavelmente a roda mais "raiz " da cidade , que acontecia em Santo Amaro .
Fonte - Jornal MERCÚRIO - O Visconde São Paulo , Março de 2002 - Lobby do Samba
Penin , 2° Eco
Dom João VI e a música no Brasil
Muito se tem falado em Dom João VI , quase sempre com galhofas e em tom depreciativo . Agora,porém,quando se comemora os duzentos anos de sua chegada ao Brasil,há quase uma voz uníssona entre os historiadores e grande estrategista que foi e, principalmente , as muitas transformações que operou no Brasil.
Sensível e culto, amante da música erudita , O Príncipe Regente encontrou na nova terra um clima privilegiado para a sua paixão , e um compositor à altura dos mais importantes músicos do seu tempo : o Padre José Maurício. Nascido em 1761 , e tendo composto a sua primeira obra aos dezesseis anos , José Maurício era Mestre da Sé - Catedral do Rio de Janeiro . Considerado gênio e por muitos comparado exageradamente a Mozart , logo foi percebido por Dom João , que o nomeou Mestre da Capela Real apesar dos protestos e do preconceito de alguns membros da Corte, que não o aceitavam por ser mulato. Mais tarde, sem se importar com os nobres e levando em conta e a sua dedicação à música e suas belíssimas e melodiosas composições , outorgou-lhe uma das mais importantes condecorações portuguesas : o Hábito da Ordem de Cristo.
Mantendo a tradição da Casa dos Bragança , sempre envolvidos coma música , em 1811,Dom João chama ao Brasil Marcos Portugal , conhecido em toda a Europa e considerado o mais famoso compositor português de música erudita de todos os tempos .Recebido,como celebridade e nomeado compositor oficial da Corte e Mestre de Música de suas Altezas Reais , os Infantes , graças à sua posição de professor de Música do príncipe Dom Pedro ,futuro imperador do Brasil, teve uma posição de real importância na corte.
Em 1816 chega também ao Brasil, para juntar -se à Missão Francesa, o compositor austríaco Sigismund Neukomm , respeitadíssimo na Europa e ex aluno de Haydn , que logo estabelece uma grande amizade com José Maurício por quem nutre profunda admiração.
Com os novos músicos , a Capela Real passou a ser palco dos grandes concertos e recitais da época , e em 1815 já possuía um corpo de 50 cantores ,contando entre eles,os mais fa-mosos castrati,além de cem excelentes instrumentistas ,dirigidos por dois mestres Capelas ; mas com a chegada de Marcos Portugal , muda a posição do padre José Maurício , que é destituído de suas funções e substituído pelo músico português , nascendo assim uma rivalidade entre os dois.
Conta-se que em certa ocasião Marcos Portugal , convidado pela Princesa Dona Carlota Joaquina para encontrar-se com José Mauríiicio , e pensando tratar-se de um músico sem cultura musical , ou talvez para humilhá-lo, leva consigo uma sonata de Haydn um dos seus autores favoritos , José Maurício senta-se ao piano e com uma facilidade assombrosa leitura musical, toca-a com tamanha maestria , que arrebata a platéia e o próprio Marcos Portugal, que passa a respeitá-lo.
Como se sabe, Dom João teve uma vida conjugal destituída de encantos, e sentindo-se um estranho entre fidalgos que aqui viviam sem cultura ou refinamento social, procurou derivativos na sua paixão pela música ,e por uma boa mesa .Em recente conferência no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo , o Príncipe Dom Luiz de Orléans e Bragança contou -nos que o Príncipe Regente adorava sardinhas,e por não encontrá-las em nossas águas , mandou vir de Portugal , um navio com um carregamento delas vivas , despejando-as na Guanabara ,iniciando assim a sua criação nas costas brasileiras.Não era um glutão, como costumam dizer , mas talvez ... um guloso gourmet , e o seu amor pela música era tão evidente , que em certa ocasião desalojou determinado marquês e sua família da Quinta da Boa Vista , para alojar os seus músicos . Inquirido pelo que fazia, respondeu:
- Um marquês faço uma penada, mas com um músico levo anos e muito dinheiro para fazer.
Fonte - Jornal das Letras - * Sônia Sales é membro da Academia Carioca de Letras
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