sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

 



Na  trilha  da cultura  nacional

“ Se  o operário soubesse reconhecer o valor que tem seu dia . Por certo que valeria duas vezes mais o seu salário . Mas como não quer reconhecer é ele escravo sem ser de qualquer usuário “.

Nelson Sargento – Cartola – Alfredo Português

Existe uma crítica recorrente na Universidade acerca dos rumos e objetivos dos cursos de graduação . É procedente a afirmação de que a formação oferecida  aos alunos da  USP é muitas vezes técnica em demasia , em detrimento de uma formação abrangente visando à constituição de seres críticos.

A essas alturas o leitor já deve estar se perguntando qual a relação entre o primeiro parágrafo e a epígrafe ,ou mesmo o que um  texto desses está fazendo  na  página de cultura .Pretendo passar nessa coluna um momento de descontração para o leitor d’ O Visconde , mas também provocar instantes de reflexão acerca da relação entre a perda de elementos da  cultura brasileira e os rumos de nossa educação.

Na medida em que a preocupação com o  futuro profissional aumenta , o interesse pelo resgate da  cultura nacional diminui. As pessoas tornam-se alienadas em seus objetos de estudo e não mais frequentam  eventos culturais como  exposições,peças de teatro  e, é claro , apresentações de música nacional de qualidade . Dessa forma , os ouvidos do público ficam à mercê do senso comum,que geralmente é constituído por aquilo que agrada a todos e ao mesmo tempo não satisfaz ninguém ,a mediocridade .

É por essas e por outras que resolvi escrever esta coluna.Nesta e nas próximas  edi -ções d’ O Visconde dar algumas  dicas sobre onde, como e quando encontrar a  boa  música brasileira e também contar  histórias sobre canções ,cd’s e artistas do  samba e suas derivações .Entretanto, gostaria de deixar claro que o que está escrito na coluna expressa minha opinião sobre a música , a cultura ( por vezes outros assuntos também poderão ser abordados ) , mas não existe uma verdade absoluta sobre uma  questão tão subjetiva e pessoal que é o  gosto musical .

Como elemento formador da  cultura nacional , o samba tem  influências que muitas vezes não imaginamos , desde expressões da cultura popular até valores arraigados de nossa sociedade . Surgido de elementos da  cultura africana , no subúrbio do  Rio de Janeiro , o samba tem como pressuposto fundante ir sempre na contramão daquilo que é consenso .O tema central do gênero é a  tristeza , sentimento profundo que serve de  motivação para a maioria dos compositores .Ora , uma categoria musical que se vale da  tristeza como fonte principal de inspiração só pode ser  amargurada ,ferida,emoci- onante ,irônica e, portanto , genial.

Quem não conhece a expressão " Amélia ",apropriada recentemente pelo mercado digital. A expressão foi cunhada por  Ataulfo Alves ( 1909-1969) e Mário Lago na célebre obra-prima  " Ai que saudades da  Amélia " ,  que conta a  história de um lamento por parte de um homem que perdeu a mulher amada . Amélia possuía uma  característica única que ja- mais se reeditaria em outra moça , a de abdicar de  anseios e necessidades naturais de mulher em nome de  seu amado . O tema da saudade é a expressão da tristeza nesta música , que chega a ser  irônica , tamanho surrealismo da  historia e a cafagestagem do homem . Amélia virou sinônimo de  mulher submissa.

Outro termo popularizado pelo  samba é o "caguete " , expressão usada para identi-o delator pela malandragem ,principal tema  da música do compositor e  cantor cari-oca Bezerra da Silva .

A crítica social contida em sua obra é dada sob uma ótica que raramente é encontrada em outas manifestações críticas.Ela se dá a partir do ponto de vista do oprimido e, por vezes,do contraventor. O hip-hop paulistano sofreu influências do  samba de  Bezerra da Silva , sendo ambos manifestações de contestação ácida ao sistema ,centrada em temas como violência policial ,absurdos do sistema carcerário e manipulação da popu-lação por parte de políticos corruptos . Para citar uma música de Bezerra que aborda a figura do delator de seus amigos , a bem -humorada  " Defunto Caguete " é ideal . Ela trata de um homem que,ao ir a um enterro , cisma que o defunto , com seu dedo dela-tava os companheiros que " faziam a cabeça " . 


Nas próximas colunas, outros autores e suas influências sobre a  cultura popular vão ser apresentados , como por exemplo , Cartola , Noel Rosa , Pixinguinha , Geraldo Pereira ,Moreira da Silova , Adoniran Barbosa, Jackson do Pandeiro, Jamelão , sendo realizadas também relações entre suas composições . Figuras mais familiares , como Chico Buarque e Dorival Caymmi , com certeza também vão aparecer , e até o Lobão pode dar as caras na coluna.

Para quem quiser sair do texto e ouvir um pouco de música , existem bares na Vila Madalena e em Moema ,como o Vila  Viroo na Rua Fidalga,que têm rodas de  samba qualidade . Outra  bela pedida é ver os  Demônios da Garoa , que se apre -sentavam toda quinta no Brahma ,na Ipiranga com a São João , um dos lugares mais simpáticos da cidade.

Quando o leitor já estiver  familiarizado com esses ambientes , podia tentar ver um show do Bezerra , que se apresentava periodicamentes nos SESCs de São Paulo e até mesmo o Samba da Vela , provavelmente a roda mais "raiz " da cidade , que acontecia em Santo Amaro .


Fonte  - Jornal  MERCÚRIO    - O  Visconde São Paulo , Março de 2002 - Lobby do Samba

Penin , 2° Eco 



Dom  João  VI e a  música no  Brasil


Muito se tem falado em  Dom João VI , quase sempre com galhofas e em tom depreciativo . Agora,porém,quando se comemora os duzentos anos de sua chegada ao Brasil,há quase uma voz uníssona entre os historiadores e grande estrategista que foi e, principalmente , as muitas transformações que operou no Brasil.

Sensível e culto, amante da  música erudita , O Príncipe Regente encontrou na  nova terra um clima privilegiado para a sua paixão , e um compositor à altura dos mais importantes músicos do seu tempo : o  Padre José Maurício. Nascido em 1761 , e tendo composto a sua primeira  obra aos  dezesseis anos , José Maurício era Mestre da Sé  -  Catedral do Rio de Janeiro . Considerado  gênio e por muitos comparado exageradamente a  Mozart , logo foi percebido por  Dom João , que o nomeou  Mestre da Capela Real apesar dos protestos e do preconceito de alguns membros da Corte, que não o aceitavam por ser  mulato. Mais tarde, sem se importar com os  nobres e levando em conta e a sua  dedicação à   música e suas belíssimas e melodiosas composições , outorgou-lhe uma das mais importantes condecorações portuguesas : o  Hábito da  Ordem de Cristo.

Mantendo a tradição da Casa dos  Bragança , sempre envolvidos coma  música ,  em  1811,Dom João chama ao  Brasil Marcos Portugal , conhecido em toda a Europa e considerado o mais famoso compositor português de  música erudita de todos os tempos .Recebido,como  celebridade e nomeado  compositor oficial da  Corte e Mestre de Música de suas  Altezas Reais , os Infantes ,  graças à sua posição de  professor de  Música do príncipe   Dom Pedro ,futuro  imperador do Brasil, teve uma posição de real importância na corte.

Em 1816 chega também ao Brasil, para juntar -se à  Missão Francesa, o compositor  austríaco  Sigismund Neukomm , respeitadíssimo na  Europa e ex aluno de Haydn , que  logo estabelece uma grande amizade com  José Maurício por quem nutre profunda admiração.

Com os novos músicos , a Capela Real passou a ser palco dos grandes concertos e recitais da época , e em 1815 já possuía um corpo de 50 cantores ,contando entre eles,os mais fa-mosos castrati,além de cem excelentes instrumentistas ,dirigidos por dois mestres  Capelas ; mas com a  chegada de  Marcos Portugal , muda a posição do  padre José Maurício , que é destituído de suas funções e substituído pelo  músico português , nascendo assim uma rivalidade entre os dois.

Conta-se que em certa ocasião  Marcos Portugal , convidado pela   Princesa Dona Carlota Joaquina para encontrar-se com José Mauríiicio , e pensando tratar-se de um  músico sem cultura musical , ou talvez para humilhá-lo, leva consigo uma  sonata de Haydn um dos seus autores favoritos , José Maurício senta-se ao piano e com uma  facilidade assombrosa leitura musical, toca-a com  tamanha maestria , que arrebata a  platéia e o próprio  Marcos Portugal, que passa a respeitá-lo.

Como se sabe, Dom João teve uma vida conjugal destituída de encantos, e sentindo-se um estranho entre fidalgos que aqui viviam sem cultura ou refinamento social, procurou derivativos na sua  paixão pela música ,e por uma boa mesa .Em recente conferência no  Instituto  Histórico e  Geográfico de  São Paulo , o  Príncipe   Dom  Luiz de  Orléans e  Bragança contou -nos que o  Príncipe Regente adorava sardinhas,e por não encontrá-las em nossas  águas , mandou vir de Portugal , um navio com um  carregamento delas vivas , despejando-as na  Guanabara ,iniciando assim a sua criação nas costas  brasileiras.Não era um glutão, como costumam dizer , mas talvez  ... um guloso gourmet , e o seu  amor pela música era tão  evidente , que em certa  ocasião desalojou determinado  marquês e sua  família da Quinta da Boa Vista , para alojar os seus  músicos . Inquirido pelo que  fazia, respondeu:

- Um marquês faço uma penada, mas com um músico levo anos  e muito dinheiro para fazer.

Fonte -  Jornal  das  Letras  -   *  Sônia  Sales é membro da  Academia Carioca de Letras 


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