segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O crime da complacência



Quando Joaquim Nabuco escreveu que a escravidão ficaria por muito tempo como uma característica da sociedade brasileira , estava querendo dizer que a formação nacional tinha sido estreitamente vinculada à mentalidade do sistema  escravista . Quando a burocracia  portuguesa se transplantou para a colônia , em 1808 , foi porque as riquezas locais permitiam a ela confrontar os outros poderes europeus . A unidade foi instalada a partir da capital ,pelo regime monarquista e o Brasil  deixou assim de criar seu Estado  –  Nação    a partir das exigências do mundo moderno ,industrial , e demorou a conhecer aquilo que Sérgio de Holanda chamou de “ ideologia impessoal do liberalismo “ .

Como resultado , nossa cultura sustenta  valores que resistem a isso , a começar por aqueles que nossa in-telectualidade e nossa plutocracia tratam de propagandear sempre.Embora se julguem de esquerda , nossos acadêmicos – funcionários públicos que normalmente escrevem em linguagem empolada para disfarçar a au-  sência de Nabuco ao endossar o paternalismo e o clientelismo dos políticos que vêm impedindo a economia brasileira de  ter a  liberdade e competitividade necessárias para seu crescimento no século 21 . Falam tanto em “ identidade nacional “ e têm tanta certeza da originalidade vocacional da cultura brasileira , de seus po -  deres dionisíacos ,de sua índole “ afetuosa e específica “ , que deduzem que o mal-estar da civilização brasi-leira é sempre causado pelos estranjas .

É por isso que as poucas mas relevantes tentativas de romper com a apropriação do dinheiro público pelas corporações e oligarquias , de começar a pôr um pouco de ordem na bagunça nacional , são tão difíceis de implementar . Há certamente um diagnóstico comum e razoável a respeito dos erros cometidos pelo governo Cardoso – como a falta de reformas estruturais e vigor exportador , que poderiam  ter iniciado o desprendi-mento da armadilha dos juros - , mas o que mais incomodou aos outros em sua gestão foram essas tentativas , especialmente a lei fis- cal. Não , o desmonte do Estado getulista não implica o abandono dos canudenses à sua triste sorte , mas justamente o contrário .Já passa da hora de os (de ) formadores de opinião enxergarem isso .

O cotidiano está  repleto de exemplos de que a civilização   moderna , que antes de mais nada  preza pelos direitos de cada indivíduo , ainda tem muito por avançar no Brasil . Há máfia de tudo quanto é tipo no país , do narcotráfico aos combustíveis ,e a Justiça mal tem instru-mentos para combatê-la , porque seu sistema é conivente com a  impunidade e a lentidão . O amadorismo ainda continua a ser a  marca gestora da maioria das empresas , dos clubes de futebol aos grupos de mídia . As separações entre políticos e privado e entre conteúdo e propaganda ainda são nubladas para proveito do populismo .E ,em conjunção com tudo isso ,os os preconceitos seguem firmes e fortes . O machismo , por exemplo , continua a dominar o ambiente , como se vê na TV aberta e seu desfile diuturno de mulheres – objeto . Somos  sensuais , não é mesmo ?

Já o racismo continua a ser mais negado e o mais arraigado desses traços culturais pré – industriais .O racismo brasileiro se  exprime na forma de piada , da humilhação passada como descontração , do tapinha nas costas . Por isso , é tudo como mais inofensivo do que o de outros países ,afinal a miscigenação é nosso maior orgulho, nosso dado preferencial . E justamente por isso ele é mais ofensivo . A forma como o sistema escravista ainda sobrevive à modernização econômica se alimenta desse jogo de aparências , desse hiato tão brasileiro entre o que se   fala e o que se faz . O sujeito que se gaba da nossa “ democracia racial “ é muitas vezes o mesmo que não contrata negros para sua empresa e que ofende gar çons e secretárias por não serem servis .

Fonte - Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO - pág D3                                                                                  Domingo , 15 de dezembro de 2005   - Daniel  Piza 




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