Negado durante anos , o “ povo brasileiro “ foi recentemente “ redescoberto “ pela historiografia . Agora só nos falta aceitar
Quando o BRASIL NASCEU , logo na primeira Constituinte , em 1823 , houve uma discussão o que seria ter direitos políticos e que direitos seriam esses . A noção de povo estava no centro da discussão . Será que o Brasil teria um povo,
na forma como os europeus entendiam este termo ? Bem , para os franceses , por exemplo , era claro . Francês era francês , mesmo que o país tivesse várias etnias , verdadeiras micro - nações lá dentro falando bretão , occitane etc .Os americanos chegaram até a resolver o problema , entronizando a ideia de “ país dos imigrantes “ na própria justificativa de ser . .
Mas e o Brasil ? Teríamos um povo realmente , ou o que havia aqui era um agregado informe de gente de diferentes procedências , composições prefixadas , escravos e senhores , falando línguas diversas , sem nada que os unisse além da inevitável relação de trabalho ? Seria essa gente uma massa , sem um nexo ideal comum , uma cultura que os unisse para , enfim , formar uma nação ? Salvo um ou outro liberal radical , eram poucos os que incluíam índios e escravos no povo . Eram outra categoria . Estavam fora daqueles direitos e deveres comuns que chamamos hoje em dia de cidadania .E o resto ,nas cidades ,era uma “ África “, como diziam os viajantes , entre irônicos e temerosos , de um país que não entendiam . A fina nata do pa-triciado brasileiro concordaria com isso .Entre eles e os escravos , o que havia era uma “ população “ , um arremedo de povo ,algo ainda em construção .Era preciso educá-los , ivilizá-los .Se possível branqueá- los .
Esta visão racista e desesperançada , que não conseguia perceber senão anomia , desagregação , teve im-pacto na historiografia .Nos nossos primeiros manuais de história ,os descendentes da mestiçagem , entre europeus , índios e negros ,estavam fadados ao silêncio .Não eram percebidos como protagonistas de nada . Eram ou massa de manobra ,ou ralé incontrolável destruindo a ordem - ordem esta que podia ser ruim , mas era a que nos dava a lógica certa do cotidiano ,pensavam os primeiros ideológos do Brasil .O que havia de bom era feito nos palácios . À população analfabeta e miserável restava esperar o futuro . Esta percepção, no final do XIX , ganhou amparo em teorias pseudocientíficas racistas ,e higienistas , pois também era preciso separar essa massa dos " verdadeiros " cidadãos , ou seja , os proprietários .A propriedade ,o voto censitário delimitavam as categorias .Houve até intelectuais que acredi-tavam que ,com o passar do tempo e a ajuda da imigração europeia ,o Brasil se bran-quearia , se alfabetizaria , se civilizaria , alcançando algum dia esse ideal maior de se construir , finalmente , em nação . Éramos , assim , o país do futuro . Era só esperar .
A História do Brasil , como aliás a de praticamente todos os países do mundo ,nasceu estudando os " gran-des vultos " , aqueles personagens das elites que marcaram a época em que viveram . Isto é antigo ,pois a História s urgiu como o estudo dos grandes homens , dos grandes feitos . As nações apareciam através dos seus líderes mais destacados . Para os gregos antigos , a História era um desdobramento da poesia , para poder melhor venerar os heróis É natural que tenha sido assim . Até hoje nos encanta saber mais que tenha sido assim . Até hoje nos encanta mais sobre pessoas marcantes .É como se através delas a gente pudesse entender o mundo em que viveram . Mesmo gente sórdida , como Hitler ou Stálin , fascina . Acalenta-nos tam-bém saber que passaram , que foram vencidos pelo tempo ,senhor de todos os destinos .Acalenta-nos também saber que houve grandes personagens da paz , do conhecimento , pessoas que , em suas vidas , representaram valores que respeitamos , justificando tantas biografias de filóosofos , pensadores e políticos que visualizavam um mundo melhor , como Mandela ou Gandhi .
A história tem também uma finalidade política . ela pode ser um instrumento poderoso para quem está no poder ou , ao contrário , para quem o combate . Assim , quando nasce um país , quem está no governo tem que se autojustificar perante as gerações futuras . Num passado remoto , havia sempre algum mito fun-dador , algum semideus para criar a nova nação e o seu povo .Rômulo e Remo mamaram numa loba para fundar Roma . E quantos reis medievais não tomaram diretamente de algum santo , ou mesmo de Deus , a justificativa do seu trono ? Portugal mesmo foi fundado no milagre de Ourique , quando Afonso Henriques teve uma visão do Senhor que o protegeu e lhe comunicou que iria ganhar suas batalhas .O milagre fundou o reino .O século XIX , todavia, era o século da razão , não havia mais lugar para justificar o surgimento de um novo país por algum mandato divino .No mundo laico ,cabia a História tecer essa justificativa .O Império do Brasil precisava de uma história oficial que justificasse a monarquia , a escravidão ,para falar apenas dos dois pilares mais evidentes sobre os quais fomos fundados .
Ao nascermos , pisando em um manto de café , cana , fumo e algodão , é óbvio que nossos primeiros ma- nuais tenham legado a barões ,condes , duques ao imperador aconstrução de algo maior do que o lugar do povo tenha sido pequeno em nossa históoria oficial .O homem comum tinha que ser guiado .Se possível edu- cado , para no futuro , quem sabe, tornar-se ele mesmo um protagonista do teatro social . Um dos quadros mais conhecidos do Brasil é aquela cena inventada por Pedro Américo para Independência Nela se vê um grupo levantando espadas , saudando Pedro I . No canto esquero do quadro ,um homem humildemente tra- jado , guiando um carro de boi com uma vara , assusta-se diante daquela gente ricamente fardada e a cavalo .
Era como se perguntasse : " o que é isso ? ".
Seria este o papel do povo brasileiro ? Ser moldura do teatro da história ? Assistir , apenas , àquilo que não entendia ? Nesse modelo de História , não éramos protagonistas , mas somente espectadores .
Nas últimas décadas tudo isso mudou radicalmente . A queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria e das ditaduras na América Latina aceleraram a quebra de an-antigos paradigmas das ciências sociais . Já não se lutava mais apenas por comida , pelas liberdades mais simples ou pelo direito a representação -popular , mas também se lutava pela natureza , pelos direitos à sexualidade , pelos direitos da mulher e da infância , pelos direitos humanos . O mundo era outro . " A gente não quer só co-, quer também diversão e arte " , dizia a música dos Titãs do final dos anos 1980 . esse torvelinho de novas demandas entrou na academia , estremeceu velhas prateleiras , misturou pastas amareladas pelo tempo e escancarou a janela para o passado , precisava ser reaberta de forma mais ampla . Havia outros agentes a se estudar.
A vida humana é imensamente rica .Praticamente qualquer coisa pode ser objeto de estudo .o espectro de possibilidades de pesquisa do historiador , todavia tem limites. Ele não faz literatura . Ele não pode inventar um personagem , um e um processo histórico que nunca existiram . Ele pode , infelizmente , até errar , mas mentir é desonesto .Ele depende , portanto , de indícios , de fragmentos , com sorte , de evidências sobre processos passados , e assim explicá-los , entendê-los , ao menos , apresentá-los a nós para que conheçamos melhor o que fomos , mesmo que o nosso entendimento sobre esse passado seja sempre menor do que gos-taríamos que fosse .
Hoje , em História , estudamos muito . Quer dizer , tudo aquilo sobre o qual temos fontes e artefatos que nos proporcionam a possibilidade de observar o passado . Estudamos da sexualidade ao cotidiano . Da cozinha da casa-grande à vida de trabalhadores portuários . De protistutas a frades .Uma das grandes vi-radas da historiografia contemporânea foi trazer à tona a vida das pessoas comuns , como eu e você , que você está lendo este texto .
Seria injusto , todavia , dizer que somente na contemporaneidade os historiadores brasileiros se preocu-param com as pessoas mais simples . Alguns dos nossos pen-sadores mais conhecidos anunciaram esta questão há muito tempo , Capistrano de Abreu abriu o caminho ao tentar visualizar a ocupação do Brasil mais profundo por levas e levas de imigrantes portugueses anônimos ,caboclos e mulatos . Gilberto Freyre , mesmo falando a partir da casa-grande deixar claro que os escravos foram protagonistas da História do Brasil cuja cultura foram marcados por eles e também pelo índios . Sérgio Buarque de Holanda , como que continuando o caminho aberto por Capistrano , tentou identificar o ethos ,o modo de ser , do brasileiro justamente nesse indivíiiduo simples que tinha no personalismo e na emotividade o seu traço mais marcante . Caio Prado Júnior deixou claro também que , por mais " capado " e " recapado " que o povo tenha sido , na expressão de Capistrano , ele não estava condenado à anomia , mas destinado a algo-maior ,quem sabe , a uma revolução .
Entre desesperanças , conjecturras e sonhos , o fato é que cabe aos historiadores mergulhar nos arquivos e buscar indícios e evidências de processos passados . E foi nessa busca que nas últimas décadas ficou claro que o Brasil tinha "povo " . parece óbvio , mas durante muito tempo não foi . O Brasil digeriu o que recebeu , e recriou um modo de ser próprio . E mais , a historiografia contemporânea tem demonstrado que o povo foi protagonista da história . Ele não assistiu abestado ao que acontecia ao seu redor como o pobre coi-tado lá na pintura de Pedro Américo .
Só o protagonismo popular teve que ser buscado em outro locais .De fato , era difícil encontrá-lo nos palá-cios , raramente no Parlamento . Estava nas ruas , nos engenhos ,nas fazendas , no cotidiano urbano e rural , nos tribunais .Tudo bem estava até nos palácios e no Parlamento também - dentro deles , através de uma multidão de trabalhadores domésticos . Fora desses espaços , mas bem perto da entrada ,não faltou multidão pressionando , nem sempre em silêncio , às vezes até ameaçadora .
E foi assim que a historiografia - que hoje é imensa - mostrou , por exemplo , que os escravos foram os principais protagonistas do processo de superação da escravidão . Ficaram claras as inúmeras estratégias que empregaram para minar a instituição, resistindo ao trabalho , fazendo fugas temporárias , colaborando para a compra da alforria . Da mesma maneira , perscrutaram-se as formas de convívo entre povos na-tivos , quilombolas e as populações rurais em geral , que , faziam alianças entre si e,eventualmente , até com proprietários rurais e agentes do poder , mas não o faziam aleatoriamente , pensavam e pesavam quais ali- anças lhes seriam mais vantajosas . Nas cidades , além da resistência escrava , a população livre e pobre pouco a pouco foi criando meios de organização , inclusive com vínculos com a Igreja , como é o caso das irmandades . Consolidaram também formas de associativismo e ajuda mútua não muito diferentes daqueles que ocorriam na Europa nessa época . Mesmo mulheres praticamente encarceradas em conventos e recolhi-mentos criaram um mundo próprio , muito diferente daquele que era esperado delas .O povo não foi objeto . Foi agente da história .
Esse protagonismo das pessoas comuns que possibilita uma história popular do Brasil . Sabemos hoje que os homens e as mulheres pobres participaram de vários dos momentos fundadores da nacionalidade . Talvez o historiador José Honório Rodrigues estivesse certo ao dizer que todas as nossas revoluções foram derrotadas . Ao final dos momentos mais marcantes da história , ele afirmava , a elite dominanate sempre se reconciliava e fazia algum arremedo de reforma , estancando o movimento que vinha do andar de baixo .Mas será que somos assim tão coitadinhos , fadados à mesmice , anos conformarmos com o queá posto ?
A literatura recente tem revelado outras possibilidades . O povo este presente na Independência , tentando se fazer representar . Esteva em inúmeros protestos pelo país afora contra os desmandos da cllasse senho-rial e do patriciado urbano . Esteve no movimento abolicionista que , hoje sabemos , não foi só palaciano , pois sem a resistência escrava não teria frutificado . A abolição demorou a vir , mas veio apesar de todos os interesses econômicos em seu favor e de um bem sedimentado racismo pseudocientíiiifico . As mulheres não eram sempre obedientes a seus pais , maridos e irmãos . A população urbana vivia uma religiosidade fervorosa , mas uma religiosidade própria , distinta daquela que era esperada pela união Igreja - Estado . Houveve até um republicanismo popular , vinculado ao abolicionismo , a trablalhadores das nossas pri- meiras manufaturas , diferente do republicanismo escravista de produtores de café insatisfeitos com a mo-narquia . Foi das ruas que veio o protesto ,a resistência , a força motriz para a queda das nossas ditaduras do século XX , a de Vargas e a de 1964 . Tudo bem que a queda de Vargas e a dos militares tiveram o impulso de conjunturas internacionais favoráveis , mas quem conduziu o timão foi o protagonismo popular .
Todos os nossos avanços políticos e sociais mais só aconteceram devido a esse protagonismo popular .Não quero dizer com isso que fizemos revoluções , que chegamos à utopia . Muito menos cair na armadilha pan- fletária de achar que o mal sempre vem de cima e tudo que é feito com apoio popular é necessariamente o melhor . Afinal de contas . Hitler foi eleito . É possível , sim , enganar muitos por muito tempo .A história ensina isto. Mas o fato é que as nossas demandas populares mais avançadas não foram sempre derrotadas . Vencemos a escravidão .Vencemos as ditaduras . Criamos um país que se não está no primeiro mundo , também não é nem de longe o pior lugar para se viver . Enfim , temos povo . Temos protagonismo po- pular . É possível e é fundamental fazer a História do povo brasileiro.
Revista - História Da Biblioteca Nacional Janeiro nº 9 - nº 100 - 2014 - Nós O Povo Cem páginas sob uma perspectiva incomum da formação nacional
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