quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

O ' point ' muçulmano

 





Com  café  , restaurante , teatro  e  até  rinque de  patinação , o  Pavilhão  era  o local  da  moda                  no  Rio  na  virada do  século 

SITUADO  NA  PRAIA  DO  BOTAFOGO , às  margens  da  Baía da  Guanabara e de costas para a  entrada do  Túnel  do  pasmado , no Rio de  Janeiro , o  moderno Centro Empresarial  Mourisco domina        a área com sua  fachada totalmente espelhada . O  prédio , assim como várias  lojas  do  bairro e  algum  condomínio vizinho , é chamado de  “  Mourisco “ em  referência ao  pavilhão  que existia ali . Do antigo edifício só restou  o nome . Sua  imponência  e sua originalidade  arquitetônica  foram  apreciadas  por me -nos de  um século  entre 1907  e 1952 .

Mas o que fazia  um pavilhão árabe na  beira do mar , numa das  áreas  mais  chiques  da cidade naquela época ? No início do  século XX , o prefeito Francisco Pereira Passos  deu a um plano modernizador  da capital do país . Entre outros problemas ,era  preciso melhorar a comunicação entre o  Centro e os bairros situados na  Zona  Sul , para onde a  cidade se expandia .Para isso foi construída a  A Avenida  Beira Mar , no  grande areal que ia do  fim da  Avenida Chile ( atual Cinelândia ) até a  Praia de  Botafogo . Ianugurada em  1906 , tinha mais de cinco quilômetros de  extensão e 25 metros de largura – espaço de sobra para os  primeiros automóveis que começavam a circular na cidade .Marcando o fim da  bela  avenida , foi erguido      o Pavilhão Mourisco . 

De  formas orientais ,exuberantes e  caprichosas , a arquitetura  muçulmana  ( ou “ mourisca “ )  vinha influ-enciando havia  séculos as construções europeias , via Península  Ibérica . No tempo de  Pereira  Passos , triunfava no  brasil a  arquitetura  historicista , uma revisão dos  estilos  do passado atualizados  para a  so-ciedade moderna . Elementos do  período colonial  e da  tradição  luso - brasileira eram  deliberadamente rejeitados e  destruídos .Em seu lugar , ganhou peso o desejo de  europeizar-se , imitando os  mais diversos estilos . Daí o  surgimento dos  estilos “ neo “ : neorromântico , neoárabe , neonormando , neogótico , neo-egípcio . Era o tempo do ecletismo , das releituras , enfim , da  quebra definitiva com a  velha  tradição . 

O  Pavilhão Mourisco seguiu essa tendência . O  prédio neomourisco foi  concebido pelo arquiteto Alfredo  Burnier ,então chefe da  seção de  Arquitetura  da Diretoria Geral de Obras e Viação ,para servir de café e  restaurante .O trabalho de construção ficou  a  cargo do  Major  Thomé  de  Moura e a  instalação elétrica      ( uma grande sensação na época foi feita pela  Companhia Brasileira de Eletricidade .A parte decorativa foi realizada pelo  artista italiano  Orestes Sercelli , radicado no  Brasil desde  1896 . Sercelli  e seu filho Bruno seriam autores também , entre outras obras , da  decoração da  Igreja Matriz de  São Paulo  nas primeiras décadas do século  XX.

O  prédio era de planta retangular e tinha em cada extremo uma terra hexagonal que se erguia sobre esbeltas  colunas de  inspiração  árabe , lembrando o Pátio  dos Leões da  Alhambra de  Granda , na Espanha .Cada  torre tinha uma cúpula dourada em  forma de bulbo .No corpo central despontava uma  torre maior ,que ,as- sim como as outras , acabava com elementos de metal coroados com a  meia-lua . As cúpulas eram cobertas de  cerâmicas com  reflexo metálico , o que produzia um  efeito brilhante sob a  luz do sol .Lembravam outras  cúpulas produzidas pela  arquitetura  islâmica como a da  mesquita  Al Askari ,em  samarra ( Iraque ) ,erguida em  1905 –  talvez  inspiração para o projeto darioca . Sobre o  corpo central  de  alvenaria surgia uma  ar - mação  metálica , com terraços sustentados  por colunas de  ferro fundido.

As  cerâmicas e os azulejos artísticos que revestiam  e decoravam toda a parte eterna eram  importados  de  Valência , na  Espanha . A  cidade  espanhola  foi , tradicionalmente , um dos  principais centros  produtores de  cerâmica . Dali  surgiu  a  chamada  " cerâmica de Manises " ( século XIV ) , caracterizada pelo  esmalte com  reflexos metálicos e muito usada por  muçul-manos andaluzes . As  cerâmicas  do  Pavilhão Mourisco  provavelmente  foram  feitas  pela fábrica  La Cerâmica Ceramo , fundada em  1855 , que produzia e vendia para a  América do Sul peças muito parecidas com aquelas  cúpulas e fachadas . 

Em cada lado das  torres havia  portas verticais que terminavam em arco de ferradura , e nos corpos laterais , os  três acessos tinham forma de ferradura apontada . No alto da  entrada  principal apareciam , escritas em  árabe , as  palavras  " Café  Cantante " .

O  teatrinho  infantil tinha a boca de  cena voltada para o  Pavilhão . Assim os pais podiam  assistir ao  espetáculo ( e  observar  seus  filhos ) da  varanda 

Três grandes terraços destinados ao café ficavam na frente frontal  e  nas laterais , com duas escadarias de acesso , acompanhadas por  postes para a iluminação  noturna do exterior . Em to-das as aberturas havia  vitrais  de cores que provocavam  belos  efeitos de  luz  no salão interno . Nele  funcionava o  restaurante ,  que contava com quatro torres como salões reservados .Elementos arabescos -com  formas de folhas , flo-  res , frutos e  cintas - de várias  cores cobriam  paredes , colunas e teto .O  interior da cúpula  central  era sustentado por quatro colunas centrais com apliques de  luz elétrica . Do teto pendiam várias luzes de sete lâmpadas .O piso era feito em parque , com peças de  madeira paralelas .A cozinha , a copa e o  bufê  fi -cavam no  térreo , sendo os fregueses servidos por  meio de  um elevador  duplo instaladao no meio do sa- lão .

No  exterior do Pavilhão encontrava-se  o Teatrinho  de  Guignol , um local aberto para a exibição de  títeres  e marionetes , cuja boca de cena ficava  voltada para o  Pavilhão , de modo que  os pais  podiam assistir ao  espetáculo  ( e  ao observar  seus filhos ) da varanda . Também foi construído  um  rinque  de patinação , ao redor do qual foram  plantadas árvores , que  anos depois ganharam altura . 

O Pavilhão ficou rapidamente conhecido como  ponto da moda do  bairro de  Botafogo . Em novembro de  1906 , dois dias antes de  terminar  seu mandato , o  presidente  Rodrigues Alves ( 1848 - 1919 )  visitou a  obra , quase  pronta .O  Jornal  do  Brasil noticiou em  detalhes a  visita , aproveitando para  elogiar a  mais nova  joia arquitetônica da  cidade : " Esse  restaurante ainda  não está concluído , mas o conjunto de  suas lineas é belíssimo efeito ,e a combinação das cores , de  ouro e prata , até a  matização dos azulejos ,produz no espectador um efeito de  um  cromo artíistico e  bem cuidado " . Inaugurado  no  início  do  ano  seguinte , o  Pavilhão passou  a ser muito frequentado , servindo de abrigo  para  o carioca  se  refrescar do  calor do  verão e  passar as  tardes  com a família , depois de  passeios pela  Avenida  Beira- Mar e  pelo  Jardim da Praia , com  suas 735 árvores , 380  plantas  e 6.230  arbustos ornamentais . Às  quintas - feiras , as damas do bairro encerrravam  ali  seu passeios em vistosas  carruagens puxadas por cavalos . 

O  Pavilhão  não era o único prédio de  estilo neomourisco  na cidade .Quase simultaneamente  ao  de Bo- tafogo , foi  erguido o  palácio do  Instituto  Oswaldo  cruz , em  Manguinhos  [ ver  RHBN  nº 25 , outubro de  2007 ] , projetado pelo  arquiteto português Luís Moraes Júnior ( 1868 - 1955 ) .Outubro  belo exemplo é a  Basílica do Imaculado Coração de Maria , no Méier , de  autoria do arquiteto espanhol  Adolfo Moraes de  los Rios  ( 1858 - 1928 ) . 

Outros prédios ficaram conhecidos como  " mouriscos " por  erros de  idenbtificação , uma vez que a  popu-lação  não  estava  habilitada  a perceber  as  diferenças entre  estilos  arquitetônicos . Foi o caso do  " Café Mourisco " , construído em  1905 na esquina da  Avenida Rio Brancos com a  Rua do Rosário . O nome po-pular dado ao café  não conduzia  com a obra , assinada pelo mesmo Adolfo Morales  de Los Rios . Foi ele quem veio a  público esclarecer que se tra-tava , na verdade , de  um  prédio neopersa .

Nos  anos  1920 , o restaurante  mourisco de  Botafogo  já tinha  saído de moda . Em 1934 , foi  convertido em Biblioteca  Infantil do  Distrito Federal ,onde mais tarde trabalharia a  poeta  Cecília  Meireles , em ativi-dades que incluíam  cinema , música , desenho e jogos . Jovem por dentro mas  velho por fora , o  Pavilhão não resistiu  às mudanças  bruscas da  modernidade . Depois de  servir por um  posto abaixo de  1952 , na  administração do  prefeito João  Carlos Vital . Demolido por  " exigência do  progresso " , daria  espaço  ao  Túnel do  Pasmado , que abre caminho  entre Botafogo e  Copacabana .

O terreno ficou vazio por  três décadas , até que nos anos 1990  foi  edificado no lugar o Centro Empresarial  Mouriso . A obra , concluída em  1998 ,correspondia aos  princípios estéticos do  pós-modernismo : grandes volumes geométricos , cores contratadas e acabamentos sofisticados e  brilhantes , produzidos pelos  vidros belgas da  fachada , com seu alto poder de  reflexão . Com cerca de 54 mil metros quadrados , doze  pavi-mentos , dos  quais sete andares comerciais , dosi subsolos de  estacionamento e até um  helioporto , o edi- fício não  conseguiu  ( nem tentou ) mudar o  nome do  seu  antecessor . 

Pelo menos na  memória fica o  registro de  um tempo em que a  arquitetura  muçulmana ocupou um  dos  endereços  mais  nobres  do  Rio  de  Janeiro  .

Fonte  - Revista História  - Arquivo D. H. D                                                                                            Data  - 2009  - Dossiê  Árabe  no  Brasil                                                                                                        

ROSSEND  CASANOVA  -  É  PROFESSOR DE  HISTÓRIA DA  ARTE  NA  ESCOLA  UNIVERSITÁRIA  DE  TURISMO  SANT IGNASI  , EM  BARCELONA  , E  CO - AUTOR  DE  GAUDÍ  202 , MISCELLANY  ( EDITORIAL PLANETA , 2002 ) 




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