terça-feira, 25 de outubro de 2016

Sidney Poitier repassa a vida e vira “best-seller“


Na  nova autobiografia, ator  subtrai as  passagens  e   fala da  dura  tarefa  de sobreviver num mundo hostil
  
Aos 80 anos, Sidney Poitier está na lista de best-sellers do “ New York Times  “ . O livro que conquistou o grande público americano, com aplausos entusiasmados da apresentadora de TV  Oprah Winfrey, é “ The measure of a man “ , editado pela Harper Collins. E a surpresa foi tanto maior porque é sua segunda autobiografia, sem grandes novidades em relação à primeira, e nem revelações bombásticas. O que levou à lista de best-sellers  ? É que ,  neste livro  , Sir Poitier  - o ator, que nasceu em Cat Island, uma das ilhas da antiga colônia inglesa das Bahamas, recebeu da rainha Elizabeth II o título da cavaleiro do Império Britânico – fez mais do que autobiografia: escreveu um balanço da vida, um acerto de contas com sua própria trajetória, em tom de conversa com seus leitores, para descobrir sua própria “medida “ como ser humano, a mesma de milhões de outros. Poitier subtrai o que é excepcional em sua trajetória e vai simplificando.
- Muitos anos atrás, escrevi um livro sobre a minha vida, que era em grande parte sobre a minha vida em Hollywood. Recentemente, decidi que queria escrever um livro sobra a vida, sobre o que aprendi vivendo mais de 70 anos... Queria falar da minha experiência e, mesmo sem ter consciência disso, daquilo que eu tinha aprendido da experiência dos meus pais.

O  que  conta  são  cenas 
Da  infância e  de  solidão  

Mais do que os grandes feitos do homem que ganhou o primeiro Oscar de melhor ator entre os negros nos EUA, o que está em destaque é o retrato do artista como um ser humano qualquer diante da dura tarefa de sobreviver num mundo hostil. O que conta são as cenas marcantes da infância e os momentos de profunda solidão. As lembranças da falência do pai, plantador de tomates  em Cat Island, quando os EUA decidiram embargar tomates vindos do Caribe, e a mudança da família para Nassau, capital das Bahamas, onde seu passaria a vender cigarros de bar em bar.
- Quando eu era bem pequeno, ia à praia com meus pais no Caribe. Minha mãe costumava me atirar na água e ficava imóvel vendo eu me debater para não afogar. Quando eu estava quase me afogando, sentia a mão do meu pai me fisgar e me jogar nos braços de minha mãe. Então ela me jogava de  novo...
Essa mãe, quase muda, o que mal trocava meia palavra com a família, é talvez a figura mais dura e mais presente na vida de Poitier. Ao lado dela, um pai sofrido de ver comida escassa no almoço, numa casa que não tinha luz elétrica nem telefone. O aprendizado da sobrevivência, para o ator, passavas então por esta estranha capacidade de entender os pais apenas pelos gestos ou pelas expressões faciais.
- Minha mãe era tão desarticulada que praticamente só se comunicava com meu pai. Mas a quieta atmosfera da minha infância me levou a compreender a linguagem do corpo. Era assim que eu entendia o que meus pais queriam e o que eles realmente estavam exigindo de mim. Isso foi a base da minha “inteligência emocional“, a capacidade de perceber o que se passava além das palavras.
Esse aprendizado da silenciosa arte da sobrevivência seria precioso  em sua adolescência, para enfrentar a escola no Harlem com seu sotaque caribenho, já tendo sua família migrado para Nova York. Mais do que remodelar o sotaque nos primeiros anos na Broadway e em Hollywood, ele conquistou seu lugar pelo porte, que transpirava dignidade. Assim, viu-se abrindo caminho para os negros, no período em que a luta pelos direitos civis recrudescia nos anos 50 e 60. Sua resistência a integrar o elenco de “Porgy and Bess“, por considerar a ópera de George Gershwin era, naquele momento, inoportuna, por apresentar negros pobres, ignorantes e subservientes, seria pouco diante da reação ao seu tremendo sucesso em 1968, emplacando três das maiores bilheterias do cinema do ano, com “ Ao mestre com carinho “ , “ No calor da noite  “ e “ Adivinhe quem vem para jantar “.

“ Teste social  “ para  “ Adivinhe Quem vem para jantar “

- Na época, o “ New York Times  “ publicou um artigo intitulado: “ Por que os brancos gostam tanto do Sidney Poitier?“. Todos me perguntavam por que eu não estava revoltado e nem partia para o confronto com os brancos, num momento em que muitos afro americanos faziam isso. Diziam que era um “ Pai Tomás “, o negro da senzala, que não criava problemas para as plateias brancas. E muitos ativistas diziam: “Qual é a mensagem desses filmes  ? Quer dizer que negros só serão aceitos pela sociedade branca se forem duas vezes mais brancos que os brancos   ? “ 
O ator se viu em cheque naquilo em que mais acreditava: personagens negros deveriam ter dignidade no palco para ser afinal assimilados socialmente. Só assim o cinema poderia muar o mundo... E dignidade  , para ele , era sinônimo de ausência total de subserviência. Poitier conta que foi convidado par um jantar com Spencer Tracy e Katherine Hepburn para ser avaliado pessoalmente antes de ser chamado para “ Adivinhe quem vem para jantar “. Era um “teste social“, para medir a postura de Poitier. Não importava que já tivesse um Oscar de ator, isso poderia eliminá-lo do filme.
- Mesmo sendo famosos queriam avaliar pessoalmente os riscos de fazer um filme que questionava preconceitos diante do casamento inter-racial. A postura de atores liberais e esclarecidos, na elite de Hollywood   não era diferente do restante da indústria na hora de administrar os riscos para a carreira.
Bem mais duro do que enfrentar esse outro preconceito foi voltar para as Bahamas e observar a pobreza de seu país:
- Descobri que aquela não seria jamais a minha casa outra vez. Quando ia a jantares em Hollywood, eu me sentia a mesma pessoa do tempo em que tinha que fugir dos tiras de Miami, nas constantes batidas policiais. Mas voltar às Bahamas depois do conforto da vida nos EUA me fez ver que a pobreza havia deixado marcas na minha vida para sempre. Eu sofria do que chamo de “síndrome da miséria“, um pânico de voltar a viver em condições miseráveis. Por mais dinheiro que eu tenha hoje   sou muito cuidadoso na hora de gastar, ainda conto dinheiro, com medo de um dia acordar e me ver naquela vida que eu tinha. A miséria pode matar de fome, mas o conforto é ainda mais perigoso  ele rouba a sua alma, altera a sua sensibilidade. 
Poitier abriu caminhos, trabalhou muito, deu o melhor de si, defrontou-se com a morte ao passar por uma cirurgia de câncer de próstata e descobriu que o que importa são as relações de afeto. “ The measure of a man “ não tem auto-elogios. É a história de quem viveu sem se deixar vencer pelo medo e pela amargura. E, ao reexaminar a vida, revive boa parte da História recente dos EUA. Ele ainda emociona, defendendo a dignidade negra, num tempo em que Martin Luther King é um herói do passado e o maior nome da causa negra chama-se Barack Obama. Talvez seja isso que, aos 80 anos, Sidney Poitier está na lista dos best – sellers.

Fonte  -  JORNAL    O  GLOBO     Segundo  Caderno  pág  2
Sábado, 21/07/2007                    Marília  Martins 


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