sexta-feira, 3 de dezembro de 2021



 O  som  que  vem  do  Beco

Colunista  convidado 


“ O  Beco  das  Garrafas era  o  Bottle’s  Club , o  Little  Club e  Baccarat . Nos dias mais cheios , as pessoas sentavam pelo chão para ouvir  o  som  da  rapaziada . Eram  todos  jovens .”


‘Uma noite dessas , ouvindo um solo de  Paulo Moura , viajei pelos momentos mais inspirados da  música  brasileira . Se você vier comigo, vamos passear por Pixinguinha , Villa Lobos , Garoto , vamos virar uma esquina e esbarrar em Tom , Baden, Moacir Santos , vamos em busca da  felicidade pelos bares de  Copacabana até a noite baixar todas as portas, apagar todas luzes , fechar todas as cortinas e deixar os  homens sérios dormindo em casa, enquanto as mulheres alegres saem para a rua. Vamos esperar bater 

a meia-noite, até que não haja vivalma em nenhuma esquina . Aí sim, vamos penetrar nos porões onde a vida explode sem medo e nos perder na fumaça dos cigarros,nos em-bebedar no perfume do do uísque , nos afogar nas taças de champanhe. 


O  solo de  Paulo Moura me leva para o início da década de 60, quando, ainda bem menino, ficava ouvindo a conversa dos tios e tias. Mas tinha um assunto que sempre me atraía . Se vocês me derem licença , vou tentar lembrar .Naquela época ,só existia uma farmácia Santa Joana . Ficava na Miguel Lemos com Avenida de  Nossa Senhora de Copacabana, esquina barra-pesada, semente da juventude transviada .A Santa Joana era de um primo de minha mãe . E o gerente da noite era um dos meus tios . Personagem inesquecível. Ele contava da amizade com músicos  maravilhosos ,seus fregueses  na madrugada,que improvisavam como ninguém e,trocando o dia pela noite,tocavam até o sol raiar .


Esses músicos passaram a fazer parte da minha vida. Eu comprava LPs e ficava enlou-quecido com aqueles improvisos espetaculares . Não perdia um  show de qualquer um deles nos  teatros ,bares e clubes da cidade . Eram  trios,  quartetosquintetos,solistas.

O mais impressionante é que cada um tinha o seu estilo e eles se tornaram tão impor- tantes quanto os músicos americanos de jazz, com discos lançados e músicas de rádio .


E hoje, com uma frase meio blues , meio Norte da África. Paulo Moura nos conduz mais uma vez à turma que se reunia pra tocar no  Beco das Garrafas, na altura do  Posto 2 , ali na  Rua Duvivier . O  Beco das Garrafas era o Bottle’s Club , o Little Club e o Bacacarat . Os três eram mínimos , muito pequenos mesmo. Nos dias mais, as pessoas sentavam pelo chão para ouvir o  som da rapaziada. Eram todos jovens. Estavam tocando exa-tamente o que queriam tocar.Novas harmonias, novas melodias , divisões inusitadas, batidas dife -rentes .Experiências que começavam a formar os fundamentos da  bossa-nova . Eles eram brancos, negros, Zona Sul , suburbanos , paulistas e acreanos , fazendo o caldeirão ferver. Cada um botando uma pitadinha da sua cultura pra engrossar o caldo.


O solo de  Paulo Moura está me dizenbdo que o  poder da arte também está na  cabeça dos espectador. É ali que se processa o  mistério. A  generosidade dos  solistas impro-visando melodias que nunca mais serão ouvidas precisa de  testemunhas que se emo-cionem e digam para o músico :  " Você tnão está maluco . Eu estou aqui , eu estou te ouvindo ".


Volota à minha lembrança o  som do  Beco ,todos aqueles  músicos , a farmácia  noite

e dia . E me pergunto :  esses caras trocaram o  sol da  bossa-nova pela luz  enfumaçada de um beco. Por quê ?


Fonte REVISTA O GLOBO - 30 de agosto de 2009

Bernardo  Vilhena é compositor de hits  como " Menina veneno " e diretor do Copa fest , no Copacabana Palace , em homenagem ao  Beco das Garrafas 

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