terça-feira, 21 de junho de 2016

ALI - Deus Negro


Enquanto Mobutu lutava para tomar o poder na África negra, na América branca um bonito, forte, rápido e falante  - de todos os desaforos que impôs ao establishment branco, o de falar talvez fosse o mais imperdoável  - negro de  Louisville, Kentucky, aparecia para o mundo.
Cassius Marcelus havia sido campeão olímpico em 60, na Roma apropriada para o seu nome ( ele jogou a medalha de ouro em um rio, depois de ter sido humilhado em um restaurante em Louisville, fato que contribuiu para o desenvolvimento de sua identidade como negro – e não americano - , que o levaria a se recusar a lutar no Vietnã  . Sua justificativa ficou célebre : “Nenhum  vietcong  jamais  me chamou  de negro" ).
Em 25 de fevereiro de 1964,  no Convention Hall de Miami Beach, aos 22 anos, com apenas 19 lutas profissionais  , com um apostador em cada sete acreditando nele  , diante de um decepcionante público de 8.297 pessoas ( rumores, por causa dos seus surtos de metralhadora falante, que a pressão sanguínea de Ali estava tão alta que ele não poderia lutar, que ele seria presa fácil para o adversário etc., afugentaram a audiência), Cassius Clay Jr. conseguiu o que 93% da opinião pública não acreditava.
O "Terrível“ Sonny Liston, um dos mais perfeitos pesos–pesados de todos os tempos, não voltou para o 7º assalto , o primeiro campeonato dessa categoria a tomar essa decisão desde que , em 4 de julho de 1919, Jack Dempsey, com o queixo e o nariz quebrado e com seis dentes a menos, não voltou para o resto da luta contra Jess Williard.
Diante de um público atônito, Clay gritava sem parar ( diz a lenda que ele poderia dizer até 300 palavras diferentes em um minuto ) : “Eu sou o maior ! Eu sou o maior! Eu sou o maior! Eu sou o rei do mundo ! Eu sou o rei ! Eu sou o rei! Eu sou o re!“.
Dois dias depois, diante de outra audiência – só que agora compostas de jornalistas; Robert Lipsyte, que cobriu a luta para o “The New York Times “, declarou que a entrevista foi uma das coisas mais inesquecíveis que ele pôde ver em sua carreira  - que não compreendia todo o processo, ele falava como um aliado dos negros  da nação islâmica.
Malcolm X , líder mais intransigente do que Martin Luther King no movimento negro dos anos 60, era um dos indesejados  - pelos organizadores, pela maioria branca  - convidados de Clay para a luta contra  Liston. Era o sinal aberto de sua mudança de crença religiosa e política. Era o sinal de que Clay incomodaria muito mais.
Malcolm disse a Clay que a luta era uma espécie de “cruzada moderna“, um mulçumano contra um cristão  - o cristianismo, na opinião deles, havia ensinado o negro a se curvar diante do branco - , transmitida pela televisão para todo mundo ver.
Na entrevista, o lutador anunciou que renunciaria ao seu nome de "escravo“ e passaria a se chamar Cassius X ( significando a sua identidade africana perdida ) Clay.
Pouco tempo depois, no dia 6 de março, Elijah Muhammad ( nascido Elijah Poole ), considerado o apóstolo da Nação do Islã , que encontrou em Clay um ótimo propagandista para a sua causa, anunciou em um programa de rádio, em Chicago : “O nome Clay não tem significado divino . Eu espero que ele aceite ser chamado por um nome melhor  . Muhammad Ali é o nome que eu darei a ele enquanto acreditar em Alá e continuar me seguindo.
A mudança de nome foi encarada, por muito tempo, como mais uma das excentricidades promocionais de Clay, o homem que estava conseguindo um destaque na imprensa e na TV que nenhum outro esportista jamais observaria.

Fora do ringue 

Em 18 de abril de 1960, quando tinha 18 anos,  Ali apresentou-se ao serviço militar americano na sua cidade. Em 9 de março de 62, ele foi classificado como A – 1 ( apto para o serviço ) .
Um mês antes da conquista do título mundial, ele foi chamado para os exames de qualificação no Centro das Forças Armadas de Coral Gables , Flórida.
Ali passou nos exercícios físicos, mas foi reprovado no teste “atitude mental“ que dura 50 minutos ( na escola, ele tinha dificuldades para ler ). Seu QI é de 78. Ele faz um novo teste, acompanhado de três psiquiatras do Exército. Em 26 de março de 64, é reclassificado com I-Y (“não qualificado , pelos padrões atuais, para servir as Forças Armadas.” ).
Por motivo religiosos, Ali recusou-se a aceitar a ideia de participar da guerra do Vietnã. Há uma polêmica que envolve o comité dos serviços armados no Congresso americano. É o momento dos ressentidos:  por causa do QI, Ali passou ser chamado de “burro“ e de “estúpido“ , entre outras coisas. Ele respondeu  que havia dito que era “o maior “ e não o “mais inteligente “.
No começo de 66, com o Vietnã pegando fogo, O Exército rebaixou o número de pontos necessário no teste de aptidão mental. Em 17 de fevereiro de 66, Ali voltou a ser classificado como A – 1 . Em sua casa  , em Miami, recebeu a notícia pelo telefone e explodiu: não sabia onde é o Vietnã e não iria lutar.
A reação da imprensa contra ele foi violenta  . O “ Chicago Tribune “ pediu para a luta contra Ernie Terrel, marcada para 29 de março, ser cancelada. O governador de Illinois, Otto Kerner solicitou a mesma coisa.
Diante da Comissão Atlética do Estado, ele disse que compareceria à audiência para não causar prejuízo aos organizadores , mas que não teria de pedir desculpa pelo que disse sobre o Vietnã .
Kentucky, seu Estado , aprovou uma resolução condenando-o : “sua atitude traz descrédito para todos os leais kentuckianos e para o nome de milhares que deram a sua vida no país“. Ali não lutou contra Terrel
Tentou-se uma luta no Canadá contra o campeão local George Chuvalo. Começou uma campanha nos jornais para o boicote ao combate. 
No Congresso, Frank Clarck, da Pennsylvania, segundo ele mesmo um não – super patriota, disse : “ Eu exorto os cidadãos dessa Nação como um todo a boicotar qualquer das suas ( dele , Muhammad Ali ) atuações“. 
A luta se realizou. Chuvalo era considerado virtualmente impossível de ser nocauteado. Ali venceu por pontos. A vida dele passou a ser amplamente investigada pelo governo americano. Descobriram o uso ilegal de um Colt calibre 22 e que havia um judeu branco como sócio da Main Bout, a empresa que promovia as lutas de Ali, e que tinha como principais acionistas membros da Nação do Islã.
Em menos de e um ano, Ali defendeu o título por sete vezes ( um número excessivo ) , sendo que quatro delas fora dos EUA. Em março de 66, ele havia pedido para não ser convocado pelo Exército americano pela segunda vez, agora alegando “ objeção consciente “. Seu pedido foi negado. 
Ele apelou e foi ouvido pelo ex-juiz da Corte do Estado de Kentucky, Lawrence Grauman, que considerou que as alegações de Ali deveriam ser consideradas pela instância de recursos.
O Departamento de Justiça escreveu à instância de recursos opondo-se à consideração. O pedido de Ali foi negado novamente  . Um ano depois, ele finalmente enfrentou Ernie Terrel.
Terrel acusa-o de ter se utilizado de golpes sujos e ilegais durante a luta ( dedo no olho etc.) . Ali passou pelas mesmas críticas violentas que Tyson recebeu após as duas mordidas em Holyfield e a sua reputação caiu mais ainda.
Em 28 de abril de 67 , Muhammad Ali apresentou-se à Forças Armadas dos EUA , em Houston , Texas . O oficial chamou Cassius Marcelus Clay para dar um passo à frente . Ali não se moveu. O tenente Clarence Hartman levou-o para outra sala e advertiu que ele poderia pegar mais de cinco anos se não respondesse ao chamado.
Voltaram para a cerimônia de apresentação. Cassius Marcelus Clay foi chamado. Ali não se mexeu novamente. Hartman pediu para ele escrever a razão da sua recusa em se mover. Ele escreveu  : “ Eu me recuso a entrar para as Forças Armadas dos EUA porque eu peço isenção como ministro da religião do Islã“ .
Uma hora depois a Comissão Atlética do Estado de Nova York cassou sua licença para lutar e retirou o seu título de campeão. Outros Estados seguiram a decisão de Nova York.
Em 19 de junho de 67  os seis homens e seis mulheres que compunham o júri consideraram Ali culpado por se recusar ao serviço do Exército americano. Ele recebeu pena máxima : cinco anos de prisão mais uma multa de US$10 mil .Seu passaporte foi confiscado, para evitar que ele foi confiscado  , para evitar que ele pudesse lutar fora dos EUA.
        
Azarão,  de  novo

Dez anos depois, novamente ninguém acreditava que ele iria vencer. Muhammad Ali fora impedido de lutar boxe aos 25 anos, provavelmente no melhor momento da combinação entre capacidade física , controle técnico e experiência de sua carreira.
Jamais saberemos se ele era um lutador maior do que aquele que pôde ser visto  - e , mesmo assim , não há dúvida de que ele foi um dos maiores.
Em 74, Muhammad Ali estava com  32 anos. Havia cerca de um ano,  ele , com artrite e o tornozelo entupido de cortizona , havia tomado uma surra memorável de um jovem desconhecido  , Ken Norton  , que quebrou o seu queixo no segundo assalto. 
Ali venceu a revanche por pontos. Depois  , ganhou de Rudi Lubers em Jacarta e , por US$ 850 mil como bolsa  , venceu por unanimidade dos juízes a revanche contra Joe Frazier
Agora era a vez de George Foreman, 26, um gorila fortíssimo, tido como imbatível: invicto, na noite em que se sagrou campeão ele havia acumulado 35 nocautes. 
Suas oito mais recentes lutas haviam terminado no primeiro ou no segundo assalto  , incluindo as contra Frazier ( a quem derrubou por seis vezes em dois rounds ) e Norton  - que haviam batido Ali no primeiro confronto.
   
Paciência  na  dor 
Ali, apesar de exaltado, tinha uma estratégia e foi paciente para conseguir o resultado. Sabia que o brutamontes Foreman uma hora cansaria de bater e aprendeu a agonia de apanhar para vencer  ( a descrição dos treinamentos de Muhammad Ali feita por Norman Mailer é bem interessante  , sob esse aspecto  : Ali parecia desenvolver uma maneira de paralisar a dor antes que ela chegasse ao cérebro ). 
Nos primeiros assaltos, Ali nem sequer dançava ( “ dançar como as borboletas , ferroar como as abelhas “ , como lhe ensinou o guru Bundini Brown ) ; segundo Plimpton, o técnico Angelo Dundee disse que Ali dava a Foreman “ um monte de nada “ .
Ali sabia que sua técnica de tomar golpes e habilidade para lutar eram suportes para uma força  , a força da sua palavra  . No quarto assalto  , começou a dizer para Foreman  : “ Isso é o melhor que você pode fazer ? Dê–me isso ( o cinturão de campeão ) de volta . Ele é meu“.
E era mesmo.
Boxeador elegante  , rápido  , físico , perfeito  , bailarino  , falastrão  , redator de poemas sobre os adversários e sobre Deus , pregador religioso  e de questões raciais, carismático  , egocêntrico , explosivo, paranóico. Todo esse conjunto fez de Muhammad Ali um perfomancer , um artista vivo a exalar uma poesia latente o tempo todo  . 
Talvez ele tenha sido mesmo o melhor lutador de todos os tempos  , mas o melhor dele era o discurso em jorro, cheios de metáforas e simbolismos de uma outra luta, de uma poética sendo construída na fonte da saliva. 
O tipo da doença de Parkinson que o atingiu tirou o que tinha de melhor, a rapidez do movimento e da palavra ( curiosamente, Oliver Sachs, no livro  “Tempo de Despertar “, relata que um paciente com o mal de Parkinson conseguia ser um rápido lutador de Box  ). 
O fato de Leon Gast ter levado tanto tempo para poder concluir o seu documentário, aquelas imagens que durante anos ficaram vivas, embora tecnicamente mortas, lembra alguém que não pôde viver a vida inteira e que retorna depois de muito tempo para receber o que deveria ter sido eu.
O filme é um acertar as contas com as nossas vidas. Ao ser resgatado, ele trouxe junto alguns dos momentos mais fortes de uma época que ele mesmo se encarrega de encerrar  : no final dos 90, “Quando Éramos Reis “ é o ponto final dos 60.
O filme “ Quando Éramos Reis “ é uma espécie de manifesto tardio da cultura negra . É essa sensação que fica das pessoas nas ruas de Kinshasa, da luta  , da dança , e da música, embora ele não mostre  , mas Schulberger relate, o fracasso do festival de música ao vivo  ( no filme, pelo menos, é bárbaro  ) : público pequeno, falta de sintonia entre a música negra americana e os negros de Zaire e a ausência dos anunciados Stevie Wonder, Aretha Franklin e Etta James. Conclusão de Schulberger  : “ É claro que existem ecos da música africana na “soul music  americana". Mas os ouvidos dos habitantes do Zaire pareciam surdos para eles “ ;
O filme também passa a sensação de que as raízes do mundo negro estão com Ali – que aparentemente está à vontade no ex e atual Congo – e  não com Foreman  ( em certo sentido, foi ruim para Foreman ter ido para lá : a torcida era 100% Ali. Nos EUA, ele poderia dividir a platéia ) . Curioso é que uma passagem do livro de Mailer e outra do livro de Schulberger revertem essa impressão.

Budd Schulberger  : “ Enquanto ele (Ali ) falava da saudade da casa  , eu percebi o quanto ele era intensamente americano, tão americano, tão americano quanto Gerry Ford e Mickey. A África era um sonho, um amoroso e amado sonho, uma distante lembrança de coisas do passado. Muhammad Ali ainda era Cassius Clay  , o garoto de Louisville , a criança de Little Richard  , Tuti-Frutti, e da Máquina do Sonho Americano “ .

Norman Mailer  : “O paradoxo , entretanto , de encontrar o Campeão era que Foreman parecia mais negro. Ali não era sem sangue branco  ( ...) Algo na sua personalidade alegremente, talvez exuberantemente, branco ( ...)  Apenas uma das 800 pequenas contradições de Ali, mas Foreman era mais profundo. Foreman poderia ser confundido com um africano mais facilmente do que Ali. 

Documentário em cartaz nos cinemas registra vigoroso festival da cultura negra  e
Acerta as contas do explosivo e elegante Muhammad Ali  , o pugilista que sabia 
Que sua técnica para assimilar golpes e sua habilidade para lutar eram  suportes 
Para a força de sua palavra  .

QUAL  FOI  A  MELHOR  LUTA  HISTÓRIA  ? 
Eder  Jofre,  61 , ex campeão mundial dos galos e penas –  “ A maior luta de todos os tempos aconteceu no Brasil  . Foi entre Paulo de Jesus e Milton Rosa  , no final da década de 50  . Milton que dominava a luta  , foi nocauteado e levado ao hospital . Acabou casando com a enfermeira.

Newton  Campos , 72 , vice-presidente do Conselho Mundial  - “ Eder Jofre  x Joe Medel  , eliminatória para a disputa do título dos galos do Conselho Mundial  . Trocaram golpes duros  , ambos sentiram . Mas não houve clinches.  O juiz nem apareceu“.

Adilson  “Maguila “ Rodrigues  , 38 , peso –pesado  - “ Muhammad Ali contra George Foreman, sem dúvida. Todos pensavam que Ali seria massacrado, mas , com bastante inteligência  , venceu o monstro Foreman  “ .

Mills Lane , 59 , árbitro que puniu a mordida de Tyson contra Holyfield  - “ O primeiro encontro entre os meios- pesados Archie Moore e Yvon Durelle foi uma verdadeira guerra “ .

Riddick  Bowwe  , 53 , treinador de Oscar de la Hoya  - “ A primeira e a terceira lutas entre Muhammad Ali e Joe Frazier  , ambas pelo título mundial  “ .

Emanuel Steward, 53 treinador de Oscar de la Hoya - "A primeira e a terceira lutas entre Muhammad Ali e Joe Frazer, ambas pelo título mundial.

Seth Abrham , 50, diretor de boxe da TV HBO – “Marvin Hagler contra Thomas Hearns, uma luta incrivelmente selvagem “ .

Roberto  Duran , 45 , campeão mundial em quatro categorias  - “Eusébio Pedroza contra Orlando Omares  “ .

Fonte  - Jornal    FOLHA  DE  SÃO  PAULO     pág  6 e   7   ESPORTE   
Domingo ,   14/09/97           MATINAS  SUZUKI  JR .
Do Conselho Editorial 

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