terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O POVO ELEITO



Para  determinar a origem racial e cultural dos povos do passado, assim como as relações estabelecidas entre eles, vimos que os sábios estudam suas ossadas e os restos de suas habitações e dos objetos que fabricavam e utilizavam; ora, no caso dos primeiros israelitas, não dispomos de qualquer fonte da informação desse gênero. Com efeito, como se tratava de pastores nômades, os vestígios de interesse arqueológico que poderiam deixar forçosamente deveriam ser raros, muitos dispersos e difíceis de encontrar. E, mesmo que as escavações tornassem possível sua descoberta, como poderíamos diferenciá-los dos vestígios  semelhantes deixados pelas outras tribos de pastores que percorriam os mesmos territórios e cujo modo de vida provavelmente não era muito diverso  ? Podemos, pois, perguntar através de que meios podemos esperar conhecer sua aparência, suas relações genéticas com as populações que os cercavam e sua verdadeira origem . 
A própria Bíblia é curiosamente pobre em precisões de gênero daquelas que gostaríamos de obter. Assim, não nos fornece praticamente qualquer indicação sobre o aspecto físico das personagens que nela desempenham um papel importante. Numa fase posterior da história dos israelitas, restos identificáveis, mais ou menos abundantes – esqueletos, vestígios arquitetônicos e objetos fabricados  - vem confirmar os documentos escritos do mesmo preencher suas lacunas. Mas, quanto ao período em que começaram a sair do anonimato e levar uma existência distinta  enquanto grupo organizado, não dispomos atualmente de nada exceto de fontes indiretas tais como a Bíblia, dados linguísticos e conclusões que podemos tirar de nosso conhecimento de outros homens dessa época. Certamente, esses elementos não são tão probantes quanto os testemunhos mais diretos, mas seria absurdo não levá-los em consideração ou subestimar-lhes o valor. 
Quase todos os eruditos reconhecem hoje, de maneira geral, a historicidade das tradições bíblicas que concernem à origem de Abrahão e de seus descendentes.  Na Bíblia diz-se claramente que Abrahão partiu da cidade de Ur, na Caldéia. Também se informa no mesmo lugar que membros da sua família continuaram a viver por muito tempo, depois de sua partida  , em Haran e em Nahor; estas cidades foram localizadas em Mesopotâmia , região em que se tinham desenvolvido as antigas civilizações de Sumer e Acad. A língua que falavam os primeiros israelitas confirma essa origem  , pelo menos no que concerne a Abrahão e seus descendentes imediatos. No Deuterônomio , 26:5 ( segundo a versão moderna )  , está escrito: “ Meu pai era um arameu nômade"  . Também lemos em Gênese, 28:15:  “ E Isaac fez partir Jacó , e este partiu para Padan–Aram ( Mesopotâmia ) para a casa de Labão , filho de Betuel , o arameu , irmão de Rebeca, a mãe de Jacó e de Esaú “. O aramaico é um dialeto semítico ocidental, ramo a que pertencia também a língua dos cananeus. O estudo dos nomes mencionados nas primeiras genealogias também apóia essa identificação; quase todos pertencem aos mesmo grupo lingüístico que, segundo os especialistas  , tem sua origem na região mesopotâmica
As recentes pesquisas dobre os documentos literários provenientes dessa região confirmam igualmente que a  Mesopotâmia é a terra natal dos fundadores do povo hebreu. Em particular  , observam-se entre as concepções cosmogônicas do Gênese e as das epopeias mesopotâmicas, como o Poema de Gilmamesh, semelhanças muito marcantes para que seja possível explicá-la de outra forma que não pela existência de uma tradição comum. 
Uma vez que não há qualquer razão de acreditar que os fundadores do povo hebreu formavam  , em seu país natal  , um grupo separado  , do ponto de vista lingüístico, religioso ou cultural, não é verossímil que tenham sido muito diferentes  , no plano genético ou racial, do conjunto da população. Uma tal diferenciação só se poderia produzir em condições especiais que, pelo menos até sabemos, não existem de modo algum na região. Com efeito , o estudo dos povos mais conhecidos demonstrou claramente que, na ausência de qualquer barreira cultural , religiosa ou lingüística, os diversos grupos habitantes de uma região , mesmo que sejam distintos por suas características genéticas, tendem a se cruzar, o que provoca permutas que levam finalmente a um amálgama. 
Seja como for, as informações que recolhemos a respeito dos caracteres raciais da população mesopotâmica contemporânea da migração da família de Tera, assim como a respeito das variações desses caracteres, não indicam de modo algum a existência de um grupo racial distinto que poderia ter dado origem aos israelitas. Se os fundadores de Israel eram realmente representativos de seus contemporâneos que viviam na Mesopotâmia  nas vizinhanças de Ur , de Haran  e de Nahor, nossas conclusões quanto à a sua origem racial dependeriam pois de nosso conhecimento do todo dessa população no momento da migração de Abrahão
Embora reconhecendo a dificuldade de datar precisamente essa migração. Albright declara que em sua opinião, levando em conta os dados disponíveis podemos fazê-la remontar aos séculos XX e XIX a.C. Parece que hoje essa data é aceita pela maioria dos especialistas com algumas pequenas variações. Já vimos que grande parte do Crescente Fértil, inclusive sobretudo a Mesopotâmia e a região de Canaã , foi ocupada por uma população onde predominava o tipo mediterrâneo  , pelo menos até o fim do primeiro período da era do bronze  ( cerca de 2100 a.C).
Como indiquei, acima, pode-se distinguir posteriormente algumas modificações dos caracteres físicos da população, devidas certamente à chegada de grupos invasores que formaram vários impérios. Uma vez que, segundo nosso conhecimento, os primeiros hebreus não faziam parte dos exércitos conquistadores desses impérios  , pode-se pensar que também não eram representativos da nova população que finalmente se fixou na Mesopotâmia. Parece muito mais provável que encontrem sua origem nos elementos mais antigos que, nessa época , eram expulsos da região e forçados a emigrar. Dados da mesma natureza parecem mostrar  , além disso  , que esses grupos de imigrantes  , vindos do Leste, penetravam, há algum tempo , na região de Canaã, como nas outras zonas costeiras. Como os idiomas não semíticos foram introduzidos nessa região pelos novos elementos da população  , o fato dos primeiros israelitas falarem uma língua semítica confirma a idéia de que descendiam das antigas camadas de população ; se é esse o caso, seria necessário considerar  que tinham uma origem principalmente mediterrânea. Entretanto , convém também admitir a possibilidade de que, entre os companheiros de Abrahão ou entre os indivíduos que se uniram ulteriormente ao grupo dos hebreus, tenham figurado representantes das mais recentes contribuições ao complexo racial então em processo de desenvolvimento na região. De acordo com essa segunda hipótese os hebreus seriam, portanto, de origem essencialmente mediterrânea , mas compreenderiam também alguns dos elementos braquicéfalos que começavam a surgir em certas localidades. 
Os casamentos mistos que se verificam entre membros de grupos distintos que vivem lado a lado são o meio pelo qual se efetuam as permutas genéticas. Para estudar fatores biológicos que contribuíram para a constituição de grupo israelita, é pois impossível não levar em conta a população em cujo meio ele estava estabelecido. Se bem que , em diversos momentos da longa história dos judeus, as uniões com os estrangeiros tenham sido solenemente condenadas por seus dirigentes na verdade a existência dessa prática pode ser provada por documentos e é mesmo amplamente demonstrada pelas interdições de que foi objeto. Por outro lado, convém notar que os textos que contém ameaças e advertências contra os casamentos mistos são bem posteriores ao estágio de formação de que tratamos, e datam de uma época em que as distinções religiosas, tendo assumido um caráter formalista e tradicional, corriam o risco de se diluir em conseqüência de contatos com representantes de outros sistemas religiosos. De fato, o verdadeiro temor que inspira essas interdições é muitas vezes bastante explícito.  Se os filhos de Israel esposam mulheres estrangeiras  , serão compelidos a praticar ritos e a adorar deuses que os fiéis consideram abomináveis  . Cumpre reconhecer que essa concepção não deixa de ser justa ; e , para um crente, há nela um perigo concreto. Desse ponto de vista, a regra da endogamia no interior da nação – que já corresponde a uma tendência natural em condições normais – pode ser considerada como uma espécie de dogma e como um meio de conservar intata a religião israelita. 
Mas no início, quando o povo de Israel ainda não formava uma entidade tão distinta e certamente não tinha a consciência algo ciosa de sua individualidade que devia adquirir mais tarde, o casamento misto podia não ser considerado tão nefasto, e podemos supor que reinasse com maior liberdade a esse respeito. Evidentemente, é impossível estabelecer com alguma certeza se as uniões com os membros das tribos vizinhas eram então mais ou menos freqüentes do que posteriormente. Mas, em todo caso, se esses casamentos não eram muitos raros, suas conseqüências de ordem genética devem ter sido tanto mais sensíveis nessa época quanto a população ainda era pouco numerosa. 
A  própria Bíblia menciona muitas vezes casamentos mistos, quer durante essa primeira fase da história de Israel, quer em períodos ulteriores. Assim  , é que o próprio Abrahão teve um filho, Ismael de Agar  , a serva egípcia de sua mulher Sara. Sendo o concubinato considerado uma prática normal na época, é bem provável que algumas das concubinas do patriarca tenham sido de origem estrangeira. A questão é novamente evocada nas passagens que se referem a Isaac e Rebeca  . Esaú  , um de seus filhos  , desposara uma mulher hitita e Rebeca temia que seu filho caçula Jacó, escolhesse também uma estrangeira. “ Enfadada estou da minha vida  , diz ela , por causa das filhas de Het ; se Jacó tomar mulher das filhas de Het, para que me será a vida ? “ ( Gênese  , 27 : 46 ) . E  Isaac diz a Jacó: “ Não tomes mulher dentre as filhas de Canaã  “ ( Idem 28:1). Essas injunções talvez exprimam , na realidade  , pela boca dos patriarcas  , ao temores as gerações subseqüentes  ; pois , como demonstrava uma tradição sagrada que era impossível modificar, os próprios ancestrais reverenciados pelo povo judeu haviam muitas vezes contraído casamentos mistos. 
Parece que o próprio Moisés, por duas vezes , desposou uma estrangeira. Nos Números (12.1) diz-se que ele tomou uma mulher cuxita e , segundo o Exodo ( 2.21 ) , tomou por mulher Zípora, a filha de uma midianita. Entre os israelitas que erravam no deserto sob a direção de Moisés, encontrava-se “o filho de uma mulher israelita , o qual era filho dum egípcio“, ( Levítico , 24.10 ). Certamente é impossível avaliar, mesmo de maneira conjetural, o número de filhos de Israel que tinham desposado egípcio durante a estada no Egito
Assim, os filhos de Israel entraram em contato com quase todos os povos e todas as tribos de alguma importância que, segundo a Bíblia, habitavam a região de Canaã e seus arredores. Infelizmente  , os nomes da maioria desses povos não nos fornecem indicações úteis porque , salvo no caso dos egípcios, não conhecemos qualquer vestígio deixado por eles. O importante, todavia  , é saber que os israelitas não estavam isolados geneticamente do resto da população local. Parece mesmo fora de dúvida que os primeiros israelitas contraíram livremente uniões com seus vizinhos, que estavam aliás, geralmente  , muito próximos deles pela língua, cultura e origem racial. Certamente sofreram  , no plano biológico, a influência das populações vizinhas e não deviam diferir muito do tipo predominante.
Este tipo , pelo menos  até onde podemos determinar segundo as publicações referentes aos restos encontrados em Gezer  - único conjunto importante de materiais arqueológicos dessa época de que dispomos – era muito semelhante ao tipo mediterrâneo que nos apareceu como característico da região mesopotâmia  . Seríamos assim levados a concluir que as tribos cananéias com as os israelitas se confundiram não eram muito diferentes deles do ponto de vista racial.
A propósito do período estudado no presente capítulo , isto é , o meio e o fim da idade da bronze – quer dizer mais ou menos dos séculos XX a XV a.C. – a Bíblia menciona muitas vezes os hititas. Sabemos  , por outros testemunhos  , que os hititas realmente invadiram a terra de Canaã mais ou menos nessa época  , mas é difícil precisar se as populações assim chamadas pelos arqueólogos são exatamente aquelas de que fala a Bíblia. Os hititas nos interessam particularmente aqui  , pelo fato  de que sua língua não era semítica  , e sim indo-européia ( ora sabemos que os nomes indo-europeus aparecem na região de Canaã nessa época ), e sobretudo porque amiúde são considerados como um dos novos elementos raciais que então encontramos na região. Nas zonas setentrionais sujeitas à influência dos hititas , a presença de indivíduos braquicéfalos coincide, conforme os documentos arqueológicos disponíveis  , com a supremacia desse povo. Além disso, segundo alguns autores. a braquicefalia que teriam introduzido é de uma espécie particular, típica das populações armenóides. Mas  , no estado atual de nossos conhecimentos  , não podemos pronunciar –nos com certeza à matéria, ainda que uma certa tendência à braquecefalia pareça efetivamente ligada à chegada desse povo. 
A descrição que a Bíblia fornece do mundo em que viviam os primeiros israelitas e das estreitas relações que travam, durante seus deslocamentos, com os diferentes grupos de tribos em cujo meio se encontravam não permite duvidar que esse período e essa forma de existência exerceram sobre eles uma influência determinante. As migrações que, em quinhentos ou seiscentos anos, os conduziram de Haran, Nahor  e Ur até o Egito, passando por Canaã, fizeram-nos atravessar praticamente todo o Crescente Fértil  , e eles assimilaram elementos raciais ou étnicos oriundos de todas as regiões dessa vasta parte do mundo civilizado . Portanto  , de alguma forma  , sintetizaram os diversos tipos de população que na época habitavam esses territórios.

Fonte  - Livro  RAÇA  E  CIÊNCIA  I         debates    C.Sociais       
Editora Perspectiva  S.A       São  Paulo
Juan Comas , Kenneth I . Little  , Harry I. Shapiro , Michel Leiris,  Claude Lévi – Strauss 
UNESCO  1960    Título original    -   Le racisme devant la science 

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