terça-feira, 6 de novembro de 2018

Motivos fúteis de uma Sociedade violenta




Os brasileiros com o dedo no gatilho

Li em ÉPOCA da semana assada e ouvi na CBN: mais da metade das pessoas que morrem de tiro, no Brasil (na proporção de uns 60%), morre por “motivos fúteis“. A expressão é chocante. Refere-se, sabemos, aos crimes de ocasião, cometidos por pessoas que não tinham nenhuma relação com a vítima e / ou nenhum antecedente criminal: brigas de bar, ciúme, confrontos entre torcidas, desentendimento no trânsito. Mas parece sugerir que outros 40% dos assassinatos ocorrem por motivos sérios, consistentes, filosoficamente justificados. A meu ver, toda morte ocorrida pela mão de um semelhante é fútil, absurda, incompreensível. Inclusive nos casos em que o Estado pratica a pena de morte.

Em todo caso, saber da grande quantidade de mortes por "motivos fúteis“ desmente um pouco nossos preconceitos a respeito da periculosidade dos jovens marginalizados, a horda de desocupados e enfurecidos que parece ameaçar a paz nos lares. O risco de você levar um tiro daquele pacato vizinho que se irritou com os latidos de seu cachorro é maior que o de ser morto por um sequestro do crime organizado.

Por que tantas pessoas passam rapidamente ao ato extremo de tirar a vida alheia em conseqüência de um desentendimento besta? Por que cresce o número de pessoas que escolhem - isso mesmo, escolhem – matar oponente a tiros em vez de discutir uma desavença mesquinha? Primeiro:  porque cada vez há mais gente armada no Brasil. A Justiça, comprometida com a defesa da propriedade e dos direitos privados, é omissa quanto a gravíssima questão do porte de armas. Claro que um bandido profissional não vai tirar porte de armas antes de assaltar. Mas o vizinho nervoso, o motorista estressado, o comerciante paranoico vão. E, se não conseguirem, não vão ter como atirar.

Em segundo lugar, as pessoas matam porque estão com medo umas das outras. A sociedade brasileira é violenta, sim, cordialmente violenta, desde a colonização. Mas o clima de medo em que vivemos hoje, incentivado e fomentado no rádio e na TV, além de dezenas de enlatados violentíssimos, produz efeitos de pura paranoia. O desconhecido no ônibus, na fila do banco, o sujeito que esbarra no outro na calçada apinhada são vistos antes de mais nada uma ameaça. Vivemos com o dedo no gatilho, prontos paranos defender “. Só não temos  defesa contra as próprias fantasias.

Entre tantos motivos fúteis, destacam–se as brigas de trânsito. Por uma fechada, uma batida, um arranhão na lataria, o motorista já sai perseguindo o culpado com sangue nos olhos. Para muitas pessoas um carro arranhado vale bem o preço de uma vida. É o pilar de sustentação da auto-estima. Fomos convencidos de que um homem motorizado vale mais que um pedestre e um homem com carro zero vale mais que o dono de um carrinho velho, que cumpre apenas a função de meio de transporte. O carro no Brasil não é um meio de transporte; é o bem precioso que dá sentido à vida de seu proprietário. Diga-me em que carro andas, e te direi Quem és. Dentro do modelo novo de uma marca importada o sujeito vive uma espécie de intoxicação narcísica. É um rei, um “vencedor“ (argh). Um semideus.

Morte àquele que danificar essa ilusão.

Fonte  -   Revista   ÉPOCA        pág 26  
                26/08/2002    MARIA  RITA  KEHL    é  psicanalista

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