terça-feira, 23 de junho de 2020

Por George e nossas crianças



Os protestos pelo assassinato do segurança Georg Floyd ganharam as ruas dos Estados Unidos  e de vários países. A cena chocante em que o  homem negro é asfixiado por um policial branco na cidade de Minneapólis já entrou para a história mundial, como aquelas imagens que exigem uma tomada de posição da  humanidadeComo continuar vivendo num  lugar que produz e tolera a crueldade? “ Não  consigo respirar “ , essas foram as últimas palavras de George. Mais que  um grito  de  socorro , a frase do segurança é uma síntese de como o racismo é perverso e estruturanteQuando não mata pelo uso da força, aniquila o negro pouco a pouco, fechando  portas , minando as possibilidades até o  último suspiro. Mas se engana quem acha que esse episódio ilustra uma realidade específica , de tensões  históricas como a norte-americana. No Brasil , de acordo com a Anistia  Internacional  , um jovem negro tem em média duas e meia vezes mais chances de morrer do que um jovem branco. Discutir sobre as desvantagens de ser negro num  país violento  e  de desigualdade  secular não pode continuar sendo tabu .

A comoção  por  George rendeu uma onda de apoios  nas redes sociais  no Brasil. A hastag =BlackLivesMatter  foi endossada por muitos formadores de opinião daqui, de políticos a artistas. Infelizmente tal posicionamento soa como jogo de cena , que não reflete em ações mais efetivas no combate ao racismo . Recentemente , Agatha  e João Pedro , crianças  negras , tiveram suas vidas  ceifadas e só observamos alguns lamentos. Esta semana  o garoto Miguel, de cinco anos, morreu ao cair de nove andares de um prédio, no Recife onde sua mãe trabalhava . No momento do acidente, a empregada  doméstica tinha ido passear com o cachorro dos patrões e deixou o Miguel aos cuidados da mulher. Segundo as investigações , a patroa teria negligenciado e se omitido de cuidar do menino enquanto a mãe cumpria as suas ordens. Após pagar multa de vinte e mil reais, a investigada obteve a liberdade  provisória. A morte de Miguel escancara uma sociedade , estruturada num modelo de  dominação , que tem origem no sistema escravocrata.

Apesar de alguns avanços sociais conquistados na última década , os negros continuam sendo os mais vitimados no país com relação aos direitos à saúde , educação , trabalho , moradia , transporte e segurança. Sem estudo formal não há possibilidade de romper os ciclos de pobreza herdados do passado. Não é coincidência de que a maioria das empregadas domésticas , como a mãe de Miguel ,seja composta por mulheres negras , moradoras de periferias , que convivem com a discriminação racial e com a baixa renda. Vale lembrar que a primeira pessoa a morrer por causa da pandemia do novo coronavírus no estado do Rio de Janeiro foi uma trabalhadora doméstica negra que não foi dispensada pela empregadora com a doença confirmada. Estatuto  da Igualdade Racial , instituído em dois mil e dez , que deveria funcionar como um conjunto de regras para coibir a discriminação , estabelecendo  políticas para diminuir a desigualdade , pouco fez efetivamente para reduzir as assimetrias  históricas entre brancos e negros .

No livro “ Sobre  o Autoritarismo  Brasileiro “ , Lília  Schwarcz explica que os padrões atuais  de mortandade dos negros remetem a questões históricas mal resolvidas. A antropóloga argumenta que o sistema escravocrata se transformou num modelo tão enraizado no Brasil que acabou se convertendo numa linguagem com graves consequências para a sociedade , ou seja , ela não funciona sem a lógica de servidão da casa  grande  senzala . Lília mostra que o período pós-abolição não construiu uma nação mais igualitária no que se refere aos diferentes povos que a formaram , ao contrário levou à exclusão de boa parte da população das principais instituições do Estado.

Diante desse cenário de desigualdade o que podemos fazer além de subir hastag ? A filósofa Djamila Ribeiro na obra   “ Pequeno  Manual  Anti Racista “aponta  alguns  caminhos , como questionar a proporção de  brancos e negros no quadro de funcionários e os critérios  de contratação das empresas , refletindo se os mesmos não excluem os negros". A autora também sugere que se valorize mais  produções  intelectuais  negras, de modo a expandir  nossos pontos  de vista eurocêntricos. Sobre isso, é necessário se posicionar contra o apagamento dos saberes de populações historicamente oprimidas. A obra ainda recomenda que apoiemos  movimentos e organizações engajadas em combater práticas de discriminação racialA comoção por  George exige de todo nós – brancos e negros – assumamos  uma  mentalidade antirracista . O  tempo  da chibata  em  praça  pública  já  passou.

Fonte -  Jornal  A  TRIBUNA  -CIDADES     -  pág Adez
Sábado , seis de junho de dois mil e vinte 
Michel  Carvalho – Jornalista  , professor  e especialista  em Comunicação

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