terça-feira, 29 de agosto de 2023

A dádiva do tempo


  


Uma pequena joia se guarda no fecho de “ Travessia marítima com Dom Quixote  - Ensaios sobre homem e artistas  “ , do escritor alemão  Thomas Mann ( Zahar , tradução de Kristina Michachelles   e Samuel Tristam  ) . Além de romancista genial , Mann  ( 1875 – 1955 )  foi , também , um com -plexo pensador .O ensaio sobre a travessia do Atlântico , que se inicia com um elogio da lentidão,ou do ritmo “ andante “ , e depois se embrenha pelo livro de Miguel Cervantes  , é comovente  . “ O mesmo vale para o que é grande  , ou  , para dizê-lo com outras palavras  : o espaço pede tempo  “ . Ele vê alguma coisa de sacrílego   “ na  tentativa de roubar ao  espaço uma de suas dimensões , de  privá-lo do tempo naturalmente vinculado a ele . “ Para Thomas Mann  , a lentidão é matéria  fun- damentada da criação  .

Motivos para uma  densa e difícil  reflexão surgem em “  O artista e o literato “  , ensaio  no qual  Mann faz uma defesa do homem literário em sua  “ pureza  abstrata  “ , descartando assim - penso   um dos elementos cruciais da criação  : a  imperfeição  ,  não como um  defeito  , mas como um atributo fundamental do humano.De qualquer forma ,é ainda hoje muito útil a distinção que Mann  faz entre o literato e o artista  . Enquanto o artista seria  “ o  homem do efeito e do sucesso  “  –  correspondendo a um  lamentável padrão  contemporâneo do êxito rápido  -  , o  literato veria  o sucesso “ como quase nada além de ornamento da injustiça  “ – o que não deixa de ser também ,é verdade  , uma visão parcial e temerária .  A contraposição entre artista e literato   , contudo  , nos ajuda a pensar um dos  mais graves problemas da cultura de hoje  : a leviandade  .

Perigosas são algumas das  teses de Thomas Mann a respeito do homoerotismo , expostas em “ O casamento em  transição  “  , em que faz uma áspera condenação da  homosselua-lidade  , ao no- madismo e à  inconstância  “ . Chega a dizer  :  “  De fato  , não  existe  amor menos fiel  , menos comprometido  , escapando para todos os lados , se não me engano  “ . Em resumo  : muitas res - trições a eles podem ser contrapostas ; ainda assim ,os ensaios de Mann – em uma época avessa à lentidão , pede desprezo pelo sucesso imediato  , pede a celebração do tempo  . Seja qual for a po- sição que tomemos em relação a suas teses  , não podemos lhes negar a grandeza e a coragem  . 

Mas eu dizia que há uma jóia guardada no fecho do livro  , refiro-me ao brevíssimo ensaio “ Elogio da transitoriedade “ ( tradução de Samuel Tristan )  , escondido entre as páginas  158 e 161   . Um ensaio absolutamente atual para um tempo em que se valorizam , acima tudo  , a  rapidez  e a per- formance  , e ainda  –  imitando  o  destino  dos vampiros  –  a  juventude eterna  .  “  Os senhores  ficarão surpresos ao  ouvir  minha resposta à sua  pergunta sobre aquilo em que acredito ou que es- timo estar acima de tudo  :  é a  transitoriedade  “  ,  inicia Mann  , com o vigor que lhe é  caracte- rístico  . Não só na época de Mann , mas ainda hoj  , na era das cirurgias plásticas  , das  vitaminas mágicas e da  “ moda jovem “ ,  a transitoriedade é vista com  grande desolação .Não , replico eu , ela é a  alma do  ser ´ , afirma Mann  . A  transitoriedade produz o tempo  , “ e o tempo é  , ao me-nos potencialmente  , a maior e  a mais útil das dádivas  “ . 

Sem as noções de começo e fim ,sem o desenrolar de uma linha que conduza do passado ao futuro acariciando o presente , não há tempo . “ A  atemporalidade  é o nada  estático “  , ele  nos alerta . Lembra Mann que os biólogos estimam a vida orgânica sobre a  Terra em cerca de 550 milhões de anos  , ele recorda  . Ela pode perecer muito antes disso . A vida  é apenas um acidente cósmico na vida de um planeta .Perde por isso seu valor  ? Responde Mann  : “ Ao contrário  , penso eu ,a vida ganha enormemente em valor e alma e interesse  , torna-se propriamente  cativante  “ . Entre as ca - cterísticas que distinguem o  homem do resto da natureza está  - provavelmente a mais preciosa - o que Mann chama de “ Algumas pessoas podem não dar a menor importância a sua passagem , como se fosse algo  absolutamente banal  . A  maioria a abomina ,como uma  grave ameaça. Contudo, só o uso  ar -criativo do tempo possibilita a existência da arte  , lembra -nos Mann  . Por isso  , é comum tistas ouvirem a perplexa pergunta  : “ Mas quando você faz tudo isso ? “ A arte parece não caber no tempo e  ,no entanto , não existe sem ele   . 

Um mundo atemporal seria um mundo sem fertilidade e sem transformação  , pois seria um mundo paralisado  . Nada mudaria , nada aconteceria  - estaríamos enclausurados no  inferno da repetição . Só a transitoriedade  - só a existência do tempo – traz a possibilidade de criação e de  transformação. “  Ao ser humano é dado santificar o tempo  ,  - traz a pos-sibilidade de criação e de transformação  . “ Ao ser humano é dado santificar o tempo  , ver nele um campo fértil que clama por cultivo cons - tante  “ .  É o tempo ,mais que tudo  , que confere  dignidade à  existência  . Ele é a  matéria que o  artista tem para moldar sua  obra .Ele é o elemento que se oferece à criação e à construção .Sem o tempo , nada  somos  . 

Talvez o tempo não passe de uma noção humana  , e por isso  restrita e frágil demais  . “ A  astro - nomia ensinou-nos a considerar a Terra como uma estrela insignificante no gigantesco turbilhão dos  cosmos,uma estrelazinha  secundária a vagar na periferia da  própria  Via Láctea  “ . Admite a Mann que olhar a Terra e seu Sol como pequenos vultos periféricos  é  , na perspectiva da ciência , abso- lutamente correto  . Apesar disso  , ele afirma crer no fundo da alma que “ cabe à Terra uma signi- ficação central na ordem do universo “ . 

A  fé de  Mann na  Humanidade  não  tem limites .Ele vê a nós  , h omens  ,como pequenos  , mas bravos agentes do ser ,a trafegar pelos canais do tempo .  Não tem  receio  algum de dizer  :  “ Um fracasso pelas mãos do homem equivaleria ao fracasso , a revogação de toda a criação “ . Admite o quanto há de onipotente em seu diagnóstico  mas  apesar disso nos faz um pedido que não devemos descartar  : “  Sendo ou não assim  -  seria bom que o  homem se portasse como se assim fosse  “  .

Fonte   -   Jornal   -       O  GLOBO            pág    5

Sábado  , 07/06/2014             Prosa      JOSÉ  CASTELLO  



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