quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ganhando as ruas




Carregando  mercadorias , amolando  facas ou vendendo comida  nas  calçadas da  Corte , portugueses , italianos e  espanhóis disputaram  seu  lugar com  escravos e  forros no mercado de  trabalho informal 

Praça  das  Marinhas , tarde de 2 de  maio de  1872 . Mais  de  cinquenta  “ pretos ganhadores “ , armados de cacetes ( um deles com uma foice ) , atacam 12 trabalha-dores brancos que transportavam carne-seca das canoas e lanchas . Poucos dias antes , os pretos , que haviam exigido um aumento  de  vinte réis . Mas os do-nos das carnes não só  ignoraram as  reivindicações , como  logo contrataram  brancos  para serviço.  Incon-formados com a  nova  situação , os  negros fizeram uma  “ parede  [greve ] , à moda  [ africana ]  da  Costa da  Mina “ ,  como  noticiou o jornal  Diário do Rio de Janeiro . A “ luta  renhida “ que levou  alguns  homens ao mar só foi debelada com a chegada do capitão  Marques Sobrinho e de  praças da guarda urbana . Sete  escravos e um liberto , tidos como  os principais  agressores ,e mais cinco  trabalhadores brancos , dentre os quais  alguns  portugueses , foram  detidos  conduzidos para o xadrez da  2ª Delegacia Urbana .  

Desde meados do  século XIX  as  cantigas de  trabalho  africanas estavam , pouco a pouco , sendo substi-tuídas  pelo ranger das carroças e pelos  pregões de  portugueses , espanhóis e italianos ocupados no trans-porte  de cargas e na  venda  ambulante .Chegava , quase sempre  adolescente ,  pouco conhecimento dos códigos urbanos e uma precária qualificação profissional . Assim , muitos desses estrangeiros acabavam tra-balhando em  serviços antes  desempenhados pelos  cativos ganhadores  nas  ruas da cidade . 

Percorrendo as  vielas da  Corte , os chamados  escravos  de ganho vendiam frutas , legumes ,peixes , louças e todo tipo de  mercadoria que levavam nos  cestos e  tabuleiros à cabeça  ;  transportavam sozinhos , ou em  grupos , desde  sacas de café até  pesados pianos ; ofereciam-se para levar  pessoas em seus ombros nos dias de chuva ou ainda  carregavam barris com os dejetos das residências para  jogarem  à noite no mar .Quase to- dos os estrangeiros que  passaram  pelo  Rio de  Janeiro no  século  XIX  se  surpreenderam com a multipli-cidade de  ofícios exercidos por esses escravos . Eram  trabalhadores  indispensáveis , conforme  registrou o  francês  Jean –  Baptiste Debret  ( 1768 – 1848 )  que viveu  no  Brasil  entre  os anos de 1816  e 1831  -  já  que o português , e também  os  senhores  brasileiros , com  seu  “ orgulho  e  indolência ) , consideravam des- prezível  quem carregasse  um  “ pacote na mão , por  meno que seja  “ . A  inglesa  Maria Graham  ( 1785 – 1842 ) estimou que  praticamente a  metade  dos  escravos  ganhadores  no  Rio de Janeiro era  composta de africanos  recém chega-dos . Eles trabalhavam em  grupos , capitaneados por  um líder que  marcava o tempo e os  compassos ao  som de  chocalhos , marimbas ou  peças de  ferro , e , em coro , entoavam  canções  de  sua  terra natal . 

Esses cativos eram mandados  às ruas por  seus  senhores  e , ao final do dia ou cada semana  ( o que parecia ser  amsi  comum ) , deveriam entregar  uma  quantia  - o jornal –  previamente  estabelecida ; daí o  nome es- cravo de  ganho .Mas para isso antes era  preciso  encaminhar um  pedido  por  escrito à  Câmara Municipal , identificando o proprietário ou seja o  procurador legal , seu endereço , além de  informações básicas sobre o  escravo , ou  escravos ,como  nome , nação  africana ou  idade . Era necessário  ainda  pagar um alvará e ad-quirir uma chapa metálica com o número de inscrição  : se  fossem encontrados  trabalhando sem a  chapa no  pescoço , os escravos eram  recolhidos  pelas  autoridades  municipais .Entre  os anos  de  1851 e 1870 , en-contramos  no  Arquivo Geral da  Cidade do  Rio de Janeiro  2.653  licenças concedidas  pela  Câmara indi-cando a  nacionalidade do  ganhador . Desse conjunto , 2225 eram  africanos , eu maior grupo se  constituía de  procedentes da  África ocidental , generi-camente conhecidos  como  minas do Rio . 

Mas já  na década de 1860 , como destava em seu  relatório o  estatístico  Sebastião  ferreira Santos , “ os transportes e  outros  misteres do tráfico e  labutação do capital  “ ,  até então desempenhados  por  cativos africanos , também eram  exercidos por  trabalhadores livres . Enquanto o número de  escravos empregados no  ganho ia se  reduzindo a cada dia , os  estrangeiros  -  “ quase  todos  portugueses  “  e   sem  licença  – estavam invadindo as  ruas da cidade e  exaurindo os  cofres  municipais , já que  se  negavam a  pagar pela  autorização devida , como  informava o  contador municipal  Antonio Francisco Porto , em ofício enviado às  Câmara em 20 de junho de  1876 . Três anos depois , a situação se  agravara de tal forma que somente 39  indivíduos ti- raram licença .Diante das  providências -reclamadas dos  meses de julho ,e agosto de  1879 ,a Câmara já  contava com 717 pedidos feitos por “ganhadores livres “ . Só em  julho , quando a  nova regula-mentação foi  instituída , 510  solicitaram  inscrição . No  ano  seguinte , apenas  três  trabalhadores  tiraram  autorização e , em 1885 , outros cinquenta .Depois desse período , não encontramos mais  registros entre as  licenças depositadas no  Arquivo da  Cidade . 

Assim com  os  escravos , esses homens deveriam apresentar um pedido por  escrito , indicando seus dados pessoais , como nome , " nação " ou   nacionalidade , endereço e atividade a  ser exercida . Contudo , ainda era  necessário que um  profissional respeitado , proprietário  e com  boa condição  financeira - quase sempre um  comerciante - fosse apresentado como  fiador , confirmando a  " boa conduta " do trabalhador  e garan-tindo o pagamento  pudessem surgir , caso fossem encontrados em situação irregular ou sem  licença .Era co- mum que um espanhol ou  porutguês , depois de  abrir seu negócio - uma  padaria ou  um armazém de  secos e   molhados  -  , " chamasse " seus  patríicios  e  ficasse  responsável  pelas  atividades que eles exerciam , e  ainda  lhes desse  abrigo em sua casa .

Entre  1879 e  1885 , do total de  770  pedidos encaminhados , 390  ( ou 51,5 % ) indicam a  nacionalidade do  ganhador . Dos  376  restantes  ( 48,5 % )  , 355  soli-citações não fazem quaisquer referências ao país , região ou cidade de prodedência e tampouco a apontam a  cor  dos  indivíiduos ;  os  outros  21 são  referidos como  " pretos livres " , " pretos libertos "  ou " pretos forros " ( decerto quase todos  ex-es-cravos ) .Os imi-grantes europeus constituiam  63,2 %  dos trabalhadores  de  rua que  tiveram sua  nacionalidade os quais se destacavam  portugueses , italianos e espanhóis. Acompanhando as  médias de  imigração estrangeira para  o Rio de Janeiro , os portugueses formavam o  grupo mais  estável e  numeroso desde pelo  menos a década de  1820 , e também o maior contingente registrado entre os  " ganhadores livres " . Mesmo assim tinham que dis-putar  - às  vezes até  com  violência - as poucas  oportunidades disponíveis , especialmente com  os  libertos  minas , que ainda  representavam um  conjunto  expressivo no mercado de  ganho no  Rio de Janeiro .

Carregando cestos  na cabeça ou  sobre os  ombros , e  algumas  vezes  andando descalços  ( uma  marca registrada  da  escravidão ) , esses  estrangeiros  perambulavam  pela  Corte , vendendo  peixes ,  legumes , vassouras e outros  objetos , amolando  facas ou  tocando animados  realejos .Se foram muitos os  imigrantes europeus que se tornaram prósperos comerciantes , proprietários ou  funcionários  públicos , não foram pou - cos os que não tiveram  tanta sorte na  nova vida construído do  lado de cá do Atlântico . 

Fonte  -  Revista  Nossa  História  - pág  25                                                                                              Outubro  de  2005 - Juliana  Barreto  Farias 






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