sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Os protagonistas



Negado durante  anos ,  o  “ povo  brasileiro  “ foi  recentemente  “ redescoberto  “ pela  historiografia . Agora  só  nos falta  aceitar 

Quando o  BRASIL  NASCEU , logo na  primeira  Constituinte , em 1823 , houve uma discussão  o  que  seria  ter  direitos políticos e  que  direitos  seriam esses . A  noção de povo estava no centro da  discussão . Será  que o  Brasil teria  um  povo, 

na forma como os  europeus entendiam este termo ? Bem , para  os  franceses , por exemplo , era claro . Francês era  francês , mesmo que o  país tivesse várias  etnias , verdadeiras  micro  -  nações  lá  dentro  falando  bretão , occitane  etc .Os  americanos chegaram  até a  resolver o  problema , entronizando a        ideia de  “  país  dos  imigrantes “ na  própria  justificativa de  ser . .

Mas  e  o  Brasil ?  Teríamos um  povo  realmente , ou  o que  havia  aqui era  um agregado  informe de  gente de diferentes  procedências , composições  prefixadas , escravos  e  senhores , falando  línguas diversas , sem  nada que os unisse além  da  inevitável  relação de  trabalho ?  Seria  essa  gente uma  massa , sem  um  nexo  ideal comum , uma cultura que os unisse para , enfim , formar  uma nação ?  Salvo um ou  outro liberal radical , eram poucos os  que  incluíam índios  e  escravos  no  povo . Eram  outra categoria . Estavam  fora daqueles  direitos e deveres comuns que chamamos hoje em dia de cidadania .E o resto ,nas cidades ,era uma “ África “, como diziam os viajantes , entre irônicos e  temerosos ,  de  um país que  não  entendiam . A fina nata  do pa-triciado brasileiro concordaria  com  isso .Entre eles e os  escravos , o  que  havia era  uma  “  população “  , um  arremedo de povo ,algo ainda  em construção .Era preciso educá-los , ivilizá-los .Se possível  branqueá- los .

Esta visão racista  e desesperançada , que não conseguia perceber senão anomia , desagregação ,  teve  im-pacto na  historiografia .Nos nossos  primeiros manuais de  história ,os descendentes da  mestiçagem , entre europeus , índios e negros ,estavam fadados ao silêncio .Não eram  percebidos como  protagonistas de nada .  Eram ou massa de  manobra ,ou ralé incontrolável destruindo a ordem -  ordem esta que podia  ser ruim , mas era a que nos dava a  lógica certa do  cotidiano ,pensavam os  primeiros ideológos do  Brasil .O que havia de  bom era feito nos palácios . À  população analfabeta e  miserável restava esperar o  futuro . Esta percepção, no final do XIX , ganhou amparo em teorias pseudocientíficas racistas ,e higienistas , pois também era preciso separar essa massa dos  " verdadeiros " cidadãos , ou seja , os proprietários .A propriedade ,o voto censitário delimitavam as categorias .Houve até  intelectuais que acredi-tavam que ,com o passar do tempo e a ajuda da  imigração europeia ,o  Brasil se bran-quearia , se alfabetizaria , se civilizaria , alcançando algum  dia esse ideal  maior de se  construir , finalmente , em nação . Éramos , assim , o  país do futuro . Era  só esperar .

A História do Brasil , como aliás a de praticamente todos os países do mundo ,nasceu estudando os  "  gran-des vultos  " , aqueles  personagens  das  elites que  marcaram a  época em que viveram . Isto é antigo ,pois a  História s urgiu como o estudo dos grandes homens , dos  grandes feitos . As nações apareciam através dos seus  líderes mais destacados . Para os  gregos antigos , a  História era um  desdobramento da  poesia , para poder  melhor venerar  os heróis  É natural que  tenha sido assim . Até hoje nos encanta saber mais que tenha sido assim . Até hoje  nos  encanta mais sobre  pessoas marcantes .É como se  através delas a  gente pudesse  entender o mundo em que viveram . Mesmo  gente sórdida , como  Hitler  ou  Stálin ,  fascina . Acalenta-nos  tam-bém saber que passaram , que foram  vencidos pelo tempo ,senhor  de  todos os destinos .Acalenta-nos também saber que houve  grandes  personagens da  paz , do conhecimento ,  pessoas que , em  suas vidas , representaram valores que  respeitamos , justificando tantas  biografias de filóosofos , pensadores e políticos que visualizavam um  mundo melhor , como  Mandela  ou  Gandhi .

A  história tem também uma  finalidade política . ela pode  ser um  instrumento poderoso para quem  está no  poder ou , ao contrário , para  quem o combate . Assim , quando nasce um país , quem está no governo tem que se  autojustificar perante  as  gerações  futuras . Num  passado remoto , havia  sempre algum  mito  fun-dador , algum semideus para  criar a  nova  nação e o  seu povo .Rômulo e Remo mamaram numa  loba para  fundar Roma . E quantos  reis medievais não tomaram  diretamente de algum  santo , ou mesmo de Deus , a justificativa do  seu trono ? Portugal  mesmo foi  fundado no  milagre de  Ourique , quando  Afonso Henriques teve  uma visão do  Senhor que o protegeu e lhe comunicou que iria ganhar suas batalhas .O  milagre fundou o reino .O  século XIX , todavia, era o  século da razão , não havia mais lugar para  justificar o  surgimento de um  novo país por algum mandato divino .No mundo laico ,cabia a  História tecer essa justificativa .O Império do Brasil precisava de uma  história oficial que justificasse a  monarquia , a escravidão ,para falar apenas dos dois pilares mais  evidentes sobre os  quais fomos fundados . 

Ao nascermos , pisando em  um manto de  café , cana ,  fumo e  algodão , é óbvio que nossos primeiros ma- nuais tenham  legado a barões ,condes , duques ao  imperador aconstrução de  algo maior do que o lugar  do  povo  tenha sido pequeno em  nossa históoria oficial .O homem comum tinha que ser guiado .Se possível edu- cado , para no futuro , quem sabe, tornar-se ele mesmo um  protagonista do  teatro  social . Um dos quadros  mais conhecidos do  Brasil é aquela cena inventada por  Pedro Américo para  Independência  Nela se vê um grupo levantando espadas , saudando  Pedro I . No canto esquero do quadro ,um homem humildemente tra- jado , guiando um  carro de boi com uma vara , assusta-se diante daquela  gente ricamente fardada e a cavalo .

Era como se  perguntasse : " o  que  é  isso ? ".

Seria este  o papel do  povo  brasileiro ? Ser  moldura do  teatro da  história ? Assistir , apenas , àquilo que  não entendia ? Nesse  modelo de  História , não éramos  protagonistas , mas somente  espectadores .

Nas últimas décadas tudo isso mudou radicalmente . A queda do  muro de  Berlim e o  fim da  Guerra  Fria e das ditaduras na  América Latina  aceleraram  a  quebra de  an-antigos paradigmas  das  ciências sociais . Já  não se  lutava mais apenas por comida ,  pelas  liberdades  mais simples ou pelo direito  a  representação   -popular , mas também se lutava  pela  natureza , pelos  direitos à  sexualidade , pelos  direitos da mulher e da  infância , pelos direitos humanos . O  mundo era  outro . " A gente  não  quer só  co-, quer  também  diversão e  arte " , dizia a  música  dos  Titãs do  final dos anos  1980 . esse  torvelinho de  novas demandas entrou na  academia , estremeceu  velhas prateleiras , misturou  pastas  amareladas  pelo tempo e  escancarou a janela para o  passado , precisava ser  reaberta de  forma  mais ampla . Havia outros  agentes a  se  estudar. 

A  vida humana é  imensamente  rica .Praticamente  qualquer coisa pode ser  objeto de estudo .o espectro de  possibilidades de  pesquisa do  historiador , todavia tem limites. Ele  não faz  literatura . Ele  não pode  inventar um  personagem , um  e um  processo histórico que  nunca existiram . Ele  pode , infelizmente , até errar , mas  mentir é  desonesto .Ele depende , portanto , de indícios , de  fragmentos , com  sorte ,  de  evidências sobre  processos passados , e assim explicá-los , entendê-los , ao menos , apresentá-los a nós para que conheçamos melhor o que fomos , mesmo que o nosso entendimento sobre esse  passado seja sempre  menor do que  gos-taríamos que fosse .

Hoje , em  História , estudamos muito . Quer dizer , tudo  aquilo  sobre o qual temos  fontes e artefatos que nos  proporcionam a  possibilidade de  observar o passado . Estudamos da  sexualidade ao  cotidiano . Da  cozinha da  casa-grande à  vida de trabalhadores portuários . De protistutas a  frades .Uma das  grandes vi-radas  da  historiografia contemporânea foi trazer  à tona a vida das pessoas comuns , como eu e você , que  você  está  lendo  este  texto .

Seria  injusto , todavia , dizer que somente na  contemporaneidade os  historiadores brasileiros se  preocu-param com  as pessoas mais  simples . Alguns dos  nossos pen-sadores  mais conhecidos anunciaram esta questão há  muito tempo , Capistrano de   Abreu  abriu o caminho ao tentar visualizar a ocupação do Brasil  mais profundo por  levas e levas de imigrantes portugueses anônimos ,caboclos e mulatos . Gilberto Freyre , mesmo falando a partir da  casa-grande deixar  claro que  os escravos foram  protagonistas da  História do  Brasil cuja  cultura foram marcados por eles e também pelo  índios . Sérgio  Buarque  de  Holanda , como  que  continuando o caminho aberto por  Capistrano , tentou identificar o  ethos ,o modo de ser , do brasileiro justamente  nesse indivíiiduo simples que tinha no personalismo e na emotividade o seu traço mais marcante . Caio Prado Júnior deixou  claro também que ,  por  mais  " capado "  e "  recapado " que  o povo tenha sido , na expressão de  Capistrano , ele não estava condenado à  anomia , mas destinado a  algo-maior ,quem sabe , a  uma revolução .

Entre  desesperanças , conjecturras e sonhos , o fato  é que cabe  aos historiadores mergulhar nos  arquivos e buscar  indícios e evidências de processos passados . E  foi nessa busca que nas  últimas décadas ficou claro que o  Brasil tinha  "povo " . parece óbvio , mas durante muito tempo não foi . O Brasil digeriu o que recebeu , e  recriou um modo de  ser  próprio . E mais , a  historiografia  contemporânea  tem demonstrado que  o povo foi  protagonista da  história . Ele  não  assistiu abestado ao que  acontecia ao  seu  redor como  o pobre coi-tado lá  na pintura de  Pedro Américo . 

Só o  protagonismo popular teve  que ser  buscado em outro locais .De fato , era difícil encontrá-lo nos palá-cios , raramente no  Parlamento . Estava  nas ruas , nos engenhos ,nas  fazendas , no cotidiano urbano e rural , nos  tribunais .Tudo bem estava até nos  palácios e  no  Parlamento  também - dentro deles , através de uma  multidão de trabalhadores domésticos . Fora desses espaços , mas bem  perto da entrada ,não faltou  multidão pressionando , nem  sempre em silêncio , às vezes  até  ameaçadora . 

E foi assim  que a  historiografia - que hoje é imensa  -  mostrou , por  exemplo , que os  escravos  foram os principais  protagonistas do processo de  superação da  escravidão . Ficaram  claras  as  inúmeras estratégias que  empregaram para  minar a  instituição, resistindo ao trabalho , fazendo  fugas  temporárias , colaborando para a  compra da  alforria . Da mesma  maneira , perscrutaram-se  as  formas de  convívo entre  povos  na-tivos , quilombolas e as populações  rurais em geral , que , faziam  alianças entre si  e,eventualmente , até com  proprietários rurais e  agentes  do poder , mas não o faziam aleatoriamente ,  pensavam  e pesavam quais ali- anças lhes seriam  mais  vantajosas . Nas cidades , além da  resistência  escrava , a  população  livre e pobre pouco a  pouco foi  criando  meios de organização , inclusive com  vínculos com a  Igreja , como é o caso das  irmandades . Consolidaram também  formas  de  associativismo e  ajuda mútua não muito diferentes daqueles que ocorriam na  Europa nessa época . Mesmo  mulheres praticamente encarceradas em conventos e recolhi-mentos criaram  um mundo próprio , muito diferente daquele que era esperado delas .O povo  não  foi objeto . Foi  agente  da  história .

Esse  protagonismo das  pessoas  comuns  que possibilita  uma  história  popular  do  Brasil . Sabemos hoje que os  homens e as  mulheres pobres  participaram de vários dos momentos  fundadores  da  nacionalidade . Talvez o historiador José Honório Rodrigues estivesse certo ao dizer que todas as  nossas  revoluções  foram  derrotadas . Ao final dos  momentos mais  marcantes da história , ele afirmava , a elite dominanate sempre se reconciliava e fazia algum  arremedo de reforma , estancando o movimento que vinha do andar de baixo .Mas será que somos assim tão  coitadinhos , fadados à  mesmice , anos  conformarmos com o queá posto ? 

A literatura  recente tem  revelado outras  possibilidades . O povo este  presente na  Independência , tentando  se fazer representar . Esteva em  inúmeros protestos pelo país afora  contra os  desmandos da  cllasse senho-rial e do  patriciado urbano . Esteve no  movimento abolicionista que , hoje sabemos , não  foi  só  palaciano , pois sem a  resistência escrava  não teria frutificado . A  abolição  demorou a vir , mas  veio  apesar de todos  os interesses econômicos em  seu favor e de um  bem sedimentado racismo pseudocientíiiifico . As mulheres não eram sempre  obedientes a  seus pais , maridos e irmãos . A população urbana  vivia  uma  religiosidade fervorosa , mas uma  religiosidade própria , distinta  daquela  que era esperada pela  união  Igreja - Estado . Houveve até  um  republicanismo  popular , vinculado  ao  abolicionismo , a  trablalhadores  das  nossas pri- meiras  manufaturas , diferente do  republicanismo escravista de produtores de  café insatisfeitos com a  mo-narquia . Foi das ruas que veio o  protesto ,a resistência , a força motriz para a queda das  nossas ditaduras do  século  XX ,  a de Vargas e a de  1964 . Tudo  bem que a  queda de Vargas e a  dos  militares  tiveram o  impulso de conjunturas internacionais favoráveis , mas quem conduziu  o timão foi  o protagonismo  popular .

Todos os nossos avanços políticos e  sociais  mais  só aconteceram devido a esse protagonismo popular .Não quero dizer com isso que fizemos revoluções , que chegamos  à utopia . Muito  menos  cair na armadilha pan- fletária de achar que o  mal sempre  vem de  cima e tudo  que é feito com  apoio popular é  necessariamente  o melhor . Afinal  de  contas . Hitler foi eleito . É possível , sim , enganar  muitos por  muito tempo .A  história ensina  isto. Mas o fato é que as  nossas demandas populares mais  avançadas não foram  sempre derrotadas . Vencemos  a  escravidão .Vencemos  as  ditaduras . Criamos  um  país que  se  não  está  no primeiro mundo , também não é nem  de longe o  pior  lugar  para  se  viver . Enfim ,  temos  povo . Temos  protagonismo  po- pular .  É  possível  e  é   fundamental fazer  a   História  do  povo  brasileiro.

Revista  -  História  Da Biblioteca  Nacional                                                                                          Janeiro  nº 9  -   nº  100  -  2014  -  Nós  O  Povo                                                                                          Cem  páginas  sob uma  perspectiva  incomum  da  formação  nacional 



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