domingo, 29 de setembro de 2024

OS TÉCNICOS " SABE - TUDO " ...

 




Faz  muito tempo que a  questão me  preocupa ,como furúnculo inchado ,não  espremido , latejante . Mas nunca  tive  coragem  para dizer o  que eu  estava pensando . Até  que  uma   colisão  acidental   -com um  técnico fez estourar o  furúnculo ,o  pus escorreu  e saiu o  berro  de  exorcismo que  estava  entalado .

Um técnico de  boca  aberta é mais  perigoso para  a  democracia que uma  urna  de  boca fechada .

Sei que seu  impulso imediato , frente a  afirmação tão  estapafúrdia , será de  interromper a  leitura . Qualquer  coisa tem de  ser mais  séria que  tamanho  disparate .

Claro que é disparate . Todo  mundo sabe que  nosso mundo foi  gerado nas  entranhas  dos técnicos . Filhos deles ...  Eles falam  e acontecem  usinas hidrelétricas ,barbeadores descartáveis ,viagens inter planetárias , coadores de papel , anticoncepcionais , computadores , brinquedos  eletrônicos , marca-passos  para  corações  trôpegos , salsichas , canetas esferográficas , armas mais inteligentes , inteli-gências  mais  armadas ...

Mas antes de  interromper sua leitura , por  favor , ouça  as  minhas razões . Ela  têm  uma história . 

Tudo aconteceu por  causa de um incidente com a administração da Cidade de Campinas .Havia um pequeno balão ajardinado , no  meio da avenida  Brasil . Lá no  centro , uma velha Tipuana  , antiga conhecida todos . Era  uma ilha  em meio  à  selvageria do  tráfego . De  lá as pessoas podiam esticar  suas  línguas para  os  automóveis ,impunes. A Prefeitura resolveu alargar a tal avenida .Mais espaço para os  automóveis .Era necessário correr mais . E assim se decretou a morte  do balão e o corte de  Tipuana . A  população  berrou . O  balão  não sai . É  parte do  nosso corpo . Fica a  Tipuana e  sua sombra . Os carros que  trafeguem  pedindo licença , devagar como  convém  às  máquinas . Afinal,      o desejo de  quem mora deve  ter  prioridade sobre  tudo o mais . Houve até um  moço  que se  aco-rrentou  à Tipuana , já   transformada em  símbolo de  um desejo . A  Prefeitura recuou e todos  can-taram  vitória . Tolice . Poucos  dias depois  a  administração  investiu  como um  tangue de guerra . Açao de comando . O  técnico  convocou a força das armas . A polícia obedeceu . O  lugar foi ocu -  pado A  Tipuana foi  cortada . A  praça  foi  arrasada. O  técnico  responsável justificou  sua ação alegando que  " o  povo é  ignorante  em  questões  de  tráfego " .

Acham absurda  a  prepotência do  técnico ?  Mas ele  é  absolutamente lógica . Ele simplesmente repetiu aquilo que já instalou como realidade , em meio à  nossa vida cotidiana . 

Assim ,o povo deve se  calar sobre questões militares , porque os especialistas estão cuidando de tudo . Em  assuntos  econômicos será  bom que  ele  se  dedique a  produzir e  a  consumir , já  que todos os  outros problemas foram entregues a  quem sabe . Na  saúde a  mesma coisa . O  doente  abre  mão do  seu próprio corpo e o entrega  às manipulações das  pessoas e  instituições que  detêm o monopólio do  saber sobre a  vida  e a morte . E se o  povo  chora  o desaparecimento de  Sete Quedas , vem  o vere-dito  tranquilo e  irrevogável .

Era  necessário . Os  técnicos  assim o disseram .

É o mesmo acontece na  educação , na  política agrícola , no  planejamento urbano ...


É por isso que eu disse que um  técnico de  boca aberta é  mais perigoso para a democracia que uma  urna de  boca fechada . Quando as  urnas estão de  boca fechada tudo  fica  claro . Não há  lugar para  equívocos . O arbítrio e a violência se apresentam sem  qualquer pudor , no horror de  sua nudez , obs-cenos ... E todos  ficam sabendo que  mundo é este em  que  estão  vivendo .Mas a coisa é  muito dife-rente quando  os  técnicos  abrem  as  suas bocas . É  aí  que começam  equívocos . Tudo  se recobre com  uma tranquilizadora aura de saber e  isenção , o que faz com que  todos digam  aliviados .

Puxa , como é  bom saber que as decisões estão  sendo  tomadas por quem tem  competência .A gente até pode  dormir melhor .

As  urnas de boca  fechada são  honestas .Não há  formas  de não se entender o que elas dizem .Mas a  voz dos técnicos embaralha tudo e as  pessoas se confundem .Chegam mesmo a  imaginar que  o ideal  platônico do  rei - filósofo está  finalmente se realizando . Platão sonhava com um dia em  que o  poder se  reconciliaria  com o  saber e pensava que, quando  isto ocorresse , o mundo ficaria  justo e  as  pes-soas  encontrariam  a  felicidade . Um  poder sábio  tem que  ser  um  poder  bom  ...  Esta  é  a  razão  por que  todos se  descontraem quando são  informados que o  mundo  está nas  mãos de  especialistas . Quem sabe não    erram .

Mas o problema real começa nas coisas que não são  ditas .Vejam o que ocorrer quando nos informam dedicadamente que  a  questão é de ordem  puramente técnica . Sorrimos ,  fulminados pelo  caráter ir-revogável e final do que nos foi dito , enfiamos a  viola  no  saco ,damos -meia - volta  ,calamos a boca e nos esquecemos do  assunto . Quando os técnicos  têm  a  última palavra , aqueles  que  não são téc-nicos não tem  palavra alguma . Daí  minha  convicção : técnico de  boca  aberta  faz  mais  mal  à  de-mocracia que  urna  de  boca  fechada .Mas quando nos dizem que o  assunto deve  ser decidido tecni-camente aceitamos ,  sem maiores esperneios , a  necessidade do  nosso  silêncio .Voluntariamente mu-damos de assunto . Afinal de  contas , falta - nos a  competência dos  especialistas . Acreditamos que  a eles pertence o  monopólio do  saber . E , claro , tratamos de  fechar a porta . Ficamos  quietinhos , as-sistindo ritmicamente com  cabeças  pinoquiais .

Por  outro  lado , ninguém negará  que aqueles que  detêm o  monopólio  do saber devem  deter tam-bém  o  monopólio do  poder . Esta  conclusão  é  resultado de  uma  lógica  férrea.   Seria  absurdo admitir o  contrário  : que os que sabem  fiquem  sem o  poder enquanto os que não sabem fiquem sem o  poder enquanto os que  não sabem passam a  manipulá - lo .  Se  há  técnicos que sabem por  que  dar  o  poder  a  um  povo que  não  sabe ?  De  fato ,    uma vez  admitido que  um grupo , definido como técnico , detém  o  monopólio do saber,   define --se  naturalmente a  configuração do  jogo  político ; o  poder a  quem sabe  ... Em  outras  palavras  : existe  sempre  um  autoritarismo  disfarçado  dentro da  arrogância do  poder . 

Assim , na  medida em que se expande o  mundo dos  técnicos e se definem as  áreas  controladas por  usa  competência , encolhe o  poder  do  povo e  cresce o  seu  silêncio e sua  impotência . É  inútil  que  as  urnas se  mantenham  com  bocas  escancaradas :  o povo perdeu  o  poder por  lhe ter  sido roubado o  saber . E quem  se  entrega ao  saber  do outro acaba  por  ficar  ao  sabor  do  outro . E ficar ao  seu  sabor é  o  mesmo que  estar  dentro de  sua boca , pronto  a  ser  engolido  .

Fonte  -  Livro  ESTÓRIAS  DE  QUEM  GOSTA  DE  ENSINAR    -                                        RUBEM  ALVES  -   CORTEZ     EDITORA - 17 :  edição   -São  Paulo 


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